Isabel Ferrer
Com ajustes de contas entre facções
e disparos em plena luz do dia, o crime organizado se expande pelo setor
imobiliário
Na tarde
de 26 de janeiro passado, o clube juvenil Wittenburg, situado ao lado de um
parque infantil no centro de Amsterdã, realizava um
curso de culinária e aulas de kickboxing. Era um dia como outro qualquer numa
associação de bairro pensada para fortalecer a união entre os moradores. Ao
redor das 19h, contudo, o clima de calma deu lugar ao horror. Dois homens
armados e encapuzados entraram no local chamando um tal Gianni aos gritos. Os
menores, seus monitores e várias mães se jogaram no chão. Com grande
nervosismo, os agressores dispararam indiscriminadamente e fugiram num carro
roubado. Deixaram um rastro de sangue e medo: Mohammed Bouchikhi, de 17 anos,
estava morto; Gianni, de 19, buscado pelos pistoleiros (que não o conheciam),
ficou gravemente ferido; outra jovem, de 20 anos, recebeu um disparo na perna.
O centro
atacado fica na antiga zona portuária da capital holandesa, chamada Oostelijke
Eilanden (Ilhas Orientais). Os moradores disseram “basta” após o tiroteio. Foi
o segundo assassinato registrado ali nos últimos três meses, numa área de
arquitetura de vanguarda transformada em cenário de ataques inusitados.
A
polícia afirma que a maior parte dos enfrentamentos entre facções de diversas
origens étnicas é culpa do tráfico de drogas.
“Foi um tema tabu até agora, embora o crime organizado faça ajustes de contas
com tiros em plena luz do dia. Deixam cabeças cortadas em frente ao negócio do
rival, e uma economia paralela lava o dinheiro [do tráfico]. Além disso, nos
últimos 30 anos os pequenos traficantes holandeses se tornaram grandes
investidores em imóveis. Em suma, essas são as características de um
narcoestado”, afirma Jan Struijs, de 56 anos, presidente do Sindicato da
Polícia Holandesa.
Cada vez mais jovens
O
Sindicato também se expressa com essa contundência no relatório que apresentou
ao Governo, após entrevistar cerca de 400 inspetores. Um trabalho no qual
Struijs, que já trabalhou como policial nas ruas, delegado e diretor da
Academia de Polícia, pede um reforço de 2.000 agentes para combater o crime organizado,
cujos pistoleiros são cada vez mais jovens. “A Holanda é um país seguro, mas há
uma década o assassinato por encomenda custava uns 50.000 euros (200.000 reais)
e o pistoleiro era um profissional adulto. Hoje, custa 5.000 euros (20.000
reais) e o autor é um menor. Essas pessoas costumam vir de famílias
desintegradas, e seus ídolos são sujeitos ao volante de um carrão que fingem se
ocupar deles, dizendo que terão dinheiro e status. Num dos últimos casos, o
garoto que matou duas pessoas tinha 16 anos. O aliciador sabe que nessa idade
os jovens passarão uns cinco anos presos e fazem promessas para quando saírem”,
afirma Struijs.
Aos 30 e
poucos anos, Safoan Mokhtari já esteve de ambos os lados. Quando garoto teve
passagens pela polícia, mas hoje é assistente social. Trabalha com meninos de
origem marroquina para evitar que entrem no crime. Também é artista e rapper, e
afirma que as ruas mudaram.
“Perdemos
o controle social e o respeito pelos pais. É um pouco como o Velho Oeste. O pai
costuma estar ausente, e a mãe não dá conta dos meninos. Os meus sempre me
apoiaram, e por isso lhes digo que têm outras opções, por mais duras que sejam
a pobreza e a rejeição”, afirma. Sua imagem chamativa e seu carro novo são a
demonstração de que não é preciso roubar para ter sucesso – e é isso que
pretende transmitir. “Não há uma solução mágica, mas podemos apoiar as famílias
para que o irmão mais velho dê exemplo aos demais. Os meninos que disparam
ganham dinheiro com drogas leves e depois passam às mais pesadas. Precisamos deter
essa progressão”, pede Mokhtari.
A atual
espiral de violência no país começou em 2012 no porto de Antuérpia. Um
carregamento de 200 quilos de cocaína foi roubado e acabou sendo disputado por
dois grupos rivais, um das Antilhas e outro do Marrocos. Ambos faziam
parte de uma organização conhecida como Mocro Maffia. “Foram se matando entre
eles desde então. Há mais de 20 mortos. Hoje, podemos dizer que há dois
líderes, ambos na prisão. São Naoufal F. e Benaouf A., além de muitos grupos
menores”, diz Mick van Wely, especialista em crime organizado do jornal De
Telegraaf.
Seu
colega Paul Vugts, do periódico Het Parool, escondido e sob proteção policial,
afirma que houve uma troca da guarda no mundo do crime local. “Há 30 anos, os
mafiosos eram holandeses autóctones. Alguns, como Willem Holleeder, continuam
entrando e saindo da prisão, mas agora existem múltiplas figuras.”
Os
especialistas destacam o porto de Roterdã como o
principal lugar por onde entram drogas de todo tipo. Pela posição geográfica e
a infraestrutura, a Holanda é o ponto ideal para distribuí-las ao resto da
Europa. A guerra subterrânea pelo controle desse negócio acaba com derramamentos
de sangue.
Gianni,
o garoto que escapou da morte em Amsterdã, já havia sobrevivido a um ataque
anterior. E só tem 19 anos. Um mês antes do tiroteio no clube juvenil – “não
nos pergunte, por favor, é tudo horrível e a polícia prefere que não falemos”, dizem
por lá – houve um incidente similar em Roterdã.
Dois
homens foram mortos na rua: os antilhanos Gilbert Henrietta, de 25 anos, e
Lindomar Elisabeth, de 26. Estavam armados, mas não tiveram tempo de reagir. Os
assassinos dispararam saraivadas ao estilo Bonnie e Clyde de um carro que
depois foi encontrado queimado. A polícia acredita que o grupo era formado por
adolescentes de 15 a 18 anos usando um fuzil Kalashnikov. “Desde a guerra dos
Bálcãs, as armas são muito fáceis de conseguir. São trazidas por via terrestre.
Mas o Kalashnikov é um fuzil pesado. Por isso, feriram pedestres e até pessoas
dentro de suas casas”, diz Struijs. Ele propõe que as autoridades sejam brandas
com os usuários de haxixe, que poderia ser vendido em lojas do Estado, e duras
com os produtores e o crime organizado. Tudo para que a Holanda não acabe sob o
controle do tráfico.
Uma polícia mais étnica para
combater o crime
A
procedência dos criminosos é diversa: holandeses, do Suriname e das Antilhas,
de origem turca e marroquina, e cada vez mais albaneses, segundo a polícia. Os
estacionamentos subterrâneos de Amsterdã são o lugar favorito dos traficantes
para seus ajustes de contas, mas um suspeito albanês foi alvo da ação em plena
rua: dois motoristas de uma facção rival o atropelaram e roubaram sua cocaína a
toda velocidade. Parte da droga acabou no chão, sob os olhares de todos.
“Apesar
da variedade, os criminosos mais visíveis parecem ser de origem marroquina”,
diz Ahmed Marcouch. Aos 48 anos e nascido no Marrocos, Marcouch foi policial na
capital holandesa e ex-deputado social-democrata. Agora é prefeito de Arnhem,
no leste do país. “Há na Holanda um grupo de jovens que se matam entre eles.
Ganham muito dinheiro com assassinatos por encomenda, que depois gastam em
carros, férias e casas, e se sentem intocáveis. Os donos da rua. Para
combatê-los, precisamos de uma polícia com maior diversidade étnica. Que
entenda sua língua e ganhe sua confiança porque compreende sua cultura. Mas o
corpo policial é de maioria autóctone branca. O crime organizado é
internacional, e a policia deve se organizar também”, afirma.
O
assistente social Safoan Mokhtari diz que esses garotos que entram tão cedo no
crime não são bobos. Conseguiriam um bom trabalho se tivessem o mesmo interesse
em estudar. “Alguns vão ao colégio, mas depois se metem no lugar errado.
Começam vendendo haxixe, e se passam para a cocaína é outro grupo. Outro
ambiente.” Daí a importância da prevenção. “Os agentes fazem o que podem, e a
diversidade é essencial para que haja um contato real e para melhorar a
percepção que se tem deles”, diz. “Do contrário, esses jovens evitarão se
aproximar.”
EL PAÍS
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