André
Lara Resende
Não apenas
no Brasil, mas em toda parte, a política de juros parece ter menor alcance e
limites mais estreitos do que se supunha
Os BCs estudam a possibilidade de emissão de uma moeda digital, que
poderá vir a substituir a moeda-papel
A superação da crise de 2008 nas economias do hemisfério Norte e o
desenvolvimento da tecnologia digital, sobretudo a tecnologia de arquivos
descentralizados, conhecida como DLT, a partir do termo em inglês,
"distributed ledger technology", levou a uma mudança dos temas
predominantes na discussão sobre políticas monetárias. Afrouxamento
quantitativo, taxas de juros negativas e outras formas heterodoxas de política
monetária cederam espaço para a discussão sobre as implicações do avanço da
tecnologia digital para o sistema financeiro e para a condução da política
monetária. São questões altamente relevantes para o Brasil.
A inflação está sob controle, mas apesar de a taxa básica de juros ter
se reduzido significativamente, o crédito continua escasso e caro. O alto custo
do crédito é importante detrator do investimento, sem o qual não haverá
crescimento sustentado. O crédito subsidiado, que durante tanto tempo
prevaleceu no Brasil, sempre questionável, é hoje fiscalmente inviável. Esta
foi a principal razão evocada para acabar com a taxa de juros subsidiada do
BNDES. O país enfrenta uma gravíssima crise e o déficit das contas públicas não
dá sinal de se reduzir na velocidade necessária. Ao contrário, tudo indica que
sem reequilíbrio da Previdência a relação entre a dívida pública e a renda
continuará a crescer. Fica difícil justificar o subsídio ao crédito. Além do
mais, uma das possíveis explicações para as altas taxas de juros é o fato de
que a política monetária aqui é pouco eficiente. Com empréstimos subsidiados,
feitos a taxas de juros insensíveis à variação da taxa básica, o Banco Central
seria obrigado a levar os juros a níveis muito mais altos do que o necessário,
caso todo o sistema respondesse à taxa básica.
A tese faz sentido e já me pareceu mais relevante para explicar a
ineficiência da política monetária no Brasil. Ocorre que após a crise
financeira das economias desenvolvidas de 2008, os limites da política
monetária, ou mais precisamente da política de juros, pois esta é apenas um dos
elementos da atuação dos bancos centrais contemporâneos, foram explicitados.
Enquanto aqui as taxas de juros são mantidas em níveis altos demais, nos países
avançados, ameaçados de deflação, os juros esbarraram no seu limite inferior, o
das taxas nulas. Os limites da política de juros, em condições de inflação
muito alta ou muito baixa, têm dado margem a controvérsias e levado à revisão da
macroeconomia. Não apenas no Brasil, mas em toda parte, a política de juros
parece ter menor alcance e limites mais estreitos do que se supunha.
O cerne do problema está na evolução do sistema financeiro. Quanto
mais sofisticado o sistema financeiro, mais líquidos são todos os tipos de
ativos, o que faz com que a distinção entre moeda e crédito se torne menos
relevante. Sistemas financeiros sofisticados são capazes de expandir e de
destruir crédito e liquidez, sem depender dos bancos centrais, até que ocorra
uma grande crise de confiança. Ao criar e destruir liquidez, independentemente
da atuação da política de juros do Banco Central, o sistema financeiro torna a
política de juros menos eficiente. Quanto mais sofisticado o sistema
financeiro, menor é a vinculação entre a taxa de juros básica e a liquidez. Por
isso, depois da grande crise financeira de 2008, os bancos centrais foram
obrigados a rever sua forma de atuar, com políticas que vão muito além da
política de juros. A criação de liquidez através da recompra maciça de títulos,
tanto públicos quanto privados, denominada de "quantitative easing",
QE, é o exemplo mais importante do novo cardápio de medidas, denominadas de
macroprudenciais, que passaram a fazer parte do arsenal de atuação das autoridades
monetárias.
A nova forma de atuar dos bancos centrais explicitou a estreita
vinculação entre as políticas monetária e fiscal. A política de juros do Banco
Central é um importante determinante do custo da dívida pública, por isso as
políticas monetária e fiscal nunca foram independentes. Desde a crise de 2008,
os balanços dos bancos centrais cresceram tanto, que hoje representam parte
expressiva da dívida pública consolidada. A política dos bancos centrais tem
agora, mais do que nunca, expressivo impacto fiscal. A ainda mais estreita
vinculação entre as políticas monetária e fiscal coincide com o avanço da
tecnologia de pagamentos, que poderá vir a restringir ainda mais a eficácia da
tradicional política de juros dos bancos centrais. O avanço da tecnologia sobre
o sistema de pagamentos tem reduzido rapidamente o uso, e portanto a demanda,
da moeda tradicional. Tanto a moeda-papel em circulação quanto as reservas
bancárias no Banco Central, aquilo que se convenciona chamar de base monetária,
estão a caminho, se não da extinção, da irrelevância.
Os novos sistemas de pagamentos eletrônicos, que atuam como
plataformas alternativas ao sistema bancário, reduzem a necessidade de base
monetária na economia, mas como só a moeda-papel ou as reservas no Banco
Central servem como última instância de pagamento, não podem ainda prescindir
do sistema bancário. Isso pode vir a mudar com a criação de uma criptomoeda
descentralizada emitida pelos bancos centrais, ou mesmo com a generalização das
moedas virtuais privadas. A primeira e a mais conhecida das criptomoedas
privadas, o bitcoin, não é uma verdadeira moeda. A altíssima volatilidade do
valor do bitcoin, assim como o das inúmeras criptomoedas que hoje pipocam por
toda parte, não permite que os preços sejam cotados nessas ditas criptomoedas.
Enquanto tiverem altíssima volatilidade, não servirão de referência para
cotação de preços, nem como unidade de conta. Por isso, são tecnicamente
denominadas de criptoativos financeiros. Não são moedas, mas ativos financeiros
digitais criptografados.
A grande contribuição do bitcoin foi a tecnologia, verdadeiramente
revolucionária, por trás dele: o blockchain. Com o blockchain, cuja denominação
genérica hoje é DLT, é possível transferir a propriedade de ativos - assim como
de qualquer documento - de forma descentralizada. As implicações disso poderão
ser tão revolucionárias quanto foi a internet, que permitiu a divulgação
descentralizada da informação. Um sistema de pagamentos baseado em DLT
dispensará tanto a custódia quanto a liquidação centralizada e revolucionará o
funcionamento do sistema de pagamentos. Quanto ao papel que poderá vir a
desempenhar as criptomoedas digitais de emissão privada, não há consenso. A
grande maioria dos analistas, entre os quais me incluo, acredita que se trata
de um modismo que alimenta uma bolha especulativa que, ao menos por enquanto,
não oferece perigo. Curiosamente, pode-se perceber que há uma clivagem
geracional na avaliação das criptomoedas; os mais jovens são bem menos céticos
quanto ao seu futuro. Independentemente de como se avalia as criptomoedas
privadas, o fato é que a tecnologia e o extraordinário interesse despertado por
elas levaram a um reexame de algumas questões básicas. Há hoje uma renovada
discussão sobre o que é a moeda, se podem existir boas e más moedas, qual o
sistema de pagamentos mais eficiente e qual o papel dos bancos centrais.
Quando se procura definir a moeda, suas três propriedades clássicas,
ser unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor, são imediatamente
lembradas. São funções clássicas da moeda, mas não definição do que é a moeda.
Das muitas tentativas de definir a moeda, a que me parece mais abrangente e
fecunda é aquela que vê a moeda como um sistema de registro de débitos e
créditos, acessível de forma eficiente e segura para todos, que desfruta de
credibilidade pública. A moeda é uma convenção que tem credibilidade. Como toda
convenção, está sujeita a evoluir com a mudança dos usos e costumes das
instituições e da tecnologia. A moeda contemporânea está em fase de rápida
evolução. Existe hoje um grande número de formas alternativas da moeda, que
podem ser classificadas segundo quatro características básicas:
1 - Emissor público ou privado.
2 - Existência física ou eletrônica.
3 - Acesso generalizado ou restrito.
4 -Transferência e registro centralizados ou descentralizados.
Alguns exemplos ajudam a entender a classificação. A moeda-papel tem
emissor público, é física, de acesso irrestrito e tem transferência
descentralizada. As reservas bancárias nos bancos centrais têm emissor público,
são eletrônicas, têm acesso restrito aos bancos e transferência centralizada.
As atuais chamadas criptomoedas, como o bitcoin, têm emissores privados, são
eletrônicas, têm acesso irrestrito e são transferidas de forma descentralizada
através de DLT.
As criptomoedas privadas de hoje têm problemas demais para virem a se
tornar predominantes. A alta volatilidade, o risco cibernético e sobretudo o
custo energético do processo de "mineração" fazem com que elas ainda
não constituam ameaça para as moedas oficiais, mas o interesse que despertaram
é indicação de que esta possibilidade não pode ser integralmente descartada.
Moedas de emissão privada foram comuns na história. A tentação dos emissores de
reduzir o seu conteúdo metálico em relação ao seu valor de face, num processo
conhecido na literatura como "debasement", foi sempre uma ameaça à
sua credibilidade. A questão é que também as moedas oficiais, emitidas pelos
Estados nacionais, nunca estiveram livres do risco de debasement. Com o tempo,
o lastro metálico das moedas desapareceu, e a moeda se tornou totalmente
fiduciária. Sua credibilidade está baseada na confiança de que o emissor não
irá abusar do seu poder de "seignorage" e que o Banco Central garantirá
a relativa estabilidade do seu poder de compra. A credibilidade da moeda
fiduciária depende da percepção de que o Banco Central está protegido de
pressões políticas espúrias e que tem competência para garantir a estabilidade
do sistema de pagamentos.
À medida que a moeda e o sistema de pagamentos evoluem, também a
atuação dos bancos centrais deve evoluir. No passado os bancos de depósitos,
precursores dos bancos centrais, deveriam garantir o lastro metálico de suas
moedas. Com a consolidação das moedas exclusivamente fiduciárias, passou-se a
acreditar que a boa política monetária deveria estar baseada em uma regra
quantitativa para a emissão de moeda, baseada na Teoria Quantitativa da Moeda.
Desde o início deste século, as metas quantitativas foram abandonadas e os
bancos centrais passaram a utilizar uma regra para a taxa básica de juros,
associadas a metas para a inflação. A evolução tecnológica dos sistemas de
pagamentos será um novo desafio para os bancos centrais.
Nos últimos anos, vários bancos centrais, inclusive o Fed americano,
passaram a utilizar depósitos remunerados para o sistema bancário, como
instrumento de controle da liquidez. No Brasil, já há um projeto em andamento
para autorizar sua utilização pelo Banco Central. Atentos à rápida evolução
tecnológica, os bancos centrais estudam também a possibilidade de emissão de
uma moeda digital, que poderá vir a substituir a moeda-papel. A chamada moeda
digital dos bancos centrais, ou CBDC do inglês, assim como o papel-moeda, seria
transferida de forma descentralizada, peer-to-peer, através da DLT. A
combinação de depósitos remunerados no Banco Central, não apenas para os bancos
comerciais, mas para todas as chamadas instituições de pagamento, inclusive as
novas fintechs, instituições financeiras que utilizam exclusivamente
plataformas digitais, revolucionará o sistema de pagamentos. Os ganhos de
eficiência serão enormes. Os pagamentos e as transferências passarão a ser
imediatos, em tempo real, a partir dos celulares. Os absurdos prazos para liquidação,
assim como os altíssimos custos do sistema, hoje no Brasil, serão
significativamente reduzidos.
O alto custo do crédito no Brasil é problema conhecido e amplamente
debatido. O alto custo de sistema de pagamentos é menos visível, mas tão grave
quanto o do crédito. Há hoje consciência de que a concentração bancária se
tornou excessiva. A revolução digital, se bem entendida e aproveitada pelas
autoridades monetárias, se encarregará de reverter a concentração e aumentar a
eficiência do sistema.
Valor Econômico
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