sábado, 28 de abril de 2018

A moeda do futuro

André Lara Resende

Não apenas no Brasil, mas em toda parte, a política de juros parece ter menor alcance e limites mais estreitos do que se supunha

Os BCs estudam a possibilidade de emissão de uma moeda digital, que poderá vir a substituir a moeda-papel

A superação da crise de 2008 nas economias do hemisfério Norte e o desenvolvimento da tecnologia digital, sobretudo a tecnologia de arquivos descentralizados, conhecida como DLT, a partir do termo em inglês, "distributed ledger technology", levou a uma mudança dos temas predominantes na discussão sobre políticas monetárias. Afrouxamento quantitativo, taxas de juros negativas e outras formas heterodoxas de política monetária cederam espaço para a discussão sobre as implicações do avanço da tecnologia digital para o sistema financeiro e para a condução da política monetária. São questões altamente relevantes para o Brasil.

A inflação está sob controle, mas apesar de a taxa básica de juros ter se reduzido significativamente, o crédito continua escasso e caro. O alto custo do crédito é importante detrator do investimento, sem o qual não haverá crescimento sustentado. O crédito subsidiado, que durante tanto tempo prevaleceu no Brasil, sempre questionável, é hoje fiscalmente inviável. Esta foi a principal razão evocada para acabar com a taxa de juros subsidiada do BNDES. O país enfrenta uma gravíssima crise e o déficit das contas públicas não dá sinal de se reduzir na velocidade necessária. Ao contrário, tudo indica que sem reequilíbrio da Previdência a relação entre a dívida pública e a renda continuará a crescer. Fica difícil justificar o subsídio ao crédito. Além do mais, uma das possíveis explicações para as altas taxas de juros é o fato de que a política monetária aqui é pouco eficiente. Com empréstimos subsidiados, feitos a taxas de juros insensíveis à variação da taxa básica, o Banco Central seria obrigado a levar os juros a níveis muito mais altos do que o necessário, caso todo o sistema respondesse à taxa básica.

A tese faz sentido e já me pareceu mais relevante para explicar a ineficiência da política monetária no Brasil. Ocorre que após a crise financeira das economias desenvolvidas de 2008, os limites da política monetária, ou mais precisamente da política de juros, pois esta é apenas um dos elementos da atuação dos bancos centrais contemporâneos, foram explicitados. Enquanto aqui as taxas de juros são mantidas em níveis altos demais, nos países avançados, ameaçados de deflação, os juros esbarraram no seu limite inferior, o das taxas nulas. Os limites da política de juros, em condições de inflação muito alta ou muito baixa, têm dado margem a controvérsias e levado à revisão da macroeconomia. Não apenas no Brasil, mas em toda parte, a política de juros parece ter menor alcance e limites mais estreitos do que se supunha.

O cerne do problema está na evolução do sistema financeiro. Quanto mais sofisticado o sistema financeiro, mais líquidos são todos os tipos de ativos, o que faz com que a distinção entre moeda e crédito se torne menos relevante. Sistemas financeiros sofisticados são capazes de expandir e de destruir crédito e liquidez, sem depender dos bancos centrais, até que ocorra uma grande crise de confiança. Ao criar e destruir liquidez, independentemente da atuação da política de juros do Banco Central, o sistema financeiro torna a política de juros menos eficiente. Quanto mais sofisticado o sistema financeiro, menor é a vinculação entre a taxa de juros básica e a liquidez. Por isso, depois da grande crise financeira de 2008, os bancos centrais foram obrigados a rever sua forma de atuar, com políticas que vão muito além da política de juros. A criação de liquidez através da recompra maciça de títulos, tanto públicos quanto privados, denominada de "quantitative easing", QE, é o exemplo mais importante do novo cardápio de medidas, denominadas de macroprudenciais, que passaram a fazer parte do arsenal de atuação das autoridades monetárias.

A nova forma de atuar dos bancos centrais explicitou a estreita vinculação entre as políticas monetária e fiscal. A política de juros do Banco Central é um importante determinante do custo da dívida pública, por isso as políticas monetária e fiscal nunca foram independentes. Desde a crise de 2008, os balanços dos bancos centrais cresceram tanto, que hoje representam parte expressiva da dívida pública consolidada. A política dos bancos centrais tem agora, mais do que nunca, expressivo impacto fiscal. A ainda mais estreita vinculação entre as políticas monetária e fiscal coincide com o avanço da tecnologia de pagamentos, que poderá vir a restringir ainda mais a eficácia da tradicional política de juros dos bancos centrais. O avanço da tecnologia sobre o sistema de pagamentos tem reduzido rapidamente o uso, e portanto a demanda, da moeda tradicional. Tanto a moeda-papel em circulação quanto as reservas bancárias no Banco Central, aquilo que se convenciona chamar de base monetária, estão a caminho, se não da extinção, da irrelevância.

Os novos sistemas de pagamentos eletrônicos, que atuam como plataformas alternativas ao sistema bancário, reduzem a necessidade de base monetária na economia, mas como só a moeda-papel ou as reservas no Banco Central servem como última instância de pagamento, não podem ainda prescindir do sistema bancário. Isso pode vir a mudar com a criação de uma criptomoeda descentralizada emitida pelos bancos centrais, ou mesmo com a generalização das moedas virtuais privadas. A primeira e a mais conhecida das criptomoedas privadas, o bitcoin, não é uma verdadeira moeda. A altíssima volatilidade do valor do bitcoin, assim como o das inúmeras criptomoedas que hoje pipocam por toda parte, não permite que os preços sejam cotados nessas ditas criptomoedas. Enquanto tiverem altíssima volatilidade, não servirão de referência para cotação de preços, nem como unidade de conta. Por isso, são tecnicamente denominadas de criptoativos financeiros. Não são moedas, mas ativos financeiros digitais criptografados.

A grande contribuição do bitcoin foi a tecnologia, verdadeiramente revolucionária, por trás dele: o blockchain. Com o blockchain, cuja denominação genérica hoje é DLT, é possível transferir a propriedade de ativos - assim como de qualquer documento - de forma descentralizada. As implicações disso poderão ser tão revolucionárias quanto foi a internet, que permitiu a divulgação descentralizada da informação. Um sistema de pagamentos baseado em DLT dispensará tanto a custódia quanto a liquidação centralizada e revolucionará o funcionamento do sistema de pagamentos. Quanto ao papel que poderá vir a desempenhar as criptomoedas digitais de emissão privada, não há consenso. A grande maioria dos analistas, entre os quais me incluo, acredita que se trata de um modismo que alimenta uma bolha especulativa que, ao menos por enquanto, não oferece perigo. Curiosamente, pode-se perceber que há uma clivagem geracional na avaliação das criptomoedas; os mais jovens são bem menos céticos quanto ao seu futuro. Independentemente de como se avalia as criptomoedas privadas, o fato é que a tecnologia e o extraordinário interesse despertado por elas levaram a um reexame de algumas questões básicas. Há hoje uma renovada discussão sobre o que é a moeda, se podem existir boas e más moedas, qual o sistema de pagamentos mais eficiente e qual o papel dos bancos centrais.

Quando se procura definir a moeda, suas três propriedades clássicas, ser unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor, são imediatamente lembradas. São funções clássicas da moeda, mas não definição do que é a moeda. Das muitas tentativas de definir a moeda, a que me parece mais abrangente e fecunda é aquela que vê a moeda como um sistema de registro de débitos e créditos, acessível de forma eficiente e segura para todos, que desfruta de credibilidade pública. A moeda é uma convenção que tem credibilidade. Como toda convenção, está sujeita a evoluir com a mudança dos usos e costumes das instituições e da tecnologia. A moeda contemporânea está em fase de rápida evolução. Existe hoje um grande número de formas alternativas da moeda, que podem ser classificadas segundo quatro características básicas:

1 - Emissor público ou privado.
2 - Existência física ou eletrônica.
3 - Acesso generalizado ou restrito.
4 -Transferência e registro centralizados ou descentralizados.

Alguns exemplos ajudam a entender a classificação. A moeda-papel tem emissor público, é física, de acesso irrestrito e tem transferência descentralizada. As reservas bancárias nos bancos centrais têm emissor público, são eletrônicas, têm acesso restrito aos bancos e transferência centralizada. As atuais chamadas criptomoedas, como o bitcoin, têm emissores privados, são eletrônicas, têm acesso irrestrito e são transferidas de forma descentralizada através de DLT.

As criptomoedas privadas de hoje têm problemas demais para virem a se tornar predominantes. A alta volatilidade, o risco cibernético e sobretudo o custo energético do processo de "mineração" fazem com que elas ainda não constituam ameaça para as moedas oficiais, mas o interesse que despertaram é indicação de que esta possibilidade não pode ser integralmente descartada. Moedas de emissão privada foram comuns na história. A tentação dos emissores de reduzir o seu conteúdo metálico em relação ao seu valor de face, num processo conhecido na literatura como "debasement", foi sempre uma ameaça à sua credibilidade. A questão é que também as moedas oficiais, emitidas pelos Estados nacionais, nunca estiveram livres do risco de debasement. Com o tempo, o lastro metálico das moedas desapareceu, e a moeda se tornou totalmente fiduciária. Sua credibilidade está baseada na confiança de que o emissor não irá abusar do seu poder de "seignorage" e que o Banco Central garantirá a relativa estabilidade do seu poder de compra. A credibilidade da moeda fiduciária depende da percepção de que o Banco Central está protegido de pressões políticas espúrias e que tem competência para garantir a estabilidade do sistema de pagamentos.

À medida que a moeda e o sistema de pagamentos evoluem, também a atuação dos bancos centrais deve evoluir. No passado os bancos de depósitos, precursores dos bancos centrais, deveriam garantir o lastro metálico de suas moedas. Com a consolidação das moedas exclusivamente fiduciárias, passou-se a acreditar que a boa política monetária deveria estar baseada em uma regra quantitativa para a emissão de moeda, baseada na Teoria Quantitativa da Moeda. Desde o início deste século, as metas quantitativas foram abandonadas e os bancos centrais passaram a utilizar uma regra para a taxa básica de juros, associadas a metas para a inflação. A evolução tecnológica dos sistemas de pagamentos será um novo desafio para os bancos centrais.

Nos últimos anos, vários bancos centrais, inclusive o Fed americano, passaram a utilizar depósitos remunerados para o sistema bancário, como instrumento de controle da liquidez. No Brasil, já há um projeto em andamento para autorizar sua utilização pelo Banco Central. Atentos à rápida evolução tecnológica, os bancos centrais estudam também a possibilidade de emissão de uma moeda digital, que poderá vir a substituir a moeda-papel. A chamada moeda digital dos bancos centrais, ou CBDC do inglês, assim como o papel-moeda, seria transferida de forma descentralizada, peer-to-peer, através da DLT. A combinação de depósitos remunerados no Banco Central, não apenas para os bancos comerciais, mas para todas as chamadas instituições de pagamento, inclusive as novas fintechs, instituições financeiras que utilizam exclusivamente plataformas digitais, revolucionará o sistema de pagamentos. Os ganhos de eficiência serão enormes. Os pagamentos e as transferências passarão a ser imediatos, em tempo real, a partir dos celulares. Os absurdos prazos para liquidação, assim como os altíssimos custos do sistema, hoje no Brasil, serão significativamente reduzidos.

O alto custo do crédito no Brasil é problema conhecido e amplamente debatido. O alto custo de sistema de pagamentos é menos visível, mas tão grave quanto o do crédito. Há hoje consciência de que a concentração bancária se tornou excessiva. A revolução digital, se bem entendida e aproveitada pelas autoridades monetárias, se encarregará de reverter a concentração e aumentar a eficiência do sistema.

Valor Econômico


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