YOANI SÁNCHEZ
O sonho da normalização em Cuba
durou pouco. Ante o dilema de conservar todo o poder ou ceder uma parte, para
evitar uma fratura dramática, Raúl não se diferenciou muito do irmão e escolheu
o controle absoluto
Um
impulsivo e outro pragmático, um carismático e outro destituído de qualquer
magnetismo, os irmãos Fidel e Raúl Castro deixaram seu sobrenome marcado
a sangue e fogo na história cubana dos últimos sessenta anos. Esta semana a
nova geração bate à porta do poderoso clã familiar que planeja sair do foco
central, mas não se distanciar demais do poder.
Houve um
tempo em que as crianças cubanas calculávamos a idade que teríamos quando
chegasse o novo século. Imaginávamos nos tornar adultos em um milênio tingido
com o vermelho da bandeira comunista, onde não haveria nem o dinheiro nem a
miséria. No entanto, o muro de Berlim caiu, a esperança se partiu em mil pedaços e nossa
aritmética pessoal passou a contar os anos que iríamos ter quando o castrismo
caísse.
Esse dia
chegou, mas não como pensávamos. Em lugar de uma épica derrubada com as pessoas
nas ruas desfraldando bandeiras, o regime cubano vai se desbotando como uma
velha fotografia: sem graça nem romance. Esse processo começou há doze anos
quando Fidel Castro ficou doente e transmitiu o comando do país, por via
sanguínea, ao irmão mais novo.
Coube
a Raúl Castro lidar com a complexa herança
recebida. Uma nação em números vermelhos, com uma crescente apatia dos
cidadãos, um êxodo que desmentia o suposto paraíso socialista que a propaganda
oficial narrava, um emaranhado de proibições que tornavam a vida cotidiana
asfixiante e uma institucionalidade deficiente que definhava sob os caprichos
do Comandante-Chefe.
“Sem
pressa, mas sem pausa” foi o lema escolhido pelo raulismo para tentar consertar
alguns daqueles agravos. O General chegou a ganhar o irônico qualificativo de
“revolucionário gradual” porque diante da maioria dos problemas prementes se
mostrou mais no estilo de um cauteloso e rançoso conservador que com o ímpeto
de um antigo guerrilheiro.
A
primeira coisa que fez foi desmantelar o fidelismo, esse sistema personalista
que seu irmão edificou à sua imagem e semelhança: caprichoso, violento, tenaz e
vociferante. Sem deixar de apertar a mão repressiva, o segundo irmão pôs fim a
várias “proibições absurdas”, como as chamou então, que tornavam mais visíveis
e rígidas as grades da jaula nacional.
Orientado
na direção correta, mas com uma velocidade de quelônio e uma profundidade
epidérmica, Castro II autorizou a compra e venda de moradias, paralisada por
décadas, permitiu que os cidadãos pudessem contratar uma linha de telefone
celular, até então um privilégio só desfrutado por estrangeiros, e iniciou uma
reforma migratória na ilha-prisão.
Por suas
mãos foi impulsionado o setor privado, sob o eufemismo de trabalho por conta
própria. O país se abriu ao investimento estrangeiro e milhares de hectares de
terras que havia anos estavam improdutivas foram entregues para usufruto. Até
foram reduzidos os atos ideológicos públicos, sepultadas as campanhas políticas
de massa nas quais seu irmão era viciado e estimulado um processo de
controladoria para procurar conter o desperdício, a corrupção e a ineficiência
nas empresas estatais.
Nesses
anos, entre julho de 2006 e janeiro de 2013, Raúl Castro gastou todo seu
capital político, esgotou um programa de Governo que tinha limites muito
claros: manter o sistema socialista, evitar a todo custo que as desigualdades sociais aumentassem e impedir qualquer
tentativa de pluralidade política.
Quando o
raulismo começava a definhar, chegou em 17 de dezembro de 2014 a notícia
do degelo diplomático entre a Casa Branca e a Praça da Revolução. Por quase
três anos o mundo acreditou que o “problema Cuba” estava resolvido quando viu a
Chanel desfilar no Passeio do Prado, Madona dançar em um restaurante de Havana
e a família Kardashian passear em um velho automóvel pela ilha.
Mas o
sonho da normalização durou pouco. Raúl Castro teve medo de perder o controle e
não correspondeu às medidas tomadas por Barack Obama com
a necessária contrapartida da ilha. Depois da visita oficial do presidente
norte-americano a mídia oficialista deu nova força às críticas contra
Washington, e a lua de mel terminou. Um divórcio sentenciado com a chegada de Donald Trump à
presidência.
Temeroso
do animal de mil cabeças que havia soltado com suas reformas — o capitalismo —,
Castro retraiu ou paralisou várias das flexibilizações que lhe haviam valido o
qualificativo de “reformista”. Desde agosto a maioria das licenças para o setor
privado está paralisada, as proibições de viagem decretadas contra os
oposicionistas aumentaram nos últimos meses e o discurso oficial voltou suas
críticas contra os empreendedores locais.
O
octogenário governante não pôde resolver dois dos maiores problemas: unificar
as duas moedas que circulam na ilha e aumentar os salários ínfimos que a
maioria da população recebe. Tampouco conseguiu frear o êxodo de cubanos e
aplicar políticas que elevassem de modo efetivo a natalidade, um problema sério
para uma nação que as previsões indicam será o nono país mais envelhecido do
mundo em 2050. Tampouco conseguiu sanear o setor estatal corroído pela
corrupção e a falta de eficiência.
No
entanto, o maior fracasso do General nos dez anos de seus dois mandatos foi sua
incapacidade de estimular as necessárias reformas políticas para que a nova
geração receba uma casa mais organizada. Diante do dilema de conservar todo o
poder ou ceder uma parte, para evitar uma fratura dramática no futuro, o mais
novo dos Castro não se diferenciou muito do irmão e escolheu o controle
absoluto.
Sabe
que, embora tenha planejado metodicamente a sucessão e escolhido um herdeiro
dócil e manobrável como o primeiro-vice-presidente Miguel
Díaz-Canel, no
sistema personalista que herdou de seu irmão a divisão de responsabilidades não
cai nada bem.
Enquanto
mantém o controle sobre o Partido Comunista, que a Constituição consagra como a
força dirigente do país, Castro poderá vigiar esse tecnocrata crescido à sua
sombra e consciente de que qualquer tentativa de autonomia poderia significar
sua queda. Mas o velho guerrilheiro sabe também que o final de sua vida está
próximo e que os pupilos se tornam imprevisíveis quando o mentor já não
respira.
O
sucessor herda um país em crise e uma sociedade desanimada, um contexto
internacional desfavorável, cujos sinais mais claros são a mudança de rumo ideológico na
América Latina e
a rejeição quase unânime a seu aliado venezuelano, Nicolás Maduro. Cabe a ele
acabar com a dualidade monetária, aprofundar as reformas econômicas para
convencer os investidores e ampliar o setor privado.
Ao
contrário de seus antecessores, não participou dos feitos bélicos de Sierra Maestra nem do ataque ao quartel de
Moncada. Terá que construir sua legitimidade sobre os resultados de sua gestão
e a realização de uma reforma política real e ampla. O mito terminou e a
geração histórica, que se impôs com o terror e o carisma, tem os dias contados.
A era
Castro acaba e aquelas crianças de outrora estamos na maturidade de nossas
vidas. Muitos ficaram pelo caminho sem conhecer outro sistema. Nestes dias
voltamos a retomar as aritméticas pessoais: que idade teremos quando Cuba for
realmente livre?
EL PAÍS
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