M.R.S.
Assassinato
do jornalista investigativo Jan Kuciak e da sua noiva abalam a sociedade do
país
O jovem
demonstrou a conexão do primeiro-ministro com empresários vinculados à
’Ndragheta
Ele foi encontrado no porão. Tinha levado dois tiros no peito e outro
na cabeça. Aquele que supostamente o matou o atravessou do nariz ao cocuruto.
Ela foi localizada na cozinha. O buraco de bala no alto da sua cabeça indica
que estava de joelhos quando foi executada. Estavam mortos havia quatro dias.
Assassinados. Na casa do jornalista investigativo Jan Kuciak e
de sua noiva, a arqueóloga Martina Kusnirova, a uma hora de Bratislava, não
havia nenhuma pista. Nenhum indício. Entretanto, a polícia apontou desde o
começo o trabalho de Kuciak como o motivo do crime, ocorrido em 21 de
fevereiro. O repórter se especializou em revelar redes do crime organizado e
casos de corrupção.
E em vários deles tinha apontado claramente o Governo do social-democrata Robert Fico e
empresários do seu entorno.
O assassinato do casal, que o Ministério Público considera ter sido
cometido por um pistoleiro, abalou o país e toda aUnião Europeia. E
derrubou Fico, no poder havia 10 anos, e grande parte da sua equipe – a qual,
apesar de negar taxativamente qualquer relação com os escândalos, se viu
obrigada a se demitir após as maiores manifestações na história da Eslováquia desde a Revolução de Veludo, em 1989. Kuciak não era nem de longe o
único jornalista investigativo, nem sequer o mais relevante. Seu crime,
entretanto, revelou a magnitude dos esgotos neste pequeno país de 5,4 milhões
de habitantes, membro da UE desde 2004.
Nos índices
internacionais de percepção da corrupção, a Eslováquia não está entre os
piores, mas arrasta um grave problema de subornos desde seu surgimento como
Estado, após décadas de comunismo como parte daTchecoslováquia, até
a separação dos dois países, em 1993. Essa podridão se tornou sistêmica,
adverte Zuzana Wienk, diretora da Aliança Fair-Play, uma conhecida organização
especializada na análise da transparência. A situação pôs as autoridades da UE
em alerta, levando-as a chamar a atenção do Governo eslovaco para que acelere
as investigações.
Mais de um mês depois de seu assassinato, a mesa que Kuciak ocupava na
redação do Aktualitaty.sk, o site de notícias onde trabalhava, continua
quase intacta. Um computador, uma pilha de papéis e cadernos e um livro sobre a’Ndragheta. Essa
organização criminosa italiana, com tentáculos em todo o mundo, era nos últimos
tempos o principal foco do jornalista, de 27 anos. Kuciak havia descoberto que
um grupo de empresários eslovacos e italianos se apropriara fraudulentamente de
centenas de milhares de euros de recursos comunitários destinados à agricultura
no leste do país. O jornalista reconstruiu parte de uma complexa trama até demonstrar
a conexão entre um dos cabeças, vinculado à máfia calabresa, com dois
assessores do primeiro-ministro Fico.
Jamais conseguiu ver suas descobertas publicadas. Mas seu artigo
póstumo, terminado por uma aliança criada entre seus colegas do Aktualitaty.sk e
um grupo dos melhores jornalistas investigativos do país, foi divulgado na
maioria dos meios de comunicação da Eslováquia. “E isso foi o sopro que
terminou por derrubar Fico. As pessoas saíram às ruas em massa. E a indignação
ainda é monumental”, salienta Peter Bardy, diretor do site de notícias onde
Kuciak trabalhava. Na lapela ele usa um broche com o lema #AllForJan (“todos
por Jan”), que se tornou o grito de ira dos eslovacos.
Às suas costas, na sala de reuniões, um grande cartaz esmiúça com
nomes e rostos grande parte dos tentáculos da rede criminosa. No extremo,
Antonino Vadala, vinculado à ’Ndragheta e procurado pelas autoridades
italianas, o que não o impediu de enriquecer na Eslováquia através dos
suculentos fundos de coesão comunitários. Nunca foi investigado nem detido. E
não é que passasse despercebido. O suposto empresário dirigia um Lamborghini
pelas decrépitas estradas do leste eslovaco, bastião do SMER, o partido do
Governo, e uma das áreas mais pobres do país. Lá, o italiano construiu uma
chamativa casa para si.
A conexão entre a Vadala e Fico se chama Maria Troskova. É uma
ex-modelo de lingerie e candidata ao Miss Universo, com quem o italiano manteve
uma relação sentimental e profissional – ela chegou a ser sócia das suas
empresas. Troskova, de 26 anos, passou depois a integrar o Governo. Foi
galgando postos até ser nomeada assessora pessoal do primeiro-ministro, um
cargo criado especialmente para ela, e para o qual não tinha qualquer qualificação.
Antes, havia passado pela equipe do deputado Viliam Jasan, um dos aliados mais
próximos do primeiro-ministro, e também relacionado com Vadala.
Ambos caíram junto com Fico, que dias depois do assassinato, e quando
a indignação dos eslovacos tinha se votado contra seu Governo, colocou
literalmente sobre a mesa um milhão de euros em notas como recompensa a quem
desse alguma pista sobre o assassinato de Kuciak e Kusnirova. Com essa imagem
digna de um filme ele pretendia deixar para trás os furiosos ataques à
imprensa, pelos quais tinha se caracterizado. “Chegou a nos chamar de hienas e
de prostitutas”, insiste Kostolny Matus, diretor do Dennik N, um jornal independente
que ganhou prestígio por publicar célebres escândalos de políticos e
empresários eslovacos.
Como as reportagens de Kuciak, os artigos do Dennik N apontavam
muitas vezes para Fico, famoso por suas ligações com obscuros oligarcas do
país, a cujo apoio deve o cargo e que devolveu-lhes o favor com milionárias
concessões de obras públicas, hotéis, hospitais e até um estádio de hóquei, o
esporte nacional. E também apontavam para seu já demitido ministro do Interior,
Robert Kalinak. Ou para o chefe da polícia, Tibor Gaspar, cujo nome surgiu em
uma investigação
jornalística sobre uma opaca empresa de segurança privada, que havia
espionado jornalistas e adversários de Fico e que é propriedade de um de seus
parentes.
Apesar de tudo, nos últimos seis anos nenhum político ou empresário de
alto nível foi condenado por corrupção na Eslováquia. Os tribunais deram
sentenças pequenas contra alguns políticos locais, mas a metade dos casos de
suborno no país que vai a julgamento envolve valores inferiores a cem euros.
Isso chama a atenção. “Em um país em que o Governo controla o procurador-geral,
a agência anticorrupção e o chefe da polícia, se garante sua salvaguarda e a de
‘seus homens’”, alerta a especialista Wienk. De fato, Kuciak havia recebido
ameaças de um desses obscuros oligarcas do entorno do SMER, mas as autoridades
nunca agiram contra ele.
Depois da maltesa Daphne Caruana, o caso do eslovaco é o segundo
assassinato de um jornalista em menos de seis meses na UE. Crimes que colocaram
sob os holofotes a liberdade de imprensa e
o risco para jornalistas em países muito distantes da situação de países como México, Venezuela, Síria ou Eritreia. Desde o
assassinato do eslovaco, as redações de todo o país instalaram novas medidas de
proteção alguns de seus colegas, como Bardy, carregam no bolso um “botão de
pânico”, que podem apertar para pedir ajuda caso se sintam ameaçados.
Ambos os assassinados investigavam assuntos de corrupção e haviam
avisado seus Governos. Mas, como no caso de Caruana, assassinada com um
carro-bomba em outubro, o crime de Kuciak e sua noiva está longe de ser
resolvido. Em março, as autoridades prenderam sete pessoas ligadas ao
assassinato, todas da rede ítalo-eslovaca; entre elas o polêmico Antonino
Vadala. Só ele permanece na prisão. Mas não pelo caso do jornalista, mas por
suas contas pendentes com a justiça italiana. A falta de respostas indigna os
cidadãos, que continuam a sair às ruas semana após semana. O SMER, que governa
em coalizão com outros dois partidos, evitou as eleições antecipadas graças ao
apoio destes, explica o deputado da oposição Gabor Grendel. No domingo, cerca
de 30.000 pessoas se reuniram em Bratislava para exigir a demissão do chefe da
polícia, que consideram impossibilitado de continuar no cargo. O novo ministro
do Interior, responsável por nomear e demitir a autoridade policial, evitou
comentar o caso.
Não se sabe até o momento qual dos casos que Kuciak investigava
desencadeou sua morte. Nos últimos meses, o jornalista também havia investigado
a máfia albanesa e seus negócios de narcotráfico na Eslováquia, por exemplo. As
investigações se concentram agora nas câmeras de segurança da cidade de Velka
Maca. Lá, no portão da casa que Kuciak e Kusnirova tinham comprado e estavam
reformando, dezenas de velas, flores e mensagens afirmam que o casal, que tinha
planejado se casar em maio, não será esquecido.
“Aparentemente, ela nem sequer deveria estar aqui naquele dia, mas as
chuvas levaram ao fechamento da escavação em que trabalhava e ela decidiu vir
para ver Jan”, disse a senhora Regina. Ela mora na casa amarela da esquina. Tem
73 anos e se orgulha de que nada acontece na cidade sem que ela saiba. “Tudo
deve ter acontecido durante a noite”, diz ela com aflição. Como as dos
eslovacos, suas esperanças de encontrar os culpados se diluem com o passar dos
dias. No portão enferrujado da casa de Kuciak e Kusnirova ainda está a mensagem
que alguém escreveu em letras amarelas: “O amor é mais forte que a maldade”.
EL
PAÍS
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