Editorial
Dezenas
de imigrantes obtiveram certidão de nascimento, identidade, título de eleitor e
passaporte. Crime pode colocar segurança nacional em risco.
O Jornal
Nacional mostra uma prova assustadora da vulnerabilidade do Brasil ao crime
internacional e ao terrorismo. Uma quadrilha transformou dezenas de imigrantes
sírios em cidadãos brasileiros, com certidão de nascimento, identidade, título
de eleitor. E passaporte.
A
reportagem exclusiva do Paulo Renato Soares e do Tyndaro Menezes mostra como
foi que isso aconteceu no Rio de Janeiro - a sede dos jogos olímpicos de 2016.
Oito
meses de investigação e os policiais chegaram a um endereço na Zona Norte do
Rio. Nele, vive Ali Kamel Issmael. Ele é sírio e tem e visto permanente para
morar no Brasil. Aos 71 anos, não chamava atenção, mas os investigadores
descobriram que ele é personagem importante num golpe audacioso: fazer outros
sírios se tornarem brasileiros de papel passado, e com documentos acima de
qualquer suspeita. Ou quase.
A
polícia já identificou 72 sírios envolvidos na fraude, inclusive a mulher dele,
Basema Alasmar.
Jornal
Nacional: Em que cidade a senhora nasceu?
Basema Alasmar: ‘Não lembra’, não.
Jornal Nacional: Ah, a senhora não sabe onde nasceu?
Basema Alasmar: Não ‘lembra’.
Basema Alasmar: ‘Não lembra’, não.
Jornal Nacional: Ah, a senhora não sabe onde nasceu?
Basema Alasmar: Não ‘lembra’.
A
polícia diz que Ali Kamel Issmael era o anfitrião de grupos que vinham da Síria
e de outras partes do mundo, e antes da mudança de nacionalidade, ele oferecia
uma espécie de pacote de turismo, com direito a passeios pela cidade e
tradução. Cartões postais, praias – tudo registrado.
Depois
vinham os negócios, que começavam num cartório de registro na Zona Oeste da
Cidade. Com a ajuda de um funcionário e um ex-funcionário, os sírios
conseguiram um milagre. Nasceram de novo, como brasileiros.
A
investigação mostrou que a fraude acontecia nos livros de registros de
nascimento, nas certidões de nascimento. Uma perícia revelou que foi um
trabalho grosseiro. Os livros têm folhas soltas, rasuradas, adulteradas e até
coladas. Mesmo folhas que já tinham sido canceladas no passado foram usadas
para criar uma certidão com as informações dos sírios.
Os
documentos registram que eles nasceram no Rio de Janeiro entre as décadas de
1960 e 1970. Mas os investigadores afirmam que as fraudes aconteceram entre
2012 e 2014.
Eles
dizem que Jorge Luiz da Silva, o funcionário do cartório, arrancava as folhas
dos livros e levava para David dos Santos Guido. Guido é um ex-funcionário, que
segundo a polícia foi demitido do cartório depois de outra investigação de
fraude. Ele fazia o registro dos sírios como brasileiros em casa. Depois, Jorge
recolocava as folhas no lugar.
Jornal
Nacional: O senhor adulterou as certidões?
Guido: De jeito nenhum...
Jornal Nacional: E o que que você declara sobre as acusações que estão sendo feitas?
Guido: De jeito nenhum...
Jornal Nacional: E o que que você declara sobre as acusações que estão sendo feitas?
“Eles
arrancavam as folhas dos livros cartorários - são mais de 4 mil livros
cartorários - arrancavam aquelas folhas originais, e o funcionário enxertava, a
nova folha numa certidão de nascimento naquele livro cartorário. Ou seja,
deixava de existir um brasileiro nato, ou naturalizado, pra dar origem a um
sírio supostamente brasileiro”, explicou o delegado Aloysio Falcão, da
Delegacia de Defraudações.
A dupla
nem se preocupou com a escolha das informações que eram registradas. Todos os
sírios se tornaram brasileiros com certidões feitas bem depois do dia do
nascimento, são os chamados registros tardios.
Pelo que
está nos documentos, todos nasceram dentro de casa, nunca em hospitais. E,
detalhe, os endereços são sempre os mesmos também. Só num dos apartamentos de
um prédio na Tijuca teriam nascido 13 desses brasileiros falsificados. É o
mesmo o bairro onde vive Ali Kamel Issmael.
Informações
falsas, mas o documento podia ser considerado verdadeiro, e com essa certidão
de nascimento nas mãos, os sírios tinham todos os direitos de qualquer outro
brasileiro. E como brasileiros - mesmo sem falar nada da nossa língua - foram a
outras repartições públicas.
Sem
nenhuma dificuldade, os sírios estiveram no Detran do Rio, onde são feitas as
carteiras de identidade: 51 dos 72 sírios saíram de lá com o documento. Nenhum
sistema conseguiu detectar a fraude.
Ter o
CPF também não foi problema: 39 sírios têm o documento. E podiam votar e até
ser eleitos, porque 52 deles têm o título de eleitor também.
As
suspeitas começaram a aparecer quando um funcionário do Detran desconfiou das
certidões de nascimento, que tinham informações muito parecidas. Ele avisou à
delegacia que investiga fraudes e os policiais descobriram que os sírios não
queriam se passar por brasileiros apenas no Brasil. Pelo menos 20 deles tiraram
o passaporte brasileiro. O que ninguém sabe até agora é onde esses sírios estão
hoje.
Os
investigadores descobriram nas redes sociais que muitos viajam pelo mundo todo:
Paris, Nova York, Londres. Outros não se intimidam ao compartilhar textos que
defendem atos terroristas, ou mostrar simpatia por Hitler e o nazismo.
Atendendo
a um pedido da polícia, o consulado americano no Rio informou que 17 sírios com
documentos brasileiros feitos a partir da fraude pediram visto para entrar nos
Estados Unidos. Desses, cinco fizeram o pedido com o passaporte brasileiro.
Três são ex-militares das Forças Armadas da Síria.
O
governo dos Estados Unidos avisou que se eles apresentarem documentos
brasileiros em território americano, vão pra cadeia. No Rio, a mulher de Ali
Kamel Issmael foi presa em flagrante por falsidade ideológica
Basema
Alasmar apresentou um passaporte brasileiro quando os policiais chegaram. Mas
logo depois admitiu ter outro - sírio - que estava escondido numa vizinha. O
problema é que, para cada documento, havia um local de nascimento diferente.
Ali
Kamel Issmael, David dos Santos Guido, ex-funcionário do cartório, e Jorge Luiz
da Silva Mota, que ainda trabalha lá, respondem ao inquérito em liberdade
também por falsidade ideológica e associação criminosa.
Agora o
paradeiro desses sírios que querem se passar por brasileiros vai ser problema
também de outras autoridades.
Delegado:
Nós da Polícia Civil já oficiamos a Polícia Federal pra cancelamento e exclusão
dos passaportes e vistos desses sírios que obtiveram de forma fraudulenta, bem
como oficiamos também já o Ministério das Relações Exteriores pra tomarem as
providências cabíveis.
Jornal
Nacional: E é importante saber por que?
Delegado: É importante saber porque a segurança nacional está em jogo.
Delegado: É importante saber porque a segurança nacional está em jogo.
O
Ministério das Relações Exteriores declarou que não fala sobre questões ligadas
a estrangeiros no Brasil.
O
Ministério da Justiça vai pedir informações a autoridades do Rio.
O Detran
do Rio informou que, por lei, só pode exigir certidão de nascimento ou de
casamento pra emitir a carteira de identidade.
A
Receita Federal declarou que está implantando um processo integrado pra evitar
informações fraudulentas na inscrição do CPF.
A
Corregedoria-Geral da Justiça fez uma intervenção no cartório em 2010 por
suspeita de irregularidades e afirma que as fraudes são anteriores a esse
período. Mas a polícia diz que foram depois. O serviço de registro de
nascimentos no cartório foi extinto.
O
Tribunal Regional Eleitoral do Rio declarou que, pra obter o título, o eleitor
precisa declarar que as informações são verdadeiras, sob pena de crime
eleitoral.
A
Polícia Federal afirmou que tem um inquérito sobre o caso, mas que não pode
comentar porque está em segredo de Justiça.
O
advogado do sírio Ali Kamel Issmael e da mulher dele diz que vai provar a
inocência dos clientes.
Nós não
conseguimos contato com a defesa do funcionário do cartório Jorge Luiz da
Silva.
Nota
divulgada pela assessoria do presidente do TSE e do TRE: "A matéria
veiculada no Jornal Nacional, que mostra uma quadrilha no Rio de Janeiro que
falsifica certidões de nascimento para tornar Sírios em brasileiros natos,
demonstra aquilo que a Justiça Eleitoral tem denunciado, que o sistema de
registro civil no Brasil é falho e que é necessário ser aperfeiçoado. Por isso,
o TSE já encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 1775/2015 que cria o
Registro Civil Nacional (RCN), baseado na identificação biométrica do cidadão
pela Justiça Eleitoral para ser no futuro a base para um dcumento único,
inequívoco, unívoco e seguro de identificação do cidadão."
O Globo
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