Nathalia Tavolieri
& Malu Delgado
No
Brasil, prisões superlotadas estimulam ódio ao sistema e funcionam como uma
"faculdade do crime". Para especialistas, políticas de
ressocialização efetivas e programas de prevenção à criminalidade são urgentes.
O modelo
de organização do sistema prisional brasileiro, cuja população carcerária
cresceu 575% em duas décadas e meia, segundo dados oficiais do Ministério da
Justiça, e a política de segurança pública nacional produzem efeitos colaterais
que ajudam a compreender a rebelião que deixou
ao menos 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim
(Compaj), em Manaus, encerrada nesta segunda-feira (02/01).
Segundo
o cientista político e o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da
Violência da USP, o Brasil vive o paradoxo de apostar no aprisionamento em
massa como forma de controlar o crime enquanto as prisões superlotadas
fortalecem cada vez mais os "exércitos das gangues
prisionais". "Os complexos penitenciários do Brasil servem
hoje como um networking, uma faculdade do crime", afirma.
Conforme
o último relatório sobre a população carcerária brasileira, atualizado em
dezembro de 2014 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Brasil
ocupa o quarto lugar no ranking mundial (622.202 presos), sendo superado
apenas pelos Estados Unidos, China e Rússia, nesta ordem. O alto índice de
prisões provisórias fortalece a tese do encarceramento em massa: do total de
pessoas privadas de liberdade no Brasil, aproximadamente quatro entre dez (41%)
foram presas sem terem sido julgadas.
"Os
Estados Unidos começaram a reduzir a sua população carcerária e têm discutido a
legalização das drogas. E a Rússia e a China têm pensado em como aliviar
as prisões", aponta Paes Manso.
Para o
presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do
Brasil do Amazonas, Epitácio Almeida, que participou das negociações do motim
do Compaj, é quase impossível que o detento não se contamine com as facções
criminosas dentro da prisão. "Quando o indivíduo é preso, ele entra em
contato com um governo paralelo, o governo do crime. Vai ter de se submeter a
ordens e comandos lá dentro", afirma Almeida. "Os presídios no Brasil
são construídos para trancafiar, amontoar pessoas."
Para o
promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao
Crime Organizado (Gaeco) de Presidente Prudente, o principal e mais urgente
problema do sistema carcerário brasileiro é a superlotação dos
presídios, com um déficit de vagas pouco abaixo de 50%. "Há unidades
para 600 presos que abrigam três mil. Celas com 50, 60 detentos. É quase
humanamente impossível pensar na ressocialização desses indivíduos."
A facção
criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), envolvida na rebelião em Manaus
e um dos focos de estudo de Paes Manso, fortaleceu-se exatamente dentro
desse modelo. São Paulo, onde o grupo está baseado, tem cerca de 500
presos por 100 mil habitantes.
"O
PCC é uma facção que, nos últimos anos, ganhou dinheiro com o tráfico de drogas
como nunca tinha acontecido antes, vendendo a partir dos contatos com os
presídios. Com esse networking atrás das grades, eles vendem a todos
os estados brasileiros e criaram uma grande rede de distribuição varejista de
drogas", explica Paes Manso.
O
Primeiro Comando passou a controlar fontes atacadistas do Paraguai e da
Bolívia e a vender para comércios locais. "Começaram a fazer várias
alianças, evitando confrontos com grupos locais, mas nem sempre isso era
possível. Isso criou algumas inimizades. A Família do Norte (FDN) e o Primeiro
Comando Catarinense, por exemplo, são grupos inimigos do PCC", diz o
pesquisador. Além do PCC, a FDN – aliada ao Comando Vermelho (CV), do Rio
de Janeiro –esteve envolvida na rebelião em Manaus.
O
fortalecimento de gangues a partir dos presídios foi observado em outros
países, como Honduras e El Salvador, onde novas políticas públicas estão
sendo buscadas, exemplifica Paes Manso.
"Juventude entregue à
violência"
Outra contradição
do sistema prisional brasileiro apontada por Paes Manso é que, com o
crescimento das facções, o poder público criou um sistema de monitoramento dos
presos no cárcere bastante eficiente. Há cerca de dois anos, segundo o
pesquisador, autoridades governamentais e pesquisadores têm ciência de que
houve uma ruptura na aliança tácita entre os grupos Comando Vermelho e PCC,
considerados os mais bem estruturados no Brasil. Essa aliança entre ambos foi
feita por razões estratégicas, para não prejudicar o comércio de drogas. O
rompimento foi identificado em grampos telefônicos, nos chamados
"salves", os comunicados entre gangues.
"Ironicamente,
apesar de serem grupos muito fortes, eles são de certa maneira
frágeis porque deixam registros de tudo o que fazem. E tudo isso foi
registrado pelas comunidades de inteligências dos estados. O PCC tem 10 mil
pessoas, e 80% [de seus membros] estão presos."
De
acordo com Gakiya, enquanto os conflitos ficarem limitados às muralhas das
prisões, e a violência não se estender para as ruas, a população não
sofrerá impactos imediatos da precariedade do sistema carcerário brasileiro.
"Mas, uma hora, esses indivíduos vão retornar à sociedade. E vão voltar
muito piores", afirma o promotor.
Para
Almeida, sem a criação de espaços para oficinas técnicas e cursos
profissionalizantes nos presídios, que ofereçam perspectivas de um futuro fora
da criminalidade, "a possibilidade de ressocialização é zero".
O
governo falha em atender garantias básicas previstas pela legislação
brasileira, como de higiene, alimentação e integridade física. Também não
há trabalho em todos os presídios nem separação de unidades por idade ou
periculosidade, como pede a lei. "O Estado é um descumpridor de leis de
execuções penais. Legisla e não cumpre", afirma Almeida. "Enquanto
o Estado não tiver políticas de ressocialização efetivas e programas de
prevenção à criminalidade, estaremos entregando a juventude à violência."
Investimentos e novo
modelo
Investir
dinheiro em penitenciárias não é prioridade dos governos neste momento de
crise econômica. "Não só para os presídios faltam recursos.
Alguns
estados não têm dinheiro para pagar vários setores. Imagine
[gastar] com presídio", afirma Gakiya. Para o promotor, diante
da escassez de recursos, os governantes têm preferido destinar os poucos
recursos disponíveis para pagamento de, por exemplo, salários dos
policiais e melhorias em escolas públicas – medidas mais populares entre
os eleitores, mas que levam a um abandono quase que completo do sistema
prisional. "Uma hora, o sistema carcerário entra em colapso. É o que
está acontecendo agora."
A atual
instabilidade política do Brasil e os sinais de fragilidade das instituições
prejudicam o debate sobre um novo modelo de segurança pública, considera Paes
Manso. O envolvimento de boa parte da classe política em supostos esquemas de
corrupção, sob alvo dos investigadores da Operação Lava Jato,
dificulta uma discussão racional sobre a população carcerária. "Hoje,
falar de Estado e política pública no Brasil virou uma coisa maluca. O que
vamos falar de Estado de Direito com um governo em que boa parte está sendo
presa ou é investigada, é réu?", pontua.
"Quem
defende repensar esse modelo de autoextermínio, de aprisionamento em massa, não
defende os presos nem os criminosos, mas defende que se repense um modelo que
atualmente fortalece o crime, cria mais revolta, mais raiva, mais disposição
para entrar na vida criminosa", diz o pesquisador. "A vida criminosa
depende desse combustível que é o ódio ao sistema. Eles são os nossos
jihadistas, que preferem morrer aos 25 anos, mas matando e mandando, a
morrer aos 80 anos humilhados e obedecendo."
DW – Deutsche Welle
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