Helena Chagas
Não foram os políticos importantes instalados no coração do poder os principais atingidos pela delação do ex-executivo da Odebrecht Claudio Melo Filho, focada basicamente nas relações entre a empreiteira e o Congresso. Eles se machucaram bastante, alguns até de forma irreparável. Do ponto de vista institucional, porém, o estrago é muito maior. O tiro atinge o Legislativo, a casa onde se fazem as leis, e fere de morte nosso já abalado sistema representativo ao desnudar cruamente um pedaço de corpo que era apenas entrevisto em decotes e fendas: deputados e senadores cobrando por emendas, pareceres, relatórios, aprovação de projetos, medidas provisórias, etc.
Só na delação que veio a público, foram ao menos R$ 17 milhões pagos a políticos e a partidos em troca da aprovação de projetos. Mas é bom lembrar que Melo Filho é apenas um colaborador dos 77 da Odebrecht, que é uma das várias empresas citadas na Lava Jato, que por sua vez estão entre centenas de outras que, diariamente, defendem seus interesses no Legislativo. Defesa na qual não haveria nada de irregular se feita à luz do dia, dentro de padrões éticos e regras transparentes, como ocorre em outros países onde o lobby é regulamentado.
Mas o que fica claro agora, de forma chocante, é que nos últimos anos esse “comércio legislativo” parece ter crescido muito, a ponto de se banalizar. É um comportamento que, evidentemente, sempre existiu. Mas era exceção naqueles tempos de Ulysses Guimarães, Afonso Arinos e outros que, claramente, tinham no interesse público sua principal bússola para elaboração de leis. Por tudo o que se vê hoje, não se pode mais dizer isso.
Tudo indica que uma nova e pujante indústria legisferante – que teve em Eduardo Cunha um de seus expoentes – foi se criando e sendo aperfeiçoada nos últimos anos. Coincidência ou não, isso foi acontecendo na medida em que se deteriorava o sistema político e se aprofundava o fosso entre eleitos e eleitores, representantes e representados.
E aí chegamos ao nó do problema. Por uma série de distorções no sistema político – e vamos deixar aqui de lado as deformações individuais de caráter e os desvios de moral - legisladores eleitos não se sentem obrigados a representar aqueles que neles votaram. Preferem negociar seus atos e posicionamentos com quem lhes pagar mais.
Certo, há deputados e senadores honestos. Existem sim. Há outros eleitos por setores, corporações e áreas diversas de interesse, que costumam financiar suas campanhas. Há mesmo uns poucos que têm identificação ideológica (isso ainda existe?) com esses setores. Mas quem aperta o botão da urna é o eleitor. Na maioria dos casos, sem ele, nada feito.
Só que o sistema partidário e eleitoral é tão perverso que permite a você votar em Chico e eleger Francisco, votar num partido e trazer outro coligado para Brasília, escolher um senador e vê-lo passar alegremente seu mandato a um suplente que nunca recebeu um só voto e ganhou acesso ao plenário azul do Senado porque financiou a campanha ou é parente de alguém. Aliás, você se lembra em quem votou para o Congresso? Acompanhou sua atuação? Quem te representa?
É a democracia representativa que está em risco quando você tem aquela sensação de que ninguém te representa. É o sistema político que passa atestado de falência quando deputados e senadores perdem a inibição e passam a cobrar e receber pagamentos fora dos anos eleitorais e das contas de campanha, claramente condicionados à aprovação de projetos e outras matérias. É no mínimo estranho um sistema eleitoral em que os políticos de carreira vão ficando cada vez mais ricos enquanto o resto do país empobrece.
Bem que o chanceler prussiano Otto Von Bismarck já dizia que as leis são como salsichas, e por isso é melhor não saber como são feitas. Mas isso foi lá no século XIX, e ele não vivia numa grande democracia de massas, um sistema em que os governantes são eleitos pelo voto direto, secreto e até eletrônico. Já passou da hora de nos curarmos dessa indigestão, provocada por salsicha velha, estragada e apodrecida.
A única vantagem de se ver um sistema político desmoronar é a oportunidade de tentar construir outro, representativo na verdadeira acepção da palavra. Pois é óbvio que políticos e leis terão melhor qualidade quando representarem de fato aqueles que neles votaram.
O Globo
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