Editorial
O
prolongado conflito na Síria já foi comparado, em importância estratégica, à
feroz resistência da União Soviética na II Guerra Mundial, que representou o
fator decisivo para a derrota do nazifascismo. Guardadas as proporções – sendo
sempre relevante lembrar que os russos, bielorrussos, ucranianos e outros povos
integrantes da URSS responderam pela metade dos cerca de 55 milhões de mortos
no conflito mundial –, a Síria poderá converter-se no ponto de inflexão da
mudança de época que marca o tempo atual, especificamente, quanto ao
esvaziamento da “Nova Ordem Mundial” decretada pelas elites dirigentes dos EUA,
após o fim da Guerra Fria.
Na edição de 7 de outubro de 2015 (“Síria: Stalingrado da ‘Nova Ordem Mundial’”), a Resenha Estratégica chamou a atenção para o significado estratégico da intervenção russa no conflito sírio, observando:
(…) A iniciativa russa coloca em xeque toda a agenda estratégica criada pelos “neoconservadores” estadunidenses, após a implosão da União Soviética, a mal denominada “Nova Ordem Mundial”, para estabelecer uma hegemonia unipolar baseada no poderio militar de Washington, esquema no qual o domínio da região do Grande Oriente Médio é crucial. Se for bem-sucedida em eliminar a ameaça do radicalismo islamista contra os Estados nacionais da Síria e do Iraque, como tudo indica que será, a ação russa poderá representar para tal agenda um ponto de inflexão análogo à Batalha de Stalingrado, que assinalou o limite do avanço nazista na II Guerra Mundial.
Com um certo tom otimista, a nota concluía especulando sobre os possíveis efeitos do desgaste da agenda hegemônica capitaneada por Washington, inclusive, dentro dos próprios EUA e seus aliados:
Ao travar a “Batalha da Síria”… a Federação Russa de Vladimir Putin pode estar estabelecendo um limite ao avanço da guerra da “Nova Ordem Mundial” contra os Estados nacionais soberanos e suas instituições, os verdadeiros alvos da campanha do Establishment oligárquico de Washington e seus sócios-subordinados. Por uma ironia da História, assim como Stalingrado foi o ponto de inflexão para a derrocada nazista, a Síria poderá contribuir para livrar a grande nação estadunidense da infestação “neoconservadora” e a Europa, do cativeiro dos “oligocratas” de Bruxelas.
Foram necessários 14 meses e dezenas de milhares de mortes adicionais, para que uma vitória militar sobre as hordas de fanáticos islamistas, que passam por “oposição” ao regime do presidente Bashar al-Assad, se tornasse uma perspectiva real, com a retomada de Aleppo, a segunda maior cidade do país, pelas forças sírias e seus aliados russos, iranianos e libaneses. Em um sentido muito real, a libertação de Aleppo se assemelha à de Stalingrado, pois será extremamente difícil para os mercenários do Estado Islâmico (EI) e seus correligionários jihadistas retomar a iniciativa no conflito, a despeito de triunfos localizados como a retomada da histórica cidade de Palmira, da qual haviam sido expulsos em março último.
Tal perspectiva se torna ainda mais concreta diante da mudança de governo em Washington, considerando que o presidente eleito Donald Trump, ao contrário de sua rival derrotada Hillary Clinton, já manifestou a intenção de estabelecer uma relação cooperativa com a Rússia de Vladimir Putin, inclusive no combate ao EI, além de se opor à derrubada de Assad. Se, em lugar de apoiarem a virtualmente inexistente “oposição moderada”, os EUA e seus aliados passarem a combater efetivamente os jihadistas, em coordenação com a Rússia (e cessando as pressões contra Assad), o delirante califado poderá ser em breve uma página virada da História.
Possivelmente, essa percepção está provocando histeria em Washington e levando os círculos mais radicais do Establishment estadunidense a ações mais drásticas, com o intuito de criar fatos consumados que dificultem qualquer mudança de rumo. Uma delas foi a decisão do presidente Barack Obama de liberar os fornecimentos de armas e outros equipamentos bélicos a “forças irregulares, grupos ou indivíduos comprometidos em sustentar ou facilitar as operações militares dos EUA para contra-arrestar o terrorismo na Síria”. A tradução correta é: está liberado o apoio direto às forças que combatem o regime de Damasco.
Embora tenha sido anunciada em 8 de dezembro, é bastante provável que a decisão tenha sido tomada bem antes em sigilo. Sem mencionar que a Agência Central de Inteligência (CIA) nunca deixou de apoiar de forma encoberta vários grupos jihadistas, como a antiga Frente al-Nusra (renomeada Jabhat Fateh al-Sham), diretamente ou por intermédio de prepostos sauditas, cataris e turcos. De fato, apenas um vigoroso abastecimento externo iniciado pelo menos várias semanas antes, poderia permitir que o EI conseguisse reunir cerca de 5 mil homens, com armamentos, equipamentos, tanques e blindados, muitos de tipos ainda não vistos na região, para cercar e expulsar as forças do Exército Sírio que defendiam Palmira.
Registre-se, ademais, que a investida contra Palmira ocorreu após a decisão do comando estadunidense da coalizão “anti-EI” que opera no Iraque, de suspender as operações contra as forças jihadistas agrupadas na sua “capital” síria, em Raqqa. Aproveitando a bem-vinda pausa, o EI pode montar a sua operação contra Palmira, num esforço desesperado para desviar a investida final das forças sírias e aliadas contra os últimos enclaves jihadistas na área leste de Aleppo.
Farejando a tramoia, o chanceler russo Sergei Lavrov não mediu palavras, para afirmar que a operação teria sido articulada com a coalizão, como ação diversionista. Segundo ele, o fato de a ofensiva do EI ter atravessado “os territórios patrulhados pelos aviões da coalizão liderada pelos EUA, nos faz pensar que – e realmente espero estar errado nisto – que ela foi orquestrada e coordenada para dar um respiro a esses bandidos que estão entrincheirados em Aleppo Leste (Reuters, 12/12/2016)”.
Em entrevista à rede RT, o presidente Assad também foi categórico:
(…) Eles vieram com uma massa humana e um poder de fogo grande e diferente, que o EI nunca teve antes desse ataque, e atacaram em uma vasta frente de dezenas de quilômetros, que poderia ser uma frente de exércitos. O EI só poderia ter feito isso com o apoio de Estados. Não um Estado, mas Estados. Eles vieram com metralhadoras, canhões e artilharia diferentes, tudo é diferente. Então, isto só poderia ter acontecido nesse deserto com a supervisão da aliança estadunidense que, supostamente, deveria atacá-los em Raqqa, Mosul e Deir ez-Zor, mas isto não aconteceu; ou eles fizeram vista grossa quanto ao que o EI ia fazer ou – e é nisto que eu acredito – os moveram para Palmira (RT, 14/12/2016).
Em um dramático, mas esperançoso, depoimento à agência católica Zenit, o vigário apostólico de Aleppo, monsenhor Georges Abou Khazen, criticou o embargo ocidental contra a Síria, afirmando que ele abrange apenas “a ajuda humanitária, a gasolina e os remédios”, enquanto as armas de todos os tipos continuam entrando livremente no país.
Não obstante, o prelado observa que, apesar da cautela natural do povo sírio, “o clima que se respira entre as pessoas é de alegria, otimismo e esperança”, com a libertação da cidade (Zenit, 13/12/2016).
Em paralelo, em um gesto altamente simbólico, o papa Francisco enviou uma carta a Assad, na qual expressa o seu pesar pelas dificuldades vividas pela Síria e seu povo. Além disso, reitera a condenação a todas as formas de extremismo e terrorismo e apela ao presidente para garantir o respeito aos direitos humanos da população civil e o acesso à ajuda humanitária. E conclui com uma exortação para uma união de esforços para por fim ao conflito, permitindo que a Síria volte a ser um modelo de convivência entre culturas e religiões, como tem sido ao longo da História.
A carta foi entregue ao presidente sírio pelo núncio apostólico em Damasco, Mario Zenari. Na reunião, Assad transmitiu a sua satisfação pela decisão de Francisco de manter Zenari, recém nomeado cardeal, como núncio apostólico em Damasco, um caso único no mundo e uma forma de ressaltar a grande preocupação do Vaticano pela situação na Síria (Zenit, 12/12/2016).
Apesar da destruição de grande parte da sua infraestrutura e das centenas de milhares de mortos, feridos e exilados, Aleppo entra para a História como símbolo da resistência contra a barbárie e a sua instrumentalização a serviço de uma agenda hegemônica.
MSIa
Na edição de 7 de outubro de 2015 (“Síria: Stalingrado da ‘Nova Ordem Mundial’”), a Resenha Estratégica chamou a atenção para o significado estratégico da intervenção russa no conflito sírio, observando:
(…) A iniciativa russa coloca em xeque toda a agenda estratégica criada pelos “neoconservadores” estadunidenses, após a implosão da União Soviética, a mal denominada “Nova Ordem Mundial”, para estabelecer uma hegemonia unipolar baseada no poderio militar de Washington, esquema no qual o domínio da região do Grande Oriente Médio é crucial. Se for bem-sucedida em eliminar a ameaça do radicalismo islamista contra os Estados nacionais da Síria e do Iraque, como tudo indica que será, a ação russa poderá representar para tal agenda um ponto de inflexão análogo à Batalha de Stalingrado, que assinalou o limite do avanço nazista na II Guerra Mundial.
Com um certo tom otimista, a nota concluía especulando sobre os possíveis efeitos do desgaste da agenda hegemônica capitaneada por Washington, inclusive, dentro dos próprios EUA e seus aliados:
Ao travar a “Batalha da Síria”… a Federação Russa de Vladimir Putin pode estar estabelecendo um limite ao avanço da guerra da “Nova Ordem Mundial” contra os Estados nacionais soberanos e suas instituições, os verdadeiros alvos da campanha do Establishment oligárquico de Washington e seus sócios-subordinados. Por uma ironia da História, assim como Stalingrado foi o ponto de inflexão para a derrocada nazista, a Síria poderá contribuir para livrar a grande nação estadunidense da infestação “neoconservadora” e a Europa, do cativeiro dos “oligocratas” de Bruxelas.
Foram necessários 14 meses e dezenas de milhares de mortes adicionais, para que uma vitória militar sobre as hordas de fanáticos islamistas, que passam por “oposição” ao regime do presidente Bashar al-Assad, se tornasse uma perspectiva real, com a retomada de Aleppo, a segunda maior cidade do país, pelas forças sírias e seus aliados russos, iranianos e libaneses. Em um sentido muito real, a libertação de Aleppo se assemelha à de Stalingrado, pois será extremamente difícil para os mercenários do Estado Islâmico (EI) e seus correligionários jihadistas retomar a iniciativa no conflito, a despeito de triunfos localizados como a retomada da histórica cidade de Palmira, da qual haviam sido expulsos em março último.
Tal perspectiva se torna ainda mais concreta diante da mudança de governo em Washington, considerando que o presidente eleito Donald Trump, ao contrário de sua rival derrotada Hillary Clinton, já manifestou a intenção de estabelecer uma relação cooperativa com a Rússia de Vladimir Putin, inclusive no combate ao EI, além de se opor à derrubada de Assad. Se, em lugar de apoiarem a virtualmente inexistente “oposição moderada”, os EUA e seus aliados passarem a combater efetivamente os jihadistas, em coordenação com a Rússia (e cessando as pressões contra Assad), o delirante califado poderá ser em breve uma página virada da História.
Possivelmente, essa percepção está provocando histeria em Washington e levando os círculos mais radicais do Establishment estadunidense a ações mais drásticas, com o intuito de criar fatos consumados que dificultem qualquer mudança de rumo. Uma delas foi a decisão do presidente Barack Obama de liberar os fornecimentos de armas e outros equipamentos bélicos a “forças irregulares, grupos ou indivíduos comprometidos em sustentar ou facilitar as operações militares dos EUA para contra-arrestar o terrorismo na Síria”. A tradução correta é: está liberado o apoio direto às forças que combatem o regime de Damasco.
Embora tenha sido anunciada em 8 de dezembro, é bastante provável que a decisão tenha sido tomada bem antes em sigilo. Sem mencionar que a Agência Central de Inteligência (CIA) nunca deixou de apoiar de forma encoberta vários grupos jihadistas, como a antiga Frente al-Nusra (renomeada Jabhat Fateh al-Sham), diretamente ou por intermédio de prepostos sauditas, cataris e turcos. De fato, apenas um vigoroso abastecimento externo iniciado pelo menos várias semanas antes, poderia permitir que o EI conseguisse reunir cerca de 5 mil homens, com armamentos, equipamentos, tanques e blindados, muitos de tipos ainda não vistos na região, para cercar e expulsar as forças do Exército Sírio que defendiam Palmira.
Registre-se, ademais, que a investida contra Palmira ocorreu após a decisão do comando estadunidense da coalizão “anti-EI” que opera no Iraque, de suspender as operações contra as forças jihadistas agrupadas na sua “capital” síria, em Raqqa. Aproveitando a bem-vinda pausa, o EI pode montar a sua operação contra Palmira, num esforço desesperado para desviar a investida final das forças sírias e aliadas contra os últimos enclaves jihadistas na área leste de Aleppo.
Farejando a tramoia, o chanceler russo Sergei Lavrov não mediu palavras, para afirmar que a operação teria sido articulada com a coalizão, como ação diversionista. Segundo ele, o fato de a ofensiva do EI ter atravessado “os territórios patrulhados pelos aviões da coalizão liderada pelos EUA, nos faz pensar que – e realmente espero estar errado nisto – que ela foi orquestrada e coordenada para dar um respiro a esses bandidos que estão entrincheirados em Aleppo Leste (Reuters, 12/12/2016)”.
Em entrevista à rede RT, o presidente Assad também foi categórico:
(…) Eles vieram com uma massa humana e um poder de fogo grande e diferente, que o EI nunca teve antes desse ataque, e atacaram em uma vasta frente de dezenas de quilômetros, que poderia ser uma frente de exércitos. O EI só poderia ter feito isso com o apoio de Estados. Não um Estado, mas Estados. Eles vieram com metralhadoras, canhões e artilharia diferentes, tudo é diferente. Então, isto só poderia ter acontecido nesse deserto com a supervisão da aliança estadunidense que, supostamente, deveria atacá-los em Raqqa, Mosul e Deir ez-Zor, mas isto não aconteceu; ou eles fizeram vista grossa quanto ao que o EI ia fazer ou – e é nisto que eu acredito – os moveram para Palmira (RT, 14/12/2016).
Em um dramático, mas esperançoso, depoimento à agência católica Zenit, o vigário apostólico de Aleppo, monsenhor Georges Abou Khazen, criticou o embargo ocidental contra a Síria, afirmando que ele abrange apenas “a ajuda humanitária, a gasolina e os remédios”, enquanto as armas de todos os tipos continuam entrando livremente no país.
Não obstante, o prelado observa que, apesar da cautela natural do povo sírio, “o clima que se respira entre as pessoas é de alegria, otimismo e esperança”, com a libertação da cidade (Zenit, 13/12/2016).
Em paralelo, em um gesto altamente simbólico, o papa Francisco enviou uma carta a Assad, na qual expressa o seu pesar pelas dificuldades vividas pela Síria e seu povo. Além disso, reitera a condenação a todas as formas de extremismo e terrorismo e apela ao presidente para garantir o respeito aos direitos humanos da população civil e o acesso à ajuda humanitária. E conclui com uma exortação para uma união de esforços para por fim ao conflito, permitindo que a Síria volte a ser um modelo de convivência entre culturas e religiões, como tem sido ao longo da História.
A carta foi entregue ao presidente sírio pelo núncio apostólico em Damasco, Mario Zenari. Na reunião, Assad transmitiu a sua satisfação pela decisão de Francisco de manter Zenari, recém nomeado cardeal, como núncio apostólico em Damasco, um caso único no mundo e uma forma de ressaltar a grande preocupação do Vaticano pela situação na Síria (Zenit, 12/12/2016).
Apesar da destruição de grande parte da sua infraestrutura e das centenas de milhares de mortos, feridos e exilados, Aleppo entra para a História como símbolo da resistência contra a barbárie e a sua instrumentalização a serviço de uma agenda hegemônica.
MSIa
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