Fernando Gabeira
“Tendemos a nos lembrar da última vez que estivemos pra baixo, a memória de por que ficamos naquela merda. É quando decidimos fazer aquela coisa de andar em círculos.” Esta frase de um personagem de Samuel Beckett às vezes me vem à cabeça quando me debruço nas notícias desse ano no Brasil. Sem dúvida, a desmontagem de um imenso esquema de corrupção sistêmico é o grande fato dos últimos tempos. Mas hoje lemos as notícias de uma forma diferente. No passado, as víamos na televisão à noite e nos jornais da manhã. Agora, consultamos o computador de tempos em tempos. E a mesma notícia está lá.
Para quem segue com atenção o processo, a mesma notícia reaparece muitas vezes. Não só porque a vemos muito, mas porque tudo começa com uma suspeita, confirma-se na delação premiada, depois há o indiciamento, a denúncia, a transformação do acusado em réu, e, finalmente, o julgamento. Se somarmos a isso as audiências, intervenções da defesa, o trânsito dos acusados, Cabral pra lá, Cabral pra cá, a presença do tema ocupa todo o centro da cena. Sem contar os choques institucionais que a crise provocou.
É inevitável que seja assim, e é preciso um olhar agudo para captar o movimento, a longa agonia de um sistema partidário em vigor desde a redemocratização. Um dos problemas da onipresença dessa novela de crime e castigo é que a sociedade, exceto por sua intervenção na própria crise, fica em segundo plano.
O Brasil das pessoas que trabalham, inventam e se debatem no cotidiano torna-se muito distante. E temos uma falsa impressão de termos sido jogados num eterno enredo policial. Isso não significa que a sociedade seja pura, que andando por aí não se encontrem sujeira, sacanagem e cinismo. Mas há muitas experiências interessantes, muito mais potencial visível do que no horizonte de Brasília.
Um exemplo disso é o fracasso do Brasil no ranking internacional de educação. Era importante trombeteá-lo. Mas em Sobral, onde foram conquistados avanços, e mesmo nas cidades que visitei, Dores do Turvo e Conceição dos Ouros, há histórias de progresso. Exceções que confirmam a regra, posso admitir. No entanto, são exemplos de que é possível dar grandes passos, alcançar uma educação de melhor qualidade mesmo num panorama desolador.
Não compartilho o otimismo de Darcy Ribeiro, que imaginava para o Brasil a trajetória de uma esplêndida civilização tropical. Minha aspiração é mais modesta. Apenas vejo no cotidiano brasileiro inúmeros estímulos para acreditar na vitalidade do Brasil, apesar da decadência de algumas instituições.
O esquema sistêmico de corrupção foi revelado em grande parte. Os Estados Unidos contribuíram como uma grande síntese, diante do passo de tartaruga do STF. Faltam 800 documentos dos 77 diretores da Odebrecht que fizeram delação premiada. Alguns analistas costumam perguntar: se um diretor apenas delatou quase 200 políticos, quantos não serão delatados? O cálculo não é adequado. O diretor que delatou os políticos é precisamente quem tinha a missão de se relacionar com eles.
Mas as primeiras surpresas que surgiram da delação, na verdade, vieram dos EUA, que descreveram o processo e apontaram a extensão mundial do esquema. Imagino que as novidades, exceto pelas prisões rumorosas, decorrentes do próprio documento americano, devem ser, lentamente, substituídas pelo ritmo arrastado dos processos legais.
As necessárias transformações políticas vão acontecer, mas elas são apenas um fator necessário para a construção do futuro. Nas conversas de rua, observo que as pessoas contam com mudanças na esfera política. Muitas, no entanto, afirmam que na sociedade a mudança mais desejada é um investimento na educação.
Esse termo não é usado apenas como sinônimo de mais dinheiro. Ele significa também atenção, energia. Os escândalos e a crise econômica consolidaram aquela antiga intuição popular de que, a longo prazo, o grande instrumento de mudança está na educação.
Ao lado da mudança política e da reconstrução econômica, o Brasil terá de redefinir suas prioridades. Os problemas da educação se destacam não porque são um imperativo econômico num mundo que se move rapidamente. Eles são vistos hoje como uma espécie de item necessário na lição que o país tira não só dos escândalos que o abalaram, mas também da falência do sistema político que implantamos nesta etapa da democratização. Uma reconstrução econômica inteligente não se apoia apenas no reconhecimento da educação como fator dinâmico, mas também da sustentabilidade.
Hoje sabemos por que davam tantos incentivos fiscais à indústria de automóveis: grana. Mas os incentivos eram o símbolo de um momento em que dilapidávamos não só os recursos fiscais, mas promovíamos as “maiores festas do mundo”.
Esse tempo acabou e nos obriga, ainda que delirando, a enxergar um pouco além da montanha de processos penais que cobre o horizonte.
O Globo
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