Carlos I. S. Azambuja
A
revolução húngara foi vencida devido à invasão do país pelo “exército mais
poderoso do mundo” (segundo o autor do artigo, Cornelius Castoriades em seu
livro “Socialismo ou Barbárie – O Conteúdo do Socialismo”, editora
Brasiliense). Mas, em 1817, a Comuna de Paris foi também abatida. E isso não
impediu os revolucionários, até a metade do século seguinte, e ainda hoje, de
celebrar o seu exemplo e discutir as suas lições.
Que o
exército russo tenha esmagado a revolução húngara, isso explica, talvez, a
menor ressonância nas camadas populares, mas não o silêncio sistemático dos
revolucionários e dos intelectuais de esquerda. Ou será que as idéias deixaram
de ser verdadeiras e válidas quando os tanques russos se põem a atirar sobre
elas?
As
coisas se tornam, todavia, mais claras quando se considera o conteúdo, o
sentido e as implicações da Revolução Húngara. Pode-se, então, compreender este
silêncio no que ele é: uma conseqüência direta do caráter radical dessa
revolução, e uma tentativa de abolir a sua significação e a sua lembrança.
A
sociedade moderna é uma sociedade de capitalismo burocrático. É na Rússia, na
China e nos demais países que se fazem passar por “socialistas” que se realiza
a forma mais pura, a mais extrema – a forma total do capitalismo burocrático. A
Revolução Húngara de 1956 foi a primeira e, até o momento, a única revolução
total contra o capitalismo burocrático total.
Durante
dezenas de anos, os “marxistas”, os “intelectuais de esquerda”, os militantes,
etc. discutiram – e ainda o fazem – sobre o caráter correto ou não da política
stalinista, sobre as causas e a data exata do “Termidor” russo, sobre a
natureza social dos regimes da Rússia e da Europa Oriental (Estados operários
degenerados? Estados não operários degenerados? Estados socialistas com
deformações capitalistas? Estados capitalistas com deformações socialistas?
Os
trabalhadores e a juventude húngara pegaram em armas e colocaram, pela sua
prática, um ponto final nessas discussões. Demonstraram por seus atos que a
diferença entre os operários e o “Estado operário” é a diferença entre a vida e
a morte; e que eles prefeririam morrer combatendo o “Estado operário” do que viver
como operários num “Estado operário”.
Da mesma
forma como o capitalismo fragmentado do Ocidente, o capitalismo burocrático
total do Leste está cheio de contradições e dilacerado por um conflito social
permanente. Essas contradições, esse conflito, periodicamente tomam uma forma
aguda, e o sistema entra numa crise aberta. Ou bem a pressão da população
explorada e oprimida pode até chegar à explosão, ou bem, antes que isso
aconteça, a burocracia reinante pode tentar algumas “reformas”.
Os
campos onde as contradições e conflitos são mais manifestos e mais marcantes
são, naturalmente, os da economia e os da política. Caos econômico quase
permanente consubstancial à “planificação” burocrática e que, mais
profundamente, encontra suas raízes no conflito que a produção experimenta sem
cessar, e repressão política onipresente, aparecem como os aspectos mais
intoleráveis do capitalismo burocrático total. Aspectos fortemente
interdependentes e mutuamente condicionados, é claro – e que são ambos o
resultado necessário da estrutura social do sistema.
De fato,
e por mais fantástico que isso possa parecer, o conjunto da esquerda
internacional só enxerga aí taras secundárias ou defeitos passíveis de punição.
Sebem que as “reformas” que os eliminassem preservando, no entanto, a
substância do sistema (novo avatar da quadratura do círculo) seriam
favoravelmente acolhidas no Ocidente pelos candidatos burocratas e seus
ideólogos declarados ou mascarados – “socialistas”, comunistas “dissidentes”, e
mesmo, atualmente, “ortodoxos”, na Itália, na França, etc; trotskistas,
jornalistas “progressistas”; companheiros de luta, intelectuais de vários
tipos, filósofos existencialistas de ontem, como Sartre e a equipe de “Temps
Modernes”, pelos “economistas radicais” de hoje -.
Não é
difícil compreender por que, e como, esses estranhos comensais foram mais ou
menos unânimes no seu apoio a Gomulka, em 1956-1957, e na sua “oposição” à
invasão da Checoslováquia em 1968, enquanto que, no que toca à Revolução
Húngara, entregaram-se a calúnias vergonhosas (os “comunistas”), aprovaram a
invasão final (Sartre), olharam de cima as ações “espasmódicas”, “elementares”
e “espontâneas” dos trabalhadores húngaros (Mandel), ou se refugiaram no
silêncio o mais rápido possível. Em 1956, o povo polonês não pegou em armas.
Apesar
do seu desenvolvimento e da sua efervescência, os Conselhos Operários jamais
questionaram de maneira explícita a estrutura do poder existente. O Partido
Comunista conseguiu no essencial, ao preço de um pequeno expurgo em suas
fileiras e de algumas mudanças de pessoal, controlar a situação durante o
período crítico e sufocar assim, para acabar, o movimento de massa. As coisas
foram ainda mais claras na Checoslováquia, em 1968, e os protestos da
“esquerda” ainda mais turbulentos.
É que
nesse caso, veja você, não havia nenhum perigo na realidade, nenhum sinal de
uma atividade autônoma das massas. A nova direção do PC buscava introduzir
algumas reformas “democráticas” e um certo grau de descentralização da
economia. É evidente que a população só poderia ser favorável a essas medidas.
Uma reforma vinda de cima e com o apoio do povo, que sonho maravilhoso para os
“revolucionários” de hoje. Como diria Mandel, isso “teria permitido a
milhões de operários a se identificarem com o novo Estado Operário”.
Em tais
circunstâncias é, evidentemente, permitido gritar contra os tanques russos. Mas
na Húngria o movimento de massas foi tão poderoso e tão radical que em alguns
dias pulverizou literalmente o PC e todo o aparelho de Estado. Nem mesmo
a “dualidade de poder”: tudo o que subsistia como poder estava nas mãos da
juventude armada e dos Conselhos Operários. O “programa” dos Conselhos
Operários era absolutamente incompatível com a conservação da estrutura
burocrática da sociedade.
Ele
exigia a autonomia das empresas, a abolição das normas de trabalho, a redução
drástica das desigualdades de rendimentos, o comando sobre os aspectos gerais
da planificação, o controle da composição do governo e uma nova orientação da
política exterior. E tudo isso foi combinado e formulado claramente no espaço
de alguns dias. Nesse contexto, seria ridiculamente fora de propósito levantar
que tal ponto destas reivindicações seria “obscuro” ou “insuficiente”.
Se
a revolução não tivesse sido massacrada pelos assassinos do Kremlin, seu
desenvolvimento teria chegado “aosesclarecimentos” e aos “aperfeiçoamentos”
necessários: os Conselhos e o povo teriam dado ou não a prova de que eles
podiam encontrar neles mesmos a capacidade e a força de criar uma nova
estrutura de Poder e uma nova instituição da sociedade.
Ao mesmo tempo, a Revolução liberaria, desencadearia todas as forças e todas as tendências da nação húngara.
Ao mesmo tempo, a Revolução liberaria, desencadearia todas as forças e todas as tendências da nação húngara.
A
liberdade de expressão e de organização para todos, não importando as opiniões
políticas de cada um, foi imediatamente considerada como uma decorrência
normal. Era igualmente evidente que diversos representantes da ”humanidade
progressista” só podiam considerar isso como intolerável. Para eles, a
liberdade de expressão e de organização era o sinal do caráter “impuro”,
“amalgamado”, “confuso” da Revolução Húngara.
Apesar
de sua vida curta, a Revolução Húngara colocou, como princípios, formas
organizacionais e significações sociais que representam
uma criação institucional social-histórica. A fonte dessa criação foi
a atividade do povo húngaro: intelectuais, estudantes, operários. Em vez de
contribuir ao menos um pouco para essa revolução, “teóricos” e “políticos”,
enquanto tais, continuaram a levar ao povo a mentira e a mistificação.
Certamente,
os intelectuais desempenharam um papel positivo importante, pois, vários meses
antes da explosão final, eles se empenharam em “demolir” os absurdos
“políticos”, “ideológicos” e “teóricos” que permitiam a burocracia stalinista
apresentar sua ditadura totalitária como uma “democracia popular”, como o
“socialismo”.
Finalmente,
poder-se-ia perguntar por que o imperialismo capitalista pode, na maior parte
do tempo, suportar a liberdade de expressão, e por que o imperialismo
“socialista” não pode tolerá-la um só instante.
Carlos I. S. Azambuja
Historiador
Alerta Total
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