Demétrio Magnoli
Se Trump for fiel às suas principais
bandeiras de campanha, os EUA renunciarão a seus compromissos fundamentais com
a ordem instituída no pós-guerra
George H. Bush anunciou, na sua hora da vitória, em 1991, após a Guerra do Golfo, o advento de uma “nova ordem mundial”. A ordem do pós-Guerra Fria herdou alicerces da Pax Americana estabelecida nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, mas completou-a com pilares originais, que refletiam o desenlace da confrontação com a URSS. Hoje, um quarto de século depois, esses pilares desabam, e as próprias fundações mais antigas exibem fundas rachaduras. 2016 será lembrado como o ano de uma extensa desconstrução.
Um primeiro pilar caiu em 2014, com a anexação russa da Crimeia e a organização, a partir do Kremlin, de um conflito armado separatista no leste da Ucrânia. Aqueles eventos borraram o acordo implícito que garantia a segurança das fronteiras europeias do pós-Guerra Fria. De fato, se a Rússia viola pela força a integridade territorial ucraniana, o que a impede de fazer algo similar nas repúblicas bálticas?
A agressão à Ucrânia não foi um raio no céu claro, pois teve como precedente a intervenção na Geórgia. Contudo, as diferenças são marcantes: de um lado, a revolução popular ucraniana havia recebido o apoio direto de governantes americanos, franceses e alemães; de outro, não houve anexação formal de parte do território da Geórgia. A soberania das repúblicas bálticas pende, agora, por um único fio, que se chama Otan. De certa forma, ao menos conceitualmente, as fronteiras europeias retrocederam à condição estratégica em que se encontravam na Guerra Fria.
Ao longo de 2016, a desordem se espraiou. Um segundo pilar desabou com o contragolpe de Recep Erdogan, que descostura o frágil tecido da democracia turca. Na esteira da queda do Muro de Berlim, enquanto se implantavam sistemas pluripartidários nos países do antigo bloco soviético, firmou-se a crença no avanço inexorável da democracia na Europa. A marcha autoritária de Erdogan, assim como a concomitante ascensão de governos nacionalistas na Hungria e na Polônia, evidencia que a democracia não é destino, mas apenas uma possibilidade entre outras.
Na Guerra Fria, as correntes políticas autoritárias foram relegadas às margens dos sistemas democráticos ocidentais, que se ergueram sobre uma dupla rejeição: ao nazifascismo e ao comunismo. Hoje, porém, os deslocamentos sociais provocados pela globalização abrem veredas para a emergência de partidos ultranacionalistas, nativistas e xenófobos. A Rússia de Putin aparece, para esses partidos, como uma espécie de ideal. A Turquia de Erdogan revela, por sua vez, que as democracias podem ser envenenadas por dentro. A França, logo mais, e outros países, em seguida, enfrentarão testes eleitorais decisivos. Neles, se saberá até que ponto as nações europeias estão dispostas a experimentar, uma vez mais, as perigosas ferramentas aposentadas desde 1945.
O Brexit destruiu um terceiro pilar. A decisão popular britânica de romper com a União Europeia mostrou que o projeto supranacional deflagrado no imediato pós-guerra não é irreversível. Se o Reino Unido pode abandonar o bloco europeu, por que não a França? A saída britânica, em meio à renitente crise econômica na Europa, ameaça detonar reações em cadeia. Do outro lado do Canal da Mancha, Marine Le Pen enxergou no Brexit um prenúncio de seu próprio triunfo. Nada garante que a líder da ultradireitista Frente Nacional não tenha razão.
A União Europeia nasceu da soma de dois medos: Stalin e Hitler. O temor do expansionismo soviético despareceu junto com a URSS. Já o temor de Hitler — ou seja, da exacerbação descontrolada dos nacionalismos — parece diluir-se nas sombras do passado. Sem os medos, e na ausência de uma prosperidade compartilhada, o projeto europeu perde seu sentido. A velha Europa espreita atrás do Brexit, pronta a ressurgir.
O quarto pilar tombou com a surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Embora seja um fruto inesperado dos experimentos nativistas conduzidos pelos republicanos ao longo dos dois mandatos de Barack Obama, Trump não representa o conservadorismo americano tradicional, nem o neoconservadorismo dos anos de Bush filho. Trump é uma tóxica mistura de neonacionalismo, protecionismo e isolacionismo. Se, na Casa Branca, ele for fiel às suas principais bandeiras de campanha, os EUA renunciarão a seus compromissos fundamentais com a ordem internacional instituída no pós-guerra.
As invectivas do novo presidente contra o livre comércio e seu profundo desprezo pela Otan sinalizam o esgotamento do longo ciclo de internacionalismo americano inaugurado por Franklin Roosevelt. O recuo da maior potência do mundo a seu casulo continental removeria as garantias de segurança dos aliados, gerando perigosas zonas de instabilidade. Toda a estrutura de paz na Europa e no Extremo Oriente seria corroída pelas assimetrias militares entre Alemanha e Rússia, num caso, e entre Japão e China, no outro. Simultaneamente, uma guerra comercial entre EUA e China devastaria o sistema da globalização. Os cem primeiros dias de Trump dirão se resta alguma coisa relevante da ordem geopolítica que conhecemos.
A queda de Aleppo, às vésperas do Natal, detonou um quinto pilar. Duas décadas atrás, depois das tragédias de Ruanda e de Srebrenica, a ONU assumiu o compromisso de agir contra tiranos dispostos a massacrar os povos que governam. Na guerra síria, Bashar Assad ultrapassou impunemente todos os limites, inclusive a tristemente célebre “linha vermelha” traçada por Obama. O bombardeio de Aleppo, conduzido com respaldo militar direto de Moscou, provou o vazio das solenes promessas inscritas nas resoluções apresentadas pelos EUA e pelas potências europeias. A realpolitik venceu, na sua expressão mais crua. O “dever de proteger” jaz, agora, entre as ruínas da segunda maior cidade da Síria.
2016 encerra o parêntesis aberto em 1989. Feliz 2017.
O Globo
George H. Bush anunciou, na sua hora da vitória, em 1991, após a Guerra do Golfo, o advento de uma “nova ordem mundial”. A ordem do pós-Guerra Fria herdou alicerces da Pax Americana estabelecida nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, mas completou-a com pilares originais, que refletiam o desenlace da confrontação com a URSS. Hoje, um quarto de século depois, esses pilares desabam, e as próprias fundações mais antigas exibem fundas rachaduras. 2016 será lembrado como o ano de uma extensa desconstrução.
Um primeiro pilar caiu em 2014, com a anexação russa da Crimeia e a organização, a partir do Kremlin, de um conflito armado separatista no leste da Ucrânia. Aqueles eventos borraram o acordo implícito que garantia a segurança das fronteiras europeias do pós-Guerra Fria. De fato, se a Rússia viola pela força a integridade territorial ucraniana, o que a impede de fazer algo similar nas repúblicas bálticas?
A agressão à Ucrânia não foi um raio no céu claro, pois teve como precedente a intervenção na Geórgia. Contudo, as diferenças são marcantes: de um lado, a revolução popular ucraniana havia recebido o apoio direto de governantes americanos, franceses e alemães; de outro, não houve anexação formal de parte do território da Geórgia. A soberania das repúblicas bálticas pende, agora, por um único fio, que se chama Otan. De certa forma, ao menos conceitualmente, as fronteiras europeias retrocederam à condição estratégica em que se encontravam na Guerra Fria.
Ao longo de 2016, a desordem se espraiou. Um segundo pilar desabou com o contragolpe de Recep Erdogan, que descostura o frágil tecido da democracia turca. Na esteira da queda do Muro de Berlim, enquanto se implantavam sistemas pluripartidários nos países do antigo bloco soviético, firmou-se a crença no avanço inexorável da democracia na Europa. A marcha autoritária de Erdogan, assim como a concomitante ascensão de governos nacionalistas na Hungria e na Polônia, evidencia que a democracia não é destino, mas apenas uma possibilidade entre outras.
Na Guerra Fria, as correntes políticas autoritárias foram relegadas às margens dos sistemas democráticos ocidentais, que se ergueram sobre uma dupla rejeição: ao nazifascismo e ao comunismo. Hoje, porém, os deslocamentos sociais provocados pela globalização abrem veredas para a emergência de partidos ultranacionalistas, nativistas e xenófobos. A Rússia de Putin aparece, para esses partidos, como uma espécie de ideal. A Turquia de Erdogan revela, por sua vez, que as democracias podem ser envenenadas por dentro. A França, logo mais, e outros países, em seguida, enfrentarão testes eleitorais decisivos. Neles, se saberá até que ponto as nações europeias estão dispostas a experimentar, uma vez mais, as perigosas ferramentas aposentadas desde 1945.
O Brexit destruiu um terceiro pilar. A decisão popular britânica de romper com a União Europeia mostrou que o projeto supranacional deflagrado no imediato pós-guerra não é irreversível. Se o Reino Unido pode abandonar o bloco europeu, por que não a França? A saída britânica, em meio à renitente crise econômica na Europa, ameaça detonar reações em cadeia. Do outro lado do Canal da Mancha, Marine Le Pen enxergou no Brexit um prenúncio de seu próprio triunfo. Nada garante que a líder da ultradireitista Frente Nacional não tenha razão.
A União Europeia nasceu da soma de dois medos: Stalin e Hitler. O temor do expansionismo soviético despareceu junto com a URSS. Já o temor de Hitler — ou seja, da exacerbação descontrolada dos nacionalismos — parece diluir-se nas sombras do passado. Sem os medos, e na ausência de uma prosperidade compartilhada, o projeto europeu perde seu sentido. A velha Europa espreita atrás do Brexit, pronta a ressurgir.
O quarto pilar tombou com a surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Embora seja um fruto inesperado dos experimentos nativistas conduzidos pelos republicanos ao longo dos dois mandatos de Barack Obama, Trump não representa o conservadorismo americano tradicional, nem o neoconservadorismo dos anos de Bush filho. Trump é uma tóxica mistura de neonacionalismo, protecionismo e isolacionismo. Se, na Casa Branca, ele for fiel às suas principais bandeiras de campanha, os EUA renunciarão a seus compromissos fundamentais com a ordem internacional instituída no pós-guerra.
As invectivas do novo presidente contra o livre comércio e seu profundo desprezo pela Otan sinalizam o esgotamento do longo ciclo de internacionalismo americano inaugurado por Franklin Roosevelt. O recuo da maior potência do mundo a seu casulo continental removeria as garantias de segurança dos aliados, gerando perigosas zonas de instabilidade. Toda a estrutura de paz na Europa e no Extremo Oriente seria corroída pelas assimetrias militares entre Alemanha e Rússia, num caso, e entre Japão e China, no outro. Simultaneamente, uma guerra comercial entre EUA e China devastaria o sistema da globalização. Os cem primeiros dias de Trump dirão se resta alguma coisa relevante da ordem geopolítica que conhecemos.
A queda de Aleppo, às vésperas do Natal, detonou um quinto pilar. Duas décadas atrás, depois das tragédias de Ruanda e de Srebrenica, a ONU assumiu o compromisso de agir contra tiranos dispostos a massacrar os povos que governam. Na guerra síria, Bashar Assad ultrapassou impunemente todos os limites, inclusive a tristemente célebre “linha vermelha” traçada por Obama. O bombardeio de Aleppo, conduzido com respaldo militar direto de Moscou, provou o vazio das solenes promessas inscritas nas resoluções apresentadas pelos EUA e pelas potências europeias. A realpolitik venceu, na sua expressão mais crua. O “dever de proteger” jaz, agora, entre as ruínas da segunda maior cidade da Síria.
2016 encerra o parêntesis aberto em 1989. Feliz 2017.
O Globo
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