Michael
Sandel
“Privilégios sociais e econômicos minam a
democracia, que precisa ser cultivada por meio de uma educação cidadã, defende
professor”
Entrevista de André de Oliveira com Michael Sandel
O
senhor acredita que acabar com a desigualdade é uma questão de justiça?
Sim. Hoje, um dos
principais desafios para se ter uma sociedade mais justa é aprender a lidar com
o abismo entre ricos e pobres. Isso porque, nos últimos anos, a desigualdade só
aumentou na maior parte dos países. No Brasil, vocês tiveram sucesso em reduzir
a pobreza, mas é importante distinguir desigualdade de pobreza. Ou almejamos
uma sociedade menos desigual ou teremos uma comunidade injusta. E existem
inúmeras políticas que podem reduzir a desigualdade. Uma delas, que tem sido
usada por aqui, são as ações afirmativas do governo na educação. Existem duas
razões para ajudar pessoas que vêm de extratos desfavorecidos da sociedade. A
primeira é dar oportunidades iguais para quem está em patamares de desvantagem
socioeconômica. A segunda é criar um ambiente educacional melhor para todos.
Ter estudantes de diferentes origens étnicas, econômicas e sociais em uma mesma
sala de aula cria um ambiente de aprendizagem que ajuda a todos. Isso porque
uma parte do que deveríamos estar ensinando em nossas universidades é um tipo
de educação cidadã que ajude a cultivar cidadãos democratas capazes de
entender, ouvir e discutir com os outros. As ações afirmativas são um belo
exemplo de como se reduz a desigualdade, mas, é bom lembrar, sozinhas, elas não
são capazes de mudar a sociedade.
Em
meio a crise econômica e política do Brasil, o que vemos nas ruas muitas vezes
é muita discussão e pouco debate de ideias.
Esse é um momento
crítico para o Brasil, mas eu acredito que toda crise também apresenta uma
oportunidade de aprofundar a democracia. Eu acho que o ativismo, expresso em
protestos, é saudável. Este é um caminho para expressar sua voz. Outro é no dia
da eleição. Mas acima desses dois existe o exercício cotidiano da democracia.
Ela necessita que os cidadãos debatam através da mídia, de organizações civis,
mas que a conversa não vire uma gritaria, uma discussão sem respeito mútuo. Na
democracia, devemos nos engajar com o outro, mesmo quando não concordamos com
ele, porque só assim é possível tentar encontrar o princípio fundamental de
onde está o desentendimento, tenha ele nascido a partir de uma questão sobre
transporte urbano, saúde ou taxação de renda. Só assim é possível deixar as
coisas claras e evoluir.
Encontrar
esse ponto de equilíbrio pode ser difícil quando algumas questões, como a
corrupção, muitas vezes são vistas como uma primazia de determinados grupos. O
que fazer?
No caso da
corrupção, por exemplo, é necessário enxergá-la não apenas como uma questão
legal, mas como um tema de ética e cultura democrática. Nós costumamos dizer
que a corrupção é sempre o problema de outra pessoa, outro partido político ou
de pessoas em cargos altos da Petrobrás, mas ela está na nossa vida cotidiana.
Nesse momento, eu respeito e admiro a independência do sistema Judiciário
brasileiro, que está fazendo algo sério sobre esse tema. Aliás, a liberdade com
que o Judiciário tem trabalhado também revela a maturidade da democracia
brasileira. Agora é importante valorizar isso, mas sem deixar de trabalhar com
a noção de que a corrupção é algo a ser resolvido em longo termo, algo que
depende de uma nova educação cidadã, só encontrável na convivência diária com o
outro, com o diferente. Este é o caminho para a corrupção se transformar,
gradualmente, em integridade.
O
Supremo Tribunal Federal proibiu doações de empresas a partidos e políticos. O
senhor acredita que essa é uma boa forma de se combater a corrupção política?
Eu acredito que
esse dinheiro distorce a democracia, porque dá muito poder aos mais ricos e faz
com que os cidadãos comuns acreditem que é impossível ter suas vozes
minimamente representadas na vida democrática. Muitas democracias vivem esse
dilema quando o assunto são as doações em campanhas eleitorais. Os EUA vivem
uma versão extrema disso, em que empresas e pessoas muito ricas influenciam
campanhas diretamente. É importante que haja uma limitação da quantidade de
dinheiro que pode ser doado. Nós tínhamos algumas restrições modestas, mas,
infelizmente, nossa Suprema Corte, ao contrário do que está acontecendo no
Brasil, as derrubou. Idealmente, deveria existir alguma combinação entre um
fundo de dinheiro público para campanhas e pequenas contribuições de pessoas
físicas. Isso acabaria com essa distorção que, muitas vezes, também é fonte de
corrupção.
O senhor fala bastante de resolver a
desigualdade por meio de uma “nova educação cidadã”, na qual a convivência com
o diferente é fundamental. É possível imaginar uma comunidade saudável em que
não há convivência em espaços públicos, em que tudo se dá no âmbito privado, do
carro para o trabalho, do trabalho para o carro?
Essa é uma questão
fundamental, porque é impossível ter uma democracia sadia sem espaços públicos,
onde cidadãos, de todas as origens, possam interagir. Parques, bibliotecas,
museus. Tudo isso é necessário para que haja uma cultura democrática forte. Se
as pessoas viverem seus cotidianos apenas em espaços privados, elas terão
poucas oportunidades de encontrar quem é diferente delas. Uma das consequências
mais terríveis da desigualdade, do abismo entre ricos e pobres, é que as
pessoas vivem separadas, distantes. Desse modo, corre-se o risco de que as
pessoas deixem de enxergar a democracia como um projeto comum, que visa ao bem
comum. Só convivendo com pessoas de diferentes origens étnicas, sociais e
econômicas é possível apender a cultivar a democracia.
O
senhor disse que a desigualdade aumentou no mundo. Essa separação, essa falta
de convivência, também aumentou?
Sem dúvida. E quem
perde com isso é a democracia. Eu tenho um conceito que expressa bem essa
separação. Eu chamo isso de “camarotização” da vida. Quando jovem, antes de
existirem setores VIP, eu era um fã de beisebol e ia em todos os jogos torcer
pelo time local. Nessa época, existiam alguns assentos mais caros, mas não
existia uma diferença grande entre preços. Por isso, ir a um estádio era uma
experiência de mistura cívica, era um exercício de cidadania, onde rico e pobre
sentavam lado a lado, onde, para ir ao banheiro, todo mundo usava a mesma fila.
Sem privilégios. Se chovia, todo mundo ficava molhado. Acredito que algo
semelhante à “camarotização” tenha acontecido nas novas arenas de futebol que
substituíram os antigos estádios brasileiros, como o Maracanã. No caso
americano, isso ocorreu durante os anos 1980 e 1990. O camarote é o símbolo
máximo da mudança pela qual nossa sociedade passou e está passando. E, talvez,
por ser tão simbólico, esse seja um dos principais desafios das nossas modernas
democracias: criar espaços em que as pessoas possam conviver sem privilégios.
SERVIÇO
O Estado, em parceria com Harvard,
Insper e a plataforma de cursos online edX, oferece o curso Justiça
(legendado e adaptado para a realidade brasileira), apresentado pelo
filósofo e palestrante americano
Michael
Sandel.
Onde: Plataforma
online edx.org
Quando: 1º de
outubro, com duração de 12 semanas
Preço: Gratuito
(diploma será cobrado)
Inscrições: Inscreva-se
gratuitamente aqui
Jornal O Estado de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário