Editorial
O respeito às leis livremente pactuadas pelo conjunto da sociedade é o
sustentáculo da democracia. A expressão máxima desse acordo é a Constituição,
que explicita as bases sobre as quais se regula o espaço público, local da
construção de consensos. Esse formidável empreendimento político requer o
exercício da autoridade, sobre cujos ombros repousa a tarefa de fazer escolhas
e tomar decisões entre os muitos pontos de vista e as muitas reivindicações que
são característicos de uma sociedade democrática e, portanto, plural. Em nenhum
momento, as decisões dessa autoridade podem ofender aquele pacto legal, pois
tal comportamento seria equivalente a uma ruptura da trama constitucional que
mantém coesa a sociedade. O resultado, de todo indesejável, é a anomia – situação
caótica na qual ninguém se sente obrigado a se submeter a uma ordem legal que
não vale para todos. E a anomia, é bom lembrar, pode nos jogar a todos de volta
ao estado de natureza, no qual prevalecem a força e a selvageria.
Assim, é mais do que compreensível a inquietação em torno do desfecho
jurídico do caso envolvendo a candidatura do senhor Lula da Silva à Presidência
da República. Uma eventual decisão dos tribunais superiores que nos próximos
dias favoreça o pleito do petista, cuja pretensão é concorrer ao cargo máximo
do Executivo nacional mesmo sendo um corrupto condenado pela Justiça,
representaria uma adulteração gritante da ordem legal, em várias dimensões. Se
o senhor Lula da Silva for dispensado de cumprir a lei por instituições cuja
função é justamente zelar pela Constituição, então esta perderá seu valor como
liame democrático.
Num cenário desses, a autoridade judicial perderia a força que a
mantém como elemento de coesão da sociedade por permitir que um cidadão esteja
fora do alcance das normas democraticamente estabelecidas – com a agravante de
que esse cidadão pode se tornar presidente da República –, suprimindo-se dessa
forma a referência jurídica na qual todos devem se basear para o pleno
exercício da cidadania numa sociedade democrática.
Em outras palavras, se a instituição que existe somente para preservar
a ordem legal permitisse sua violação, então as demais instituições que
sustentam a democracia estariam liberadas para aplicar seu próprio entendimento
sobre essa ordem. É claro que, assim, estaria rompido o consenso político que
constrói e legitima a autoridade, com consequências funestas.
Tudo isso seria ainda mais grave e mais inquietante se a violação da
ordem legal para favorecer Lula da Silva se desse por meio da renúncia à
soberania do País sobre a interpretação de suas leis, como já alertamos nesta
página.
Há risco de que tal entendimento, por mais absurdo que seja, prospere
de alguma forma. Para que isso ocorresse, seria preciso que os tribunais
superiores abdicassem de seu papel constitucional, dobrando-se a um cidadão que
está há tempo demais desafiando a Justiça e fazendo troça das instituições. Não
se pode esperar que um desdobramento como esse, que fragilizaria perigosamente
o edifício democrático, seja recebido pela sociedade com naturalidade e
compreensão. Ao contrário, haveria imenso desassossego, uma vez que a base
sobre a qual se sustenta a democracia, isto é, o Estado de Direito, estaria
miseravelmente corrompida.
Por essa razão, espera-se que os tribunais do País cumpram sua
obrigação de guardiães da lei e, em última análise, zeladores da coesão do
tecido social e não reconheçam ao senhor Lula da Silva o direito que ele deixou
de ter no exato momento em que foi sentenciado à prisão por corrupção e lavagem
de dinheiro.
As leis brasileiras – entre as quais a Lei da Ficha Limpa, cuja
constitucionalidade foi plenamente atestada pelo Supremo Tribunal Federal e que
explicitamente impede criminosos condenados por órgão judicial colegiado de
disputar cargos eletivos, como já concluiu com clareza o Tribunal Superior
Eleitoral ao impugnar a candidatura de Lula da Silva – são mais que suficientes
para sustentar a normalidade democrática do País.
O
Estado de São Paulo
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