Sergio
Lamucci
Teto se
tornou bode expiatório da política fiscal
O teto de gastos está cada vez mais na linha de tiro. Não falta nem
mesmo quem o aponte como um dos culpados pelo incêndio que destruiu no domingo
o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, responsabilizando o mecanismo pela falta
de recursos para a manutenção das instalações da instituição.
A crítica obviamente não faz sentido. O teto entrou em vigor apenas no
ano passado, e o descaso com a situação do museu é um problema de muitos anos -
em novembro de 2004, o então secretário estadual de Energia, Indústria Naval e
Petróleo do Rio de Janeiro, Wagner Victer, alertou para o risco de incêndio,
depois de visitar a instituição. "O museu vai pegar fogo. São fiações
expostas, malconservadas, alas com infiltrações, uma situação de total
irresponsabilidade com o patrimônio histórico", disse ele, hoje secretário
estadual de Educação, em reportagem da Agência Brasil na época.
O episódio mostra como o teto virou uma espécie de bode expiatório
para quem reclama da estratégia atual de ajuste das contas públicas. O
mecanismo foi concebido para reduzir o ritmo de crescimento das despesas não
financeiras do governo federal, que aumentaram mais de 6% ao ano acima da
inflação entre 1997 e 2015. Inscrito na Constituição, vale por 20 anos, podendo
ser revisto no meio do caminho.
Uma das críticas mais frequentes ao teto é que ele tende a causar uma
redução drástica das chamadas despesas discricionárias (aquelas sobre as quais
o governo tem maior controle), como investimentos. Outra reclamação é sobre o
período excessivamente longo de validade da medida, que impedirá as despesas
federais de crescerem acima da inflação por no mínimo uma década,
independentemente da situação da atividade econômica.
O risco de que o teto seja descumprido nos próximos anos é elevado,
mesmo com a aprovação de iniciativas como uma reforma dura da Previdência, o
fim dos aumentos acima da inflação para o salário mínimo a partir de 2020 e a
contenção dos reajustes para os servidores públicos. A Instituição Fiscal
Independente (IFI) vê espaço para o cumprimento das regras até 2020. Se for
rompido, gatilhos são acionados, proibindo aumentos nominais dos salários,
aposentadorias e pensões para o funcionalismo, a criação de novos cargos,
alteração de carreiras, novas contratações e a realização de concursos, entre
outros pontos.
O principal mérito do teto foi explicitar para a sociedade a restrição
orçamentária do setor público, como destacam em nota Felipe Salto,
diretor-executivo da IFI, e Gabriel Leal de Barros, diretor da IFI. Se as
despesas com Previdência e pessoal continuam a crescer muito acima da inflação,
por exemplo, sobra menos dinheiro para outros gastos, porque benefícios
previdenciários e salários de servidores ocupam espaço cada vez maior do
orçamento. "A limitação do crescimento do gasto passou a ser uma âncora
para as expectativas dos agentes econômicos", dizem eles. De fato, a
aprovação do teto comprou tempo para o governo aprovar medidas fiscais
necessárias ao equilíbrio das contas públicas, como a reforma da Previdência.
O mecanismo, porém, tem seus problemas. Uma das críticas mais
interessantes ao teto veio do economista Filipe Campante, hoje professor Escola
Internacional de Estudos Avançados da Universidade Johns Hopkins, de
Washington. Em entrevista ao Valor publicada em março, Campante disse que via o
teto como um "simulacro de uma solução para o problema fiscal
brasileiro", sendo "irrelevante no curto prazo, com a economia
caindo, porque obviamente não impede os gastos de crescerem nessa
situação".
Campante afirmou ainda não ver "sustentabilidade política"
no médio prazo para o mecanismo, "porque assim que o teto começar a
incomodar já haverá pressão enorme para revogá-lo". Ele apontava o risco
de o país ter feito "algo inócuo no curto prazo, mas com grandes chances
de virar um 'bode na sala', que irá distorcer ainda mais o debate sobre
política fiscal". O bombardeio ao teto parece indicar que os temores de
Campante se confirmaram precocemente, como se vê nas tentativas de culpar a
medida pelo incêndio no Museu Nacional, um incidente com causas bem anteriores
à entrada em vigor da emenda constitucional.
Salto e Barros, da IFI, veem com maus olhos a ideia de abandonar o
teto de gastos, por "elevar a probabilidade de um quadro de instabilidade
e crescimento expressivo do déficit e da dívida pública". Num cenário de
"reduzida confiança em torno do reequilíbrio fiscal, seria muito mais
difícil recuperar o crescimento e evitar um quadro de pressões
inflacionárias", afirmam os economistas da IFI, órgão do Senado para
acompanhamento das contas públicas. Para eles, "o cumprimento do teto e
seus efeitos sobre o controle do gasto público são essenciais para garantir um
horizonte mínimo de estabilização da relação dívida/PIB, movimento convergente
com a recuperação do equilíbrio fiscal".
A possibilidade de que a medida sofra alguma modificação no próximo
governo, contudo, é considerável. Estudo da pesquisadora Vilma Pinto, do
Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV),
indica que o cumprimento do teto no ano que vem exige a redução das despesas
discricionárias em termos reais de R$ 124 bilhões em 2018 para R$ 104 bilhões
em 2019, nível inferior aos R$ 120 bilhões que seriam necessários para manter o
funcionamento mínimo dos serviços do Estado. A necessidade de cortes tão
expressivos pode levar a mudanças na emenda.
O ponto principal é que, com o teto em sua forma atual ou em alguma
versão modificada, o problema da restrição orçamentária vai continuar premente,
dada a situação precária das contas públicas. A crise fiscal escancarou o
conflito distributivo, que precisa ser enfrentado. Se o país quer destinar mais
recursos para investimentos, educação, saúde e cultura, precisa fazer escolhas
politicamente difíceis, contendo a expansão de gastos como as despesas com
Previdência e pessoal. Reduzir desonerações fiscais a setores privilegiados,
tornar o sistema tributário mais progressivo e até elevar temporariamente algum
imposto podem fazer parte do receituário para melhorar o resultado das contas
públicas. É inescapável, porém, lidar com coragem com as restrições do
orçamento, o que exige a adoção de medidas impopulares.
Valor Econômico
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