Olavo
de Carvalho
O clamor obsessivo dos intelectuais, dos políticos e da mídia pela
“supressão das desigualdades” e por uma “sociedade mais justa” pode não
produzir, mesmo no longo prazo, nenhum desses dois resultados ou qualquer coisa
que se pareça com eles. Mas, de imediato, produz ao menos um resultado
infalível: faz as pessoas acreditarem que o predomínio da justiça e do bem
depende da sociedade, do Estado, das leis, e não delas próprias. Quanto mais
nos indignamos com a “sociedade injusta”, mais os nossos pecados pessoais
parecem se dissolver na geral iniquidade e perder toda importância própria.
Que é uma mentira isolada, uma traição casual, uma deslealdade
singular no quadro de universal safadeza que os jornais nos descrevem e a
cólera dos demagogos verbera em palavras de fogo do alto dos palanques? É uma
gota d’água no oceano, um grão de areia no deserto, uma partícula errante entre
as galáxias, um infinitesimal ante o infinito. Ninguém vai ver.
Pequemos, pois, com a consciência tranquila, e discursemos contra o
mal do mundo.
Eliminemos do nosso coração todo sentimento de culpa, expelindo-o
sobre as instituições, as leis, a injusta distribuição da renda, a alta taxa de
juros e as hediondas privatizações.
Só há um problema: se todo mundo pensa assim, o mal se multiplica pelo
número de palavras que o condenam. E, quanto mais maldoso cada um se torna,
mais se inflama no coração de todos a indignação contra o mal genérico e sem
autor do qual todos se sentem vítimas.
É preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade
para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas
décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a “sociedade
injusta” vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a
conseqüente multiplicação do número de seus crimes. E é preciso ter uma
mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusar-se a ver o nexo causal
que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a
aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato,
“a sociedade”.
Se uma conexão tão óbvia escapa aos examinadores e estes se perdem na
conjeturação evasiva de mil e uma outras causas possíveis, é por um motivo
muito simples: a classe que promove a ética da irresponsabilidade pessoal e da
inculpação de generalidades é a mesma classe incumbida de examinar a sociedade
e dizer o que se passa. O inquérito está a cargo do criminoso. São os
intelectuais que, primeiro, dissolvem o senso dos valores morais, jogam os
filhos contra os pais, lisonjeiam a maldade individual e fazem de cada
delinquente uma vítima habilitada a receber indenizações da sociedade má, e,
depois, contemplando o panorama da delinquência geral resultante da assimilação
dos novos valores, se recusam a assumir a responsabilidade pelos efeitos de
suas palavras. Então têm de recorrer a subterfúgios cada vez mais artificiosos
para conservar uma pose de autoridades isentas e cientificamente confiáveis.
Os cientistas sociais, os psicólogos, os jornalistas, os escritores,
as “classes falantes”, como as chama Pierre Bourdieu, não são as testemunhas
neutras e distantes que gostam de parecer em público (mesmo quando em família
se confessam reformadores sociais ou revolucionários). São forças agentes da
transformação social, as mais poderosas e eficazes, as únicas que têm uma ação
direta sobre a imaginação, os sentimentos e a conduta das massas. O que quer
que se degrade e apodreça na vida social pode ter centenas de outras causas
concorrentes, predisponentes, associadas, remotas e indiretas; mas sua causa
imediata e decisiva é a influência avassaladora e onipresente das classes
falantes.
Debilitar a consciência moral dos indivíduos a pretexto de reformar a
sociedade é tornar-se autor intelectual de todos os crimes – e depois, com
redobrado cinismo, apagar todas as pistas. A culpa dos intelectuais ativistas
na degradação da vida social, na desumanização das relações pessoais, na
produção da criminalidade desenfreada é, no seu efeito conjunto, ilimitada e
incalculável. É talvez por eles terem se sujado tanto que suas palavras de
acusação contra a sociedade têm aquela ressonância profunda e atemorizante que
ante a plateia ingênua lhes confere uma aparência de credibilidade. Ninguém
fala com mais força e propriedade contra o pecador do que o demônio que o
induziu ao pecado. O discurso dos intelectuais ativistas contra a sociedade vem
direto do último círculo do inferno.
Publicado
originalmente no Jornal da Tarde, 13 de abril de 2000
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