Cristiano Romero
Mudar educação esbarra na elite: a
universidade pública
Durante
campanhas eleitorais, candidatos não avisam que vão aumentar impostos e cortar
despesas. Os discursos dos presidenciáveis mostram que há consenso, porém,
quanto à grave situação das finanças públicas e à necessidade de se fazer algo.
Não se tenha dúvida: a vida de uma boa parcela dos brasileiros vai piorar antes
de melhorar, e isso ocorrerá mesmo que o eleito seja o mais consciente,
bem-intencionado e preparado dos postulantes. Haverá elevação de impostos,
apesar de o país já ter carga tributária elevada - quase 34% do PIB - para
nações em desenvolvimento, e redução de gastos. Mas quem vai pagar a conta? Por
que a sociedade brasileira está tão dividida em meio a uma crise que aflige a
todos há cinco anos?
Crise
fiscal é um tema etéreo para a maioria da população, não só para a faixa menos
instruída, mas para todos os viventes deste imenso território. Aqui, é
arraigada a ideia, absolutamente equivocada, de que o governo, o Estado, tem
capacidade infinita para fabricar dinheiro e, assim, bancar toda e qualquer
despesa. Não tem não. Quando o faz, as consequências são conhecidas: inflação
galopante (que pune especialmente os mais pobres); corte de investimentos;
arrocho salarial para o funcionalismo (os servidores deveriam ser os primeiros
a se preocupar com a saúde das finanças do Estado); precarização dos serviços
públicos; elevação da taxa de juros administrada pelo Banco Central e do custo
de financiamento do Tesouro Nacional; redução do ritmo de crescimento da
economia; escalada do desemprego; aumento exponencial da desigualdade e da
pobreza.
John
Kennedy, um dos presidentes mais populares da história dos Estados Unidos, se
notabilizou quando disse ao povo de seu país: "Meus companheiros
americanos, perguntem não o que seu país pode fazer por vocês, mas o que vocês
podem fazer pelo seu país". Dita entre nós, a frase de Kennedy seria
criticada com ferocidade por quase todo o espectro político.
Como
observa com grande sagacidade o economista Armando Castelar, do Ibre-FGV,
ajuste fiscal significa reduzir a renda disponível de cidadãos e empresas. Se
os governantes dissessem isso claramente, seria mais fácil transmitir a
mensagem. Sabendo-se que o arrocho seria pago por todos, o chefe do Executivo
exporia quem escolheu, entre cidadãos e empresas, para pagar a maior fatia da
conta. E justificaria suas escolhas. A população entenderia.
Ajustes
são necessários - e vamos sempre ouvir falar deles porque as turbulências na
política e na economia são cíclicas e, no caso brasileiro, previsíveis - para
enfrentar disrupções, como as crises mundiais de 1929 e 2008, para citar apenas
os exemplos mais notórios em um século. No Brasil, avistamos furacões no
horizonte e, em geral, nada fazemos. Temos o péssimo hábito de viver em festa
durante os tempos de bonança, adiando o enfrentamento de problemas ancestrais
que, sabemos, criarão constrangimentos adiante; e de gastar e de consumir
agora, já, sem poupar ou planejar o futuro. Por quê? Porque temos enorme
dificuldade de chegar a consensos como nação.
Pensadores
duvidam da existência de uma nação brasileira. De fato, apesar dos laços históricos,
culturais, econômicos e linguísticos que unem os quase 209 milhões de
habitantes desta Terra de Santa Cruz (antes Ilha de Vera Cruz, depois, Brasil,
e antes dos "descobridores", Pindorama), somos intolerantes com o
outro. Talvez, o fato de termos convivido durante tanto tempo com a ignomínia
da escravidão - que persiste, dissimulada - explique divisões tão profundas,
que na eleição presidencial deste ano exacerbaram-se.
O
apartheid sul-africano, que tanto chocou o mundo, consistia na segregação forçada
de "raças" - apenas os brancos podiam votar, e aos negros era
proibido, por exemplo, ter relação sexual com os brancos. Em pleno pós-Guerra,
quando se esperava que o conjunto das nações não toleraria mais regimes
políticos que subjugassem o ser humano como fizeram nazistas e fascistas (e não
só esses), a infâmia se instalou na África do Sul em 1948 e sucedeu por quase
cinco décadas. Sua hegemonia deveu-se a um ardil: o sistema de transporte não
ligava os guetos ao centro das grandes cidades.
Nada muito
diferente do que vimos aqui. Durante décadas, transportar-se da periferia pobre
de algumas capitais às praias de bairros "nobres" ou ao centro dessas
cidades era missão impossível aos que não possuíam um automóvel - o poder
público, simplesmente, não levava transporte coletivo até as comunidades
pobres. A segregação, que os americanos só começaram a proibir por força da lei
no fim da década de 1960, sobrevive entre nós de maneira disfarçada.
No
Brasil, há uma forma de apartheid tão danosa quanto qualquer outra, porque
silenciosa: o nosso descaso com educação, marcado pela péssima qualidade do
ensino público nos ensinos fundamental e médio, o baixo acesso dos jovens ao
nível médio, as taxas inaceitáveis de analfabetismo da população adulta, além
do elevado grau de analfabetos funcionais.
Essa
tragédia - consequência, sem dúvida, da cultura escravagista que perdura em
nossa sociedade, mas não só dela - é tão antiga quanto os inúmeros diagnósticos
de especialistas sobre o que deve ser feito para sairmos de situação tão
vexaminosa. O caso é crítico porque o principal obstáculo a mudanças está no
establishment do setor: intelectuais, professores e funcionários das
universidades públicas, a maioria preocupada tão somente com a perda de
privilégios, como estabilidade no emprego e aposentadoria integral, que
entorpecem os funcionários públicos em geral.
Num país
de imigrantes, com fortes características de "povo novo" (na
definição de Darcy Ribeiro no clássico "Configurações Histórico-Culturais
dos Povos Americanos"), a inexistência de padrões aceitáveis de
alfabetização e escolaridade cria campo fértil para mistificações. Uma delas: o
Brasil é uma "democracia racial" - na verdade, o racismo é uma nódoa
que, num momento de estresse como o atual, emerge sem disfarce, assim como as
várias formas de discriminação - de gênero, classe social, idade (ser velho no
Brasil é quase uma doença), origem (já melhorou, mas, na cidade de maior
população nordestina, o preconceito ainda é disseminado), religião (outro mito
decaído: o da democracia religiosa)...
Valor
Econômico
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