Demétrio Magnoli
O gato de sete vidas continua à
tona, apoiando-se nos cadáveres que boiam ao seu redor para não afundar
"Eles
vão perceber que não dá para nadar teoricamente. Entra na água e vai nadar,
porra". Isso aí, o trecho da entrevista consagrado às "frescuras do
PSOL" (Folha, 20/7), é puro Lula. O ex-presidente cultiva o pragmatismo em
grau máximo, devotando solene desprezo tanto à ideologia quanto a valores e
princípios. Foi assim que ele nadou –e, no percurso, afogou a esquerda
brasileira.
Lula, o
Pragmático, opera segundo as circunstâncias. No primeiro mandato, diante das
desconfianças do mercado, conservou-se fiel à política econômica ortodoxa
herdada de FHC, completando-a com a política social de agressivas
transferências de renda, que se destinava a enraizar o lulopetismo no
eleitorado pobre. A fórmula bifronte seguia as receitas do Banco Mundial. Não
era "de esquerda" e nem mesmo social-democrata. Mas a esquerda
brasileira, um organismo lulodependente, celebrou-a como uma revolução de
emancipação popular. "Quando Lula fala, o mundo se ilumina", disse
Marilena Chaui.
O
sucesso do primeiro movimento, associado à evolução do ciclo internacional de
commodities e ao trauma político da crise do "mensalão", provocou a
substituição da fórmula econômica. O nado peito, lento e constante, deu lugar
ao esforço extremo do nado borboleta. No segundo mandato, Lula convocou Guido
Mantega et caterva para soldar uma santa aliança entre o Estado e o alto
empresariado. Configurou-se, ali, o capitalismo de Estado lulopetista, uma
versão modernizada do programa econômico moldado por Vargas e, mais tarde,
aprofundado por Geisel.
"Quando
Lula fala...". A esquerda interpretou a mudança como a revolução
verdadeira: uma aurora de ruptura. Dilma, a sucessora indicada pelo
"dedazo", tingiu a escolha pragmática com as tintas de suas obsessões
ideológicas. Do teclado irresponsável de seus assessores econômicos nasceu a
expressão "Nova Matriz Macroeconômica". Eike Batista definiu o BNDES
como o "melhor banco de investimento do mundo", uma opinião
certamente compartilhada por Marcelo Odebrecht e Joesley Batista.
A
história da ascensão e declínio do capitalismo de Estado lulopetista é contada
em dois registros diferentes, mas complementares. A narrativa econômica de uma
depressão mais funda que a dos anos 30 evidencia o curto horizonte do nado
borboleta. A narrativa policial e judicial da Lava Jato ilumina uma falência
ética calamitosa. Lula, o pragmático oportunista, foge das implicações de
ambas, escondendo-se atrás da pobre Dilma, no caso da primeira, e desviando os
holofotes para o PT, um de seus sacos de pancada prediletos, no caso da
segunda. O gato de sete vidas continua à tona, apoiando-se nos cadáveres que
boiam ao seu redor para não afundar.
Luiza
Erundina reclamou das críticas lulistas ao PSOL, instando o ex-presidente a
atacar os "parceiros de direita que o traíram". Mas ninguém traiu
Lula. O PMDB, tão pragmático como ele, foi fiel a si mesmo, agarrando-se ao
mastro do poder. Marcelo Odebrecht resistiu o quanto pôde, até o chão afundar.
Já Joesley Batista mantém a antiga parceria, selecionando politicamente os
alvos prioritários de sua delação. O que Erundina recusa-se a enxergar são os
frutos podres de uma política econômica que forma o denominador comum da
esquerda brasileira.
A pátria
de Lula é Lula, e nenhuma outra. Ele calcula o que fala –e fala exclusivamente
aquilo que interessa à sua carreira política. Mas, num ponto específico, tem
razão: "não dá para nadar teoricamente". O PSOL, alternativa
esquerdista a um PT dizimado pelo lulismo, repete incansavelmente as orações
ideológicas de uma bíblia encanecida e ajoelha-se diante das lápides de seus
estimados tiranos, que se chamam Castro, Che ou Chávez. O legado de Lula é uma
esquerda prostrada, de olhos fixos no passado. Do ponto de vista da nossa
democracia, eis um desastre ainda maior que os outros.
Folha de S. Paulo
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