segunda-feira, 10 de abril de 2017

Conheça o sistema financeiro islâmico, onde não há cobrança de juros

Rodolfo Costa

Ganho dos bancos vem da parceria com empresas e em empreendimentos; sistema tem um montante de US$ 2,2 trilhões em ativos

Em tempos de recessão profunda, os investimentos estrangeiros são uma das melhores opções para recolocar o Brasil nos trilhos. E há fundos trilionários inexplorados pelo Brasil com enorme potencial para aplicações em áreas como infraestrutura e reestruturação de dívida. Somente no mundo islâmico, há um montante de US$ 2,2 trilhões. Quem acredita que religião e economia não se alinham, desconhece o sistema financeiro muçulmano, que segue um rigoroso padrão de regras e princípios éticos aplicados aos aspectos de vida, tendo como principais fontes o Alcorão — livro sagrado — e a Suna — conjunto de práticas, exemplos e falas do profeta Maomé.

A aplicação dos conceitos religiosos nas finanças surpreende sistemas financeiros ocidentais, como o brasileiro. Em um país onde a taxa média de juros entre todas as linhas de crédito às famílias é de 53,2% ao ano, e a do cheque especial é de 337%, impressiona o fato de os muçulmanos não cobrarem juros em financiamentos.

Para eles, a cobrança é considerada usura, prática reprovável sob os conceitos de moralidade por não estar relacionada a algum tipo de trabalho. O advogado Fabiano Jantalia, sócio do escritório Jantalia, Valadares & Arruda, estudou a fundo as finanças islâmicas em tese de doutorado e explica que os muçulmanos seguem preceitos ligados ao comércio.

“O mundo econômico para eles gira em torno dessa atividade. Como não consideram o dinheiro uma mercadoria, não pode ser objeto de comércio. O capital deve estar sempre relacionado a algum tipo de atividade produtiva”, justifica. Os muçulmanos são empreendedores natos. Seguem à risca princípios que vedam a incerteza. “Eles gostam de correr risco”, afirma Jantalia. No entanto, não investem em operações com propósitos especulativos.

O retorno dos recursos aplicados pelos conceitos das finanças islâmicas pode vir de diferentes formas. No Brasil, uma maneira seria por meio de participação nos lucros em créditos concedidos a empresas. “O banco vira parceiro, partilhando os riscos com o sócio. Passaria, então, a ter o direito de participação dos resultados do empreendimento”, explica Jantalia.

Vantagens
No governo, as oportunidades poderiam vir por meio de investimentos dos ativos islâmicos em obras de infraestrutura ou na estruturação da dívida pública. E isso já ocorre em outras nações, como Reino Unido e Hong Kong. Nesses países, salas comerciais e outros empreendimentos foram recebidos pelos bancos islâmicos e securitizados, emitiram os títulos correspondentes. De posse dos valores arrecadados com a emissão a investidores estrangeiros, pagam à vista o valor acertado com os governos.

Como detentores dos patrimônios, os bancos recebem aluguéis periódicos dos governos e, após a dedução de custos administrativos e tributários dos arrendamentos, repassam o valor líquido para os compradores dos títulos. “Não se trata de juros para empréstimo ou um disfarce para a cobrança das taxas. É, na verdade, uma operação estruturada juridicamente para evitar a prática”, pondera Jantalia.

Dos US$ 2,2 trilhões de ativos financeiros islâmicos, cerca de US$ 347,6 bilhões estão no mercado de títulos, conhecidos como sukuks. No Reino Unido, os recursos foram investidos em obras dos Jogos Olímpicos de Londres, realizados em 2012. A partir dos títulos, os recursos foram destinados para o financiamento de estradas, pontes e outros empreendimentos de infraestrutura.

Agronegócio
A curto prazo, o agronegócio pode ser a maior porta de entrada para o dinheiro islâmico no Brasil, sobretudo atividades ligadas à exportação. É o que avalia a executiva do Banco Nacional de Abu Dhabi (NBAD, em siglas em inglês) para a América Latina, Ângela Martins.

Por trabalhar com commodities e ativos reais, empresários do setor poderiam contar com bancos muçulmanos para financiar a atividade comercial com países do Oriente Médio. Alguns requisitos, entretanto, precisariam ser respeitados. “As instituições jamais aceitariam ser parceiras e investir em um negócio no qual o comerciante fira a fé, como carne de porco e álcool”, destaca Ângela.

O banco islâmico, em uma operação voltada para o comércio exterior, por exemplo, funciona como uma trading company. A instituição compra a mercadoria e a transfere para o destinatário final. O inverso também se aplica em casos de importação, de modo que, até a entrega do produto ao financiado, todos os riscos correm por conta do banco.

Apesar do potencial de negócios que as finanças islâmicas podem trazer ao Brasil, não se trata de um negócio fácil.  A exceção do exemplo envolvendo o agronegócio e importações e exportações, o uso do sistema financeiro do Islã precisaria de mudanças na legislação para ser colocado em prática.

Legislação
Operações como a emissão de títulos islâmicos, os sukuks, no Brasil, por exemplo, sofreriam bitributação caso não houvesse uma mudança na legislação. Como são operações de compra e revenda de um bem na forma de títulos, sem mudanças o processo ficaria inviável, com dupla incidência de Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). O ideal seria fazer uma alteração para que as duas tributações fiquem com o valor de uma. A ideia é tornar a operação mais viável, como um financiamento de um banco convencional. Para o coordenador Geral do Orçamento Municipal de São Paulo, Ahmed Sameer El Khatib, estudioso das finanças islâmicas, é preciso mostrar para o investidor que dá para ganhar dinheiro. “Eles não proíbem o lucro, mas, sim, a especulação.”

Correio Braziliense

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