Demétrio
Magnoli
A
conciliação do poder público com os bolsões de invasões é também um gesto
político
É lamentável que tenha gente querendo fazer uso político em cima de um
incêndio”, disse um indignado Guilherme Boulos. Mas, como ele bem sabe, o
material inflamado pelas chamas é todo feito de política —ou melhor, de uma
tripla depravação política.
O mercado perfeito só existe no éter dos modelos econômicos puros. A
cidade é a epítome da falha de mercado. Como o valor dos imóveis reflete suas
localizações, o jogo de oferta e demanda tende à segregação social absoluta,
expulsando os pobres para as periferias e, nesse movimento, separando geograficamente
os empregos da força de trabalho.
Da disjuntiva, emanam tanto uma tensão social dilacerante quanto as
políticas urbanas destinadas a estabilizar a segregação. As townships do
apartheid, as cidades-satélites de Brasília, os conjuntos habitacionais das
franjas de Paris, o Minha Casa Minha Vida pertencem, cada um no seu tempo e
lugar, à mesma lógica implacável.
A ordem do absurdo exige, porém, níveis extremos de controle político.
Nos seus interstícios, floresce a cidade ilegal: o cortiço, a favela, a
invasão, a colonização de praças e viadutos por moradores de rua. A política
infiltra-se em tudo.
Os habitantes do prédio Wilton Paes de Almeida pagavam, em dinheiro, a
proteção oferecida por um certo movimento Luta por Moradia Digna. Os ocupantes de
edifícios gerenciados pelo MTST pagam proteção em outra moeda: a presença nas
passeatas e manifestações que projetaram um candidato presidencial.
Três vezes depravação. A conciliação do poder público com os bolsões
de invasões, inclusive aqueles enraizados em imóveis inseguros, é também um
gesto político, que reflete escolhas ideológicas ou a mera inércia de uma ordem
precária. O incêndio é de Haddad e de Doria, em partes iguais.
Nabil Bonduki, um lulista como Boulos, fez “uso político” do incêndio
para clamar por “uma estratégia de produção massiva de habitação social em
áreas bem localizadas” (claro: chancelada pelos “movimentos de moradia
sérios”). Mas a proposta de habitação social no centro expandido apenas troca o
gueto de lugar.
As experiências das Habitações de Locação Moderada parisienses, de
Havana Velha, da antiga Berlim Leste ou das cidades soviéticas já deveriam ter
ensinado o suficiente sobre o lúgubre destino reservado a edificações de
propriedade estatal cedidas em usufruto a moradores pobres. Gueto é ruína
anunciada, como constataram tantos urbanistas livres da gaiola do dogma.
As chamas que consumiram o Wilton Paes de Almeida servirão para
ofuscar ou iluminar? Na longa era do lulismo, o Minha Casa Minha Vida tornou-se
eixo de uma santa aliança de negócios e política.
Numa ponta, o programa oferecia vultosos subsídios ocultos às
construtoras. Na outra, gerava clientelas eleitorais a prefeitos e vereadores,
além de seguidores compulsórios de líderes de movimentos de moradia. O produto
final foi o congelamento do debate sobre o futuro de nossas cidades. Esquerda e
direita combinaram, tacitamente, que ninguém pronunciaria as duas palavras
proibidas: reforma urbana.
Não precisava ser assim. Londres e Paris acordaram, anos atrás, para a
necessidade de reinventar seus centros expandidos por meio de projetos
público-privados de uso múltiplo de áreas degradadas. As metas são evitar tanto
a especialização funcional quanto a segregação residencial segundo faixas de
renda. Na América Latina, cidades colombianas e chilenas adotaram iniciativas
em direções semelhantes.
O edifício que desabou “era um ponto fora da curva na arquitetura, um
prédio de vanguarda”, na descrição do arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, ou um
“esgoto a céu aberto, enxame de mosquito”, no relato do pastor Frederico
Ludwig. As duas imagens devem ser conectadas: o Wilton Paes de Almeida era o
retrato de um país que, em nome dos interesses privados, depreda a cidade.
Folha
de São Paulo
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