sábado, 21 de julho de 2018

UM VELHO SÍMBOLO DA LIBERTAÇÃO DO TERCEIRO MUNDO

Bernard Duterme

Nicarágua: o que resta do sandinismo?

Seus esforços puderam contar tanto com a conjuntura internacional – boom do preço das commodities no mercado mundial – quanto com a ajuda maciça da Venezuela de Hugo Chávez. Mas agora a primeira mudou, e a segunda secou.

“Nicarágua sandinista”. As duas palavras estão coladas uma à outra. Na década de 1980, a América Central atravessava um período de revoluções e contrarrevoluções. Em 1979, os rebeldes sandinistas tinham conseguido derrubar o ditador Anastasio Somoza, há muito conhecido na região como “homem dos Estados Unidos”. Imputava-se aos líderes norte-americanos a tirada: “Somoza é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta” – frase que o presidente Franklin Delano Roosevelt teria pronunciado em 1939 a respeito de Somoza pai e que o secretário de Estado Henry Kissinger teria repetido para falar do filho, já que a dinastia Somoza reinou de 1936 a 1979.

A Guerra Fria era reproduzida na América Central. Um medo percorria o Ocidente: de acordo com a “teoria do dominó”, o comunismo ameaçava conquistar um país após o outro em suas “zonas de influência”. A solidariedade internacionalista convergia em peso para uma pequena nação que zombava do “império” em seu próprio quintal. De um lado, Golias, na pele do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, arquiteto de uma virada conservadora e liberal; do outro, Davi, encarnado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

Na Europa, o Centro Tricontinental (Cetri), na Bélgica, é há muito tempo um dos principais locais de estudo da Revolução Sandinista. Ele chegou a receber, em 1989, a visita do presidente Daniel Ortega; seu fundador, François Houtart, foi diversas vezes condecorado pelo país. Uma obra monumental do ex-ministro da cultura sandinista, o padre, poeta e escultor Ernesto Cardenal, ainda reina diante dos gabinetes do centro em Louvain-la-Neuve: o Zanatillo, símbolo da emancipação do Terceiro Mundo.


No início dos anos 1980, o governo revolucionário da Nicarágua dedicou-se à redistribuição da riqueza, bem como à promoção da saúde e da educação. Ele tentou a economia mista,1 o pluralismo político, o não alinhamento, enquanto a direita norte-americana denunciava um “regime comunista” e armava a oposição: os “Contras”, chamados “combatentes da liberdade”. Em 1990, os comandantes sandinistas, à frente do país desde 1979, acabaram se dobrando. Esgotada pelos anos de guerra, a população fechou o parêntesis revolucionário nas urnas, em um balanço dividido. O lado bom: a luta contra o analfabetismo e a desigualdade, a escola para todos, as campanhas de vacinação, a reforma agrária, a aspiração à soberania nacional. O lado sombrio: o dirigismo de um poder seguro de sua missão libertadora, a razão do Estado imposta a todos, os sacrifícios consentidos em um contexto de violência política e boicote, o ambiente militarizado. Os sandinistas aceitaram a derrota eleitoral. Entrou em cena a “democracia liberal”.

“Populista responsável”
Na mesma época, um período chamado de “normalização democrática” teve início em toda a América Central. Liberalização política formal e liberalização econômica real, ambas com resultado no mínimo problemático. Duas décadas e meia depois, a região não conseguiu romper com o modelo agroexportador, ainda dominante. Apesar de exibir, entre altos e baixos, uma taxa de crescimento de cerca de 4% em média, a Nicarágua não logrou reduzir a pobreza, que afeta uma em cada duas pessoas, e combater a desigualdade: o patrimônio de seus duzentos cidadãos mais ricos representa 2,7 vezes a riqueza que o país produz a cada ano. Ela também não conseguiu garantir emprego formal para a maioria da população ativa nem matar a fome dos habitantes das regiões atingidas pela seca e pelas mudanças climáticas. Depois do Haiti, o país continua sendo o mais pobre do hemisfério ocidental e o mais vulnerável a furacões e terremotos.

Esse balanço social é o mesmo do sandinismo do século XXI. De volta ao governo da Nicarágua em 2006, o ex-líder revolucionário Daniel Ortega completa este ano seu terceiro mandato, fechando duas décadas à frente do Estado (1980-1990 e 2006-2016). Para voltar ao poder após três derrotas consecutivas (nas eleições presidenciais de 1990, 1996 e 2001), o inamovível secretário-geral da FSLN não recuou diante de manobras táticas nem de reviravoltas políticas.

Em termos estritamente eleitorais, sua vitória em 2006, com cerca de 38% dos votos, deve muito a uma primeira reforma constitucional, obtida graças ao “pacto” controverso com Arnoldo Alemán. Presidente ultraliberal da Nicarágua entre 1996 e 2001, este havia sido condenado por corrupção, antes de ser absolvido pela Corte Suprema… de obediência sandinista. Para poder candidatar-se novamente em 2011, já que a Constituição proíbe que uma pessoa tenha mais do que dois mandatos presidenciais, Ortega contou com uma oportuna revogação da mesma Corte Suprema. A vitória, obtida no primeiro turno com uma confortável maioria (62%), continua maculada por várias “irregularidades”, apontadas principalmente pela União Europeia e pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

Na perspectiva das eleições presidenciais de 6 de novembro, o FSLN, que controla a Assembleia Nacional, conseguiu remover todos os obstáculos constitucionais à reeleição ilimitada por maioria simples. Basta “Daniel” (como é chamado na Nicarágua) confirmar as pesquisas, que lhe dão ampla vitória. Hoje, seus concorrentes estão divididos, por falta de notoriedade ou credibilidade, ou impedidos: em junho de 2016, a Corte Suprema de Justiça retirou do Partido Liberal Independente, motor da principal força de oposição (a Coalizão Nacional pela Democracia), a possibilidade legal de apresentar seu candidato para a próxima eleição presidencial. Tudo sob os auspícios de um Conselho Supremo Eleitoral mais do que nunca composto de servos do presidente e contrário, como ele, a qualquer observação externa das eleições.

Em termos fundamentalmente políticos, o “danielismo”, ou “orteguismo” – nas palavras de seus críticos –, não bebe no sandinismo original, mas manteve seu nome. Com concessões disfarçadas e arranjos contraditórios, Ortega soube ganhar o apoio dos setores da sociedade outrora hostis, mantendo sua popularidade entre o povo sandinista.

A criminalização de todas as formas de aborto (inclusive em caso de estupro ou risco de morte), aprovada pelos deputados da FSLN em 2006, marcou os espíritos.3 Ela agradou especialmente ao conservadorismo cristão, dominante na Nicarágua, e em particular ao velho cardeal Miguel Obando. O ex-inimigo jurado do sandinismo começou a mostrar apoio incondicional à família Ortega, que aumentou as promessas de boa-fé… O casal presidencial casou-se na igreja em 2007, após um quarto de século de concubinato e uma sórdida história de abuso sexual de uma filha adotiva. O slogan para a campanha eleitoral de 2011, “Por uma Nicarágua cristã, socialista e solidária”, é repetido incansavelmente nas comunicações governamentais.

Instituições financeiras internacionais, investidores estrangeiros e patronato também encontraram apaziguamento na gestão ortodoxa do presidente Ortega e seu vice-presidente liberal, Jaime Morales, cuja trajetória fala por si só: ex-banqueiro e homem de negócios exilado durante o período revolucionário, ex-líder dos Contras, ex-ministro do presidente Alemán… Juntos, eles decidiram aplicar os programas de austeridade do FMI e do Banco Mundial, privatizar empresas nacionalizadas. Ratificaram o tratado de livre-comércio com os Estados Unidos – país com o qual a Nicarágua realiza hoje metade de seu comércio –, forjaram alianças com o Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep, uma organização patronal), ofereceram exoneração parcial de impostos aos investimentos estrangeiros diretos (IED) etc.

Uma tendência tão reconfortante que, às vésperas das eleições de 2011, o presidente sandinista era descrito nos círculos de negócios como um “populista responsável”. Em 6 de agosto de 2014, a manchete da revista econômica Forbes falava sobre o “milagre da Nicarágua”, elogiando as “políticas de Daniel Ortega”, que “conseguiram atrair investimentos e empresas estrangeiras, graças ao consenso entre governo e setor privado, bem como as reformas estruturais […] necessárias para a economia de mercado e a reativação das exportações e, consequentemente, para o crescimento econômico e o progresso social”.

Embora o “progresso social” não esteja exatamente presente, as medidas tomadas desde 2007 nas áreas de educação e saúde (retorno à gratuidade), combate à pobreza (programa Fome Zero), habitação (projeto Moradia Digna), apoio a pequenos e médios produtores e a cooperativas de mulheres, tudo isso alimentou a popularidade do presidente junto à sua base social sandinista, que permanece leal a ele. Seus esforços puderam contar tanto com a conjuntura internacional – boom do preço das commodities no mercado mundial – quanto com a ajuda maciça da Venezuela de Hugo Chávez. Mas agora a primeira mudou, e a segunda secou.

Um hiato intransponível
As críticas mais duras vêm dos antigos compañeros do presidente, que foram expulsos da FSLN ou saíram por conta própria, a cada fase da privatização do partido vermelho e negro por Ortega e seu clã. Mais ou menos à esquerda da FSLN, mas às vezes também à direita, eles ainda se afirmam sandinistas, empenham-se em “resgatá-la” ou “renová-la” e opõem-se violentamente ao “orteguismo”. Eles vêm das fileiras dos dirigentes, ministros e deputados sandinistas dos anos 1980. A seu lado estão os intelectuais e artistas da Revolução Sandinista da mesma época. Mas, até agora, nenhum deles conseguiu construir uma base social ou eleitoral.

Eles acusam Ortega de ter capturado a FSLN desde a derrota de 1990 e de tê-la instrumentalizado a serviço de sua própria pessoa, quando ela devia ter sido democratizada. Denunciam o “caudilhismo” do comandante, tanto à frente do partido como do país. Criticam seu contorcionismo ideológico para ganhar (e manter) a presidência vitalícia, seu enriquecimento e sua conivência com as grandes fortunas nacionais, o domínio de seu clã – esposa, filhos e amigos – sobre todas as instâncias do Estado e para além dele (Exército, polícia, mídia). Para Dora María Téllez, ícone da revolução e ex-ministra sandinista da Saúde, o presidente tenta “institucionalizar a sucessão familiar” (El País, 19 fev. 2016).

Mais oportunista que socialista, o presidente sandinista mantém um hiato intransponível entre, de um lado, a retórica anti-imperialista, o nacionalismo soberanista e o alinhamento ao livre-comércio e, de outro, a venda das vantagens comparativas do país para quem pagar mais. Um grupo de 27 intelectuais, incluindo o poeta Ernesto Cardenal e a escritora Gioconda Belli, publicaram em maio de 2016 um manifesto intitulado “Não deixemos uma minoria sequestrar a nação”. O modelo de governança orteguista é descrito como um sistema “autoritário, excludente e corrupto”, além de “repressivo em relação às tensões sociais que ele mesmo engendra”. O manifesto denuncia ainda a explosão, entre 2007 e 2015, da economia informal e do subemprego, da dívida externa e dos lucros das grandes empresas.

O sandinismo atual também ofereceu aos investidores estrangeiros (asiáticos, norte-americanos etc.) diversas concessões para projetos ou megaprojetos de desenvolvimento de mineração, energia e turismo, oficialmente para “erradicar a pobreza”. Entre eles, o faraônico e polêmico projeto de escavação do “grande canal da Nicarágua”, ladeado (pelo menos no papel) por uma zona de comércio livre de impostos, um novo aeroporto internacional, complexos turísticos de luxo, portos de águas profundas, estradas, viadutos etc.4

Apesar das contestações, a FSLN e seu líder gozam de uma reputação e de um poder de influência que lhes permitem olhar para o escrutínio de novembro com otimismo.

Le Monde-Diplomatique - Brasil

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