José
Milhazes
O
assassinato de Ekaterimburgo não passou de um episódio do chamado “terror
vermelho”, que ceifou milhões de vidas. Os comunistas começaram pelos nobres,
mas depois a máquina de matar nunca mais parou
O assassinato da família czarista russa na noite de 15 para 16 de
Novembro de 1918, há exactamente cem anos, nada tem de extraordinário se
tivermos em conta os milhões de pessoas que foram mortas pelo regime comunista
soviético, mas, um século depois, esse acto continua a provocar acesas
discussões, pois ainda são muitos aqueles que pretendem explicar o impossível.
Nessa noite os comunistas assassinaram a tiro toda a família do czar
Nicolau II; esposa, quatro filhas e um filho, bem como alguns dos que os
acompanhavam, num total de onze pessoas. O crime foi cometido na cidade
de Ekaterimburgo, nos Urais, mas os restos mortais enterrados numa floresta dos
arredores para esconder o rasto do crime.
Cem anos depois os comunistas russos, e com eles alguns camaradas de
outros países, tentam explicar o assassinato com a “necessidade
revolucionária”, já que no país tinha lugar uma guerra civil sangrenta, mas, ao
mesmo tempo, pretendem ilibar o líder revolucionário Vladimir Lénine desse
crime.
É verdade que Nicolau II foi, talvez, o mais incompetente dos czares
da dinastia Romanov, que governou a Rússia entre 1612 e 1917, tendo sido um dos
principais responsáveis pela criação de uma situação desastrosa que abriu
caminho à tomada do poder pelos bolcheviques em Novembro de 1917. Por
conseguinte, como se costuma dizer, abriu a própria cova onde veio a ser
enterrado. A mulher Alexandra estava também desacreditada na sociedade russa
pois, entre outras coisas, era acusada de ser amante do aventureiro Grigori
Rasputin e de ser “espiã” alemã, calúnias que carecem de fundamento.
Mas para
quê matar jovens e crianças?
Esta questão leva-nos à análise do papel de Vladimir Lénine em todo
este drama. Os comunistas russos, e não só, aproveitam o centenário para
sublinhar que não existe nenhuma prova documental de que o líder revolucionário
tenha ordenado o assassinato da família real, frisando que a decisão foi tomada
pelos bolcheviques locais. E, ao que tudo indica, foi assim.
Porém isto é apenas menos de metade da verdade, pois também é sabido
hoje que Lénine e outros dirigentes comunistas não condenaram o crime, nem
nenhum dos carrascos foi vítima de qualquer tipo de repreensão ou repressão,
pelo contrário, foram transformados em heróis revolucionários.
Além disso, mesmo antes de publicados numerosos documentos secretos
dos arquivos soviéticos, já era evidente que Lénine, Trotsky ou Estaline não
teriam problemas em dar a ordem de “cortar o mal pela raiz”. No caso do líder
máximo da revolução, esse estado de espírito está evidente num artigo que ele
escreveu em 1908 sobre o regicídio em Portugal.
Então refugiado na Suíça, Lénine escreveu o seguinte no artigo “Sobre
o que aconteceu ao rei português”, publicado no jornal Proletarii de
19 de Fevereiro de 1908: “A imprensa burguesa, mesmo a mais liberal e
“democrática”, não pode passar sem a moral da extrema-direita ao abordar o
assassinato do aventureiro português”, acrescentando ironicamente que “…o
sucedido com o rei português é verdadeiramente “um desastre profissional” dos
reis”.
E acrescenta, para que não haja dúvidas sobre a posição dos
bolcheviques: “Nós, da nossa parte, acrescentamos apenas que só podemos
lamentar uma coisa: que o movimento republicano em Portugal não tenha, decidida
e abertamente, dado cabo de todos os aventureiros. Lamentamos que no sucedido com
o rei português seja ainda evidente o elemento de conjura, isto é, de terror
que, na sua essência, não alcança os objectivos, sendo fraco o terror
verdadeiro, popular, realmente renovador, que tornou famosa a Grande Revolução
Francesa”.
Segundo ele, “até agora, em Portugal conseguiu-se apenas amedrontar a
monarquia com o assassinato dos dois monarcas, mas não exterminar a monarquia”.
Depois disto ainda haverá dúvidas de que Lénine queria acabar com toda
a casa real russa? A perseguição implacável que foi lançada contra os restantes
membros da família Romanov (irmãos, tios, primos do czar) talvez ajude a
esclarecer totalmente este assunto.
Ao longo destes cem anos foram-se criando mitos com vista a esconder o
verdadeiro objectivo do crime. Uma das teses apoiadas até ao presente por
diferentes forças, desde sectores dirigentes da Igreja Ortodoxa Russa até aos
comunistas, consiste em que o assassinato da família czarista se tratou de um
“ritual cabalístico”, ou seja, os “verdadeiros culpados” de tudo, como tantas
vezes “aconteceu” na História, são os judeus. É verdade que a execução foi
dirigida por um judeu, Iakov Iurovski, mas este era o único hebreu que
participou no crime.
Aliás, a Igreja Ortodoxa Russa tem desempenhado um papel muito ambíguo
em todo este processo. Embora numerosos estudos científicos tentam provado que
os restos mortais encontrados nos arredores de Ekaterimburgo são dos membros da
família real, os hierarcas ortodoxos recusam-se a reconhecer esse facto. Já no
que respeita à “santidade” de Nicolau II, da sua mulher e filhos, eles não têm
dúvidas, embora pelo menos a vida do último czar russo esteja longe de ser
exemplar.
E se esses foram considerados santos, porque é que as restantes
pessoas que, juntamente com eles, foram sujeitas ao martírio bolchevique não
mereceram ser elevados aos altares? Só há uma explicação: entre eles estava um
católico, o camareiro letão Aleksei Trupp.
Este centenário poderia ser um bom momento para nos debruçarmos sobre
a História Russa em particular e sobre a violência na sociedade em geral. A
família real russa, no fundo, já estava condenada à morte logo que os
bolcheviques tomaram o poder, pois o assassinato de Ekaterimburgo não passou de
um episódio do chamado “terror vermelho”, que ceifou milhões de vidas. Os comunistas
começaram por matar nobreza e alta burguesia, monárquicos e liberais,
socialistas de direita e de esquerda, anarquistas e outros “aliados
descartáveis”. Depois, como é sabido, deram início ao extermínio mútuo e à
criação de “inimigos do povo”, pois a máquina do terror não podia parar.
E isto não aconteceu apenas na Rússia, veio depois a China, as
“democracias populares” do Leste da Europa, Angola, Afeganistão, etc.
Impossível é arranjar exemplos que provem o contrário.
Observador – Portugal
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