Nathalia
Passarinho, André Shalders e Mariana Schreiber
Elas operam em dezenas de países e são reconhecidas pela excelência em
tecnologia. Mas também estão sendo acusadas de participar de um cartel
responsável por fraudar licitações na área da saúde no Rio de Janeiro, num
esquema criminoso que teria movimentado R$ 1,5 bilhão.
Investigação que surgiu como desdobramento da Operação Lava Jato
aponta que mais de 30 grandes empresas participariam do "Clube do Pregão
Internacional", entre as quais gigantes multinacionais como a Philips e a
Johnson & Johnson. Constam da lista companhias alemãs, norte-americanas e
holandesas, países que estão entre as 20 nações com menor percepção de
corrupção, conforme o ranking de 2016 da ONG alemã Transparência Internacional.
Já o Brasil está na em 79º lugar entre 176 países. O ranking leva em
consideração a percepção que a população tem sobre a corrupção entre servidores
públicos e políticos. Quanto melhor um país está situado no ranking, menor é a
percepção da corrupção entre os nacionais.
As empresas estrangeiras investigadas pelo Ministério Público teriam
formado um cartel para fraudar e cobrar sobrepreço em licitações da Secretaria
de Saúde do Rio de Janeiro e do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia
Jamil Haddad (Into), segundo os procuradores responsáveis pela Operação Fatura
Exposta, deflagrada na última quarta-feira.
Esta não é a primeira vez que empresas multinacionais de países desenvolvidos
são investigadas na Lava Jato - uma das primeiras linhas de investigação girou
em torno de contratos da Petrobras com a holandesa SBM Offshore. A empresa foi
alvo da operação Sangue Negro da Polícia Federal em 2015, e mais tarde seu
representante no Brasil admitiu ter pagado propina para conseguir contratos com
a Petrobras.
Mas como explicar a aparente contradição entre a atuação dessas
empresas em seus países com o que vem sendo investigado no Brasil?
"Desconto
de imposto para quem paga propina"
O representante no Brasil da Transparência Internacional, Bruno
Brandão, destaca que, por muitos anos, os países desenvolvidos chegavam a
incentivar a prática de corrupção por parte de suas empresas em países pobres e
em desenvolvimento, enquanto punia com rigor irregularidades praticadas em seus
territórios.
"Países europeus como a Alemanha e a França davam até incentivos
fiscais para o pagamento de suborno no exterior. As empresas poderiam deduzir
do imposto gastos com 'facilitação', um eufemismo para suborno. Você poderia
registrar nos livros (contábeis) o pagamento de suborno em países em
desenvolvimento", disse ele à BBC News Brasil.
Em inglês, este tipo de pagamento é chamado de "facilitating
payment", e é considerado diferente de propina - embora a diferença entre
uma coisa e outra seja nebulosa. "Havia uma cobrança de comportamento
ético no território nacional, mas uma cumplicidade (com a corrupção) quanto à
atividade das empresas no exterior", diz ele.
De acordo com a advogada criminalista e especialista em conformidade
Sylvia Urquiza, a prática de abater dos impostos os gastos com propina
continuou até recentemente, nos anos 2000. "O pensamento dos governos era:
'só vamos conseguir expandir os negócios em países dominados pela prática de
corrupção se pagarmos propina também'", diz ela.
Em 1997, os países-membros da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) assinaram um acordo antipropina (OECD
Anti-Bribery Convention), comprometendo-se a evitar a prática - embora não a
tenham proibido totalmente, explica Urquiza. A convenção entrou em vigor em
1999, e foi complementada em 2009.
Nos EUA, diz a especialista, existe uma lei contra a corrupção no
exterior (conhecida pela sigla em inglês SCPA) desde 1977. Mas só no começo dos
anos 2000 o país começou a aplicar a legislação de forma mais sistemática,
especialmente para empresas das áreas de tecnologia da informação e de saúde -
pois estes setores estão entre os que mais fecham contratos com o poder
público.
Mudanças
ainda tímidas
Segundo Bruno Brandão, por mais que hoje as legislações dos países
tenham evoluído, ainda há resquícios da cultura de que seria aceitável praticar
irregularidades em nações com menos fiscalização e maiores índices de
corrupção.
O ex-ministro da Controladoria-Geral da União e especialista em
compliance Jorge Hage lembra que o período no qual, em tese, teriam ocorridos
os crimes desvendados pela operação no Rio (a partir de 1996) são anteriores ao
endurecimento no combate à corrupção no Brasil, e à convenção da OCDE.
"As mudanças na legislação brasileira (como a Lei Anticorrupção e
a Lei das Organizações Criminosas) são muito recentes. Ambas as leis são de
2013. E a própria Lava Jato começou em 2014. Logo, não chega a surpreender que
essas empresas globais, à época desses fatos, ainda atuassem nos moldes
tradicionais, apostando na impunidade nos países periféricos", disse o
ex-ministro à BBC Brasil.
Hage ressaltou que fala em tese, pois não teve acesso aos dados da
investigação para além do que a imprensa noticiou.
Segundo o diretor do Instituto Ethos, Caio Magri, o combate à
corrupção depende também de mudanças culturais nas empresas que, infelizmente,
costumam ocorrer lentamente.
"A GE já teve outros casos (de conduta ilegal) mais complexos e
maiores envolvendo a empresa nos Estados Unidos e na Europa, que provocaram
mudanças e transformações na empresa. Mas ainda não conseguiram atingir a toda
organização", nota ele.
Como
funcionaria o esquema no Rio?
A nova fase da Operação Fatura Exposta foi deflagrada pela Polícia
Federal e pelo Ministério Público na quarta-feira. Prendeu oito executivos,
entre eles Daurio Speranzini Jr, CEO da General Electric Healthcare para a
América Latina. Speranzini é investigado por fatos ocorridos quando atuava como
executivo da Philips.
Propinas teriam sido pagas pelas empresas a governantes e funcionários
públicos do Rio de Janeiro entre 1996 e 2017.
Assim como nas investigações do Mensalão e da Lava Jato, o Ministério
Público identificou a atuação de diferentes "núcleos"- político,
econômico e operacional- no esquema de corrupção da área da saúde.
O núcleo operacional seria liderado pela empresa de equipamentos
médicos Oscar Iskin, do empresário brasileiro Miguel Iskin, que também foi
preso. Ele seria responsável por fazer a ligação entre o setor público (chamado
de núcleo político, pelo MPF) e empresários integrantes do cartel (núcleo econômico),
para direcionar pregões públicos de compra de equipamentos médicos.
Empresas concorrentes que não faziam parte do cartel seriam
propositadamente desclassificadas das concorrências, a partir da inclusão de
cláusulas na licitação que favoreciam especificamente as integrantes do grupo
criminoso.
Segundo o Ministério Público, as multinacionais, que integravam o
núcleo econômico do esquema, pagavam uma comissão de pelo menos 10% do valor do
contrato a Iskin, para garantir as vitórias no pregão, e cobravam sobrepreço na
oferta dos equipamentos para financiar a comissão e a propina paga aos agentes
públicos que aderiram ao esquema.
"Esses atos de ofício eram comprados com o pagamento de vantagens
indevidas milionárias, as quais eram custeadas com base na arrecadação de
valores com as empresas beneficiárias das licitações, seja por meio de
pagamento de 'comissões' no exterior (correspondentes a cerca de 40% dos
contratos), seja por meio do recolhimento no Brasil de valores entre 10% e 13%
dos contratos firmados pelas empresas do cartel", diz o Ministério
Público.
O que dizem
os investigados
A General Electric, cujo CEO no Brasil foi preso, afirmou à BBC News
Brasil que as acusações contra Daurio Speranzini Jr referem-se a um período em
que o executivo ainda não trabalhava para a empresa. "A GE atua com base
nos mais altos padrões de integridade, ética e transparência. E está à
disposição das autoridades para qualquer eventual esclarecimento", disse.
A Philips, citada nas investigações como integrante do cartel,
informou que está "cooperando com as autoridades para prestar quaisquer
esclarecimentos quanto às investigações em andamento".
"A política da Philips é realizar negócios de acordo com todas as
leis, regras e regulamentos aplicáveis. Quaisquer investigações sobre possíveis
violações dessas leis são tratadas muito seriamente pela empresa."
A Johnson & Johnson Medical Devices, que também seria parte do
esquema, conforme o Ministério Público, afirmou que "segue rigorosamente
as leis do país e está colaborando integralmente com as investigações em
andamento".
O advogado de Miguel Iskin, dono da Oskar Iskin, negou que ele tenha
cometido crimes.
"A Oskar Iskin está com as atividades paralisadas, desde 2016.
Não houve licitação vencida pela Oskar Iskin na qual o preço não fosse o de
mercado, ou seja, o correto. Não houve licitação em que a Oskar Iskin tenha
vencido em que exatamente o equipamento contratado não tenha sido
entregue", disse o seu advogado Alexandre Lopes.
BBC News Brasil
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