Rob Mudge
Sistemas de seguridade da Alemanha e
Reino Unido têm origens comuns, mas se diferenciaram no pós-guerra. Hoje, ambos
estão em dificuldades, e o preço pode ser colapso da coesão social e conflitos
de classes.
O mundo
já está mais ou menos acostumado às tiradas do presidente americano, Donald
Trump, contra tudo e contra todos. Ainda assim, foi uma dupla surpresa, quando,
em 5 de fevereiro, ele achou por bem tuitar seu desagrado com o estado do pilar
do sistema de saúde do Reino Unido, o National Health Service (NHS).
"Os
democratas [dos Estados Unidos] estão pressionando pelo Universal Health Care,
enquanto milhares de pessoas saem em passeata no Reino Unido porque o sistema
universal delas está falindo e não funciona. Democratas querem subir muito os
impostos em troca de assistência médica bem ruim e impessoal. Não,
obrigado!"
Em
primeiro lugar, possivelmente houve uma certa perplexidade por ele sequer ter
ouvido falar do NHS. Em segundo, terá gerado consternação a perspicácia de
Trump ao descrever essa situação.
Isso
porque, de acordo com diversos observadores, o serviço nacional de saúde
britânico está, de fato, "falido" e "sem funcionar". Como
provas disso, estão seu crônico subfinanciamento, operações canceladas e
pacientes atentidos nos corredores dos hospitais ou em ambulâncias, devido à
falta de leitos.
Sistema ternário britânico
Porém
não foi sempre assim. Criado em 1948 pelo então ministro da Saúde Nye Bevan, um
paladino da justiça social e dos direitos dos trabalhadores, o NHS era
igualitário e independente de contribuições, sendo diretamente financiado pelas
arrecadações tributárias. No entanto é uma abordagem cara, por cobrir a todos,
não só os trabalhadores.
"No
Reino Unido, há um sistema ternário, composto pelo indivíduo, o empregador e o
Estado", explica Chris Renwick, catedrático de História Moderna da
Universidade de York e autor de Bread for all: The origins of the welfare
state (Pão para todos: As origens do Estado previdenciário).
"Então
há uma noção de que ou se encontra um modo de reformar a base tributária, de
modo a pagar pelo sistema dentro da economia que se tem; ou é preciso que
explorar um modo separado de pagá-lo através de um modelo de seguridade. Senão,
a alternativa é abandonar a ideia de que o NHS seja uma modelo de assistência
universal."
Costuma-se
a atribuir grande parte do sucesso do NHS no Estado previdenciário do
pós-guerra ao comprometimento da classe média com o sistema, diz Renwick. Isso
explicaria a continuada relutância em mexer com ele.
"Se
você introduz um sistema em que se espera que a classe média contribua para a
assistência de saúde, numa espécie de esquema transacional, há um temor de que
isso represente uma falência do contrato social, em relação a certas
coisas."
Na Alemanha, governo de fora da
saúde
A Alemanha,
por sua vez, tem um sistema dual de diversos pagadores, obrigatório para todos
que vivem no país. De acordo com a renda e o estatuto empregatício, os cidadãos
escolhem entre a seguridade pública, provida por caixas de saúde não
governamentais, e seguradoras privadas.
As
contribuições se baseiam ou numa percentagem da renda (público) ou na idade e
risco (privado). O Estado, nos diversos níveis administrativos, não desempenha
praticamente nenhum papel no financiamento da assistência de saúde.
Segundo
Renwick, "do ponto de vista histórico, o sistema alemão é um importante
ponto de comparação. A estrutura bismarckiana do fim do século 19, que
estabeleceu o primeiro serviço de saúde universal, foi, de diversos modos, uma
espécie de inspiração para determinados aspectos do sistema britânico no fim do
século 19 e início do 20."
Seguro-desemprego: procurar trabalho
ou não?
Tradicionalmente,
a Alemanha sempre manteve um quadro bem mais generoso de benefícios
previdenciários. Isso se aplicava especialmente ao seguro-desemprego, segundo o
qual o trabalhador tinha direito a uma percentagem bastante alta de seus
últimos vencimentos, durante um ano.
"Assim,
como docente universitária, por exemplo, eu seria paga 80% do meu salário
atual, estaria muito bem e não teria muito incentivo para voltar ao local de
trabalho", comenta Patricia Hogwood, professora associada de Política
Europeia na Universidade de Westminster, com especialização na política e
sistema previdenciário alemães.
Em 2003,
o governo de coalizão entre social-democratas e verdes introduziu as reformas
da previdência conhecidas como Hartz IV, que endureceram as condições para os
desempregados, tornando-se profundamente impopulares. Em contrapartida, os
assalariados do Reino Unido têm sempre em mente que, caso percam o emprego, sua
renda será cortada inteiramente. Isso funciona como incentivo para que se
encontre trabalho o mais rápido possível.
A
Alemanha basicamente serviu como modelo para os britânicos até meados do século
20, quando os sistemas passaram a divergir. O Reino Unido "opta por uma
versão peculiar do sistema de contribuição para a seguridade nacional",
diz Renwick. Este se define pela adoção de taxas fixas, tanto para as
contribuições como para os benefícios: "Se você tiver pagado por 20 anos,
recebe a mesma quantia do que se contribuiu seis meses."
Hogwood
frisa que o modelo anglo-irlandês sempre teve como finalidade prover cobertura
de emergência e total. "Ele não foi realmente concebido para substituir a
renda em caso de necessidade. Para quem tivesse um emprego bem pago, não daria
nem para cobrir as despesas a que está acostumado; para os baixos assalariados,
ficaria bem parecido com o que a pessoa estava acostumada. E os pagamentos eram
por um prazo breve, pois se partia do princípio que se encontraria emprego
relativamente rápido."
Sem legitimidade, colapso da coesão
e conflito social
A época
atual, de mudanças estruturais e econômicas, está encarecendo muito a
manutenção dos sistemas de previdência, e os legisladores se esforçam para
encarar o desafio, diz Patricia Hogwood.
"Os
governos acham que não têm como manter esses velhos sistemas, mas ainda querem
reter o elemento de legitimidade que o sistema previdenciário gerava para eles.
Pois, se não se preserva isso, o que se tem é um colapso da coesão social, é o
conflito entre os grupos sociais que estamos vendo agora."
Os
governos tanto do Reino Unido quanto da Alemanha têm procurado "dar um
jeitinhos", com emendas ao Estado previdenciário, a fim de torná-lo mais
eficaz e economicamente viável. Contudo o consenso parece ser que é necessária
uma reforma radical do sistema, da base até o topo.
"Acho
que a mensagem final é que, apesar das diferentes abordagens adotadas
tradicionalmente, ambos os sistemas estão indo pelo mesmo caminho, pois os dois
adotaram o curso neoliberal de priorizar a flexibilidade da mão de obra e a
competitividade da economia, na frente do que o bem-estar."
"Eles
querem cortar os benefícios previdenciários, mas ambos enfrentam o desafio de
como evitar conflito social e como manter a legitimidade do governo, com as
pessoas assim tão zangadas", analisa Hogwood. "Gradualmente forma-se
uma classe social que fica de fora por simplesmente não poder pagar os custos
suplementares."
DW-Deutsche
Welle
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