Roberto DaMatta
O século passado está permeado das
carcaças de revoluções fracassadas
São
conceitos originários do triunfo do campo político e econômico e, não por
acaso, dominam o nosso pensamento e permeiam os valores da chamada “modernidade
ocidental”, hoje globalizada. Aprimorados sob a égide do indivíduo-cidadão como
motor da vida social, o político e o econômico estão interligados. Vale
observar, porém, como “intervenção” e “revolução” estão ausentes ou são raros
no campo religioso. Essa esfera que, ao lado da economia e da política, possui
primazia na nossa visão de mundo.
Fizemos
muito mais revoluções (e intervenções) políticas e econômicas do que
religiosas, um campo no qual – no nosso sistema cultural – predominam as
“reformas”. Reformar é promover uma modificação relativa situada aquém daquilo
que a nossa cosmologia ainda figura no espaço de redentoras transformações
sociais. De um certo ponto de vista, a ideia de revolução com “R” maiúsculo,
enfeixaria todos os campos sociais menos, é óbvio, o do paradoxal interesse ou
vontade popular de realizá-la e dirigi-la.
Seriam as revoluções alérgicas ao religioso porque prometem uma transcendência histórica enquanto a religião garante uma eterna salvação? Ou revolução e religião não combinam também porque o ponto de partida revolucionário seria construir (ou reconstituir, como queriam os pensadores radicais vitorianos) um paraíso neste mundo e não no outro?
Seriam as revoluções alérgicas ao religioso porque prometem uma transcendência histórica enquanto a religião garante uma eterna salvação? Ou revolução e religião não combinam também porque o ponto de partida revolucionário seria construir (ou reconstituir, como queriam os pensadores radicais vitorianos) um paraíso neste mundo e não no outro?
O
materialismo iluminista e burguês afirma que tudo (inclusive as ideias) vêm da
realidade física e biológica. Neste universo sem ironia, paradoxo,
liminaridade, ambiguidade e incoerência, o elo entre a matéria e o espírito é
de ordem mecânica – menos, é claro – a utopia revolucionária a qual promove sem
saber um inconsciente retorno ao religioso.
O século
passado – como diz o harvardiano Nur Yalman – está permeado das carcaças de
revoluções fracassadas. Lenin, Stalin, Mao, Mussolini e Hitler tentaram todos
controlar a modernidade – para detê-la ou acelerá-la – e falharam. Mustafa
Kemal Pasha, o famoso Atatürk tendo como inspiração o materialismo burguês,
buscou acomodar soberania popular com islamismo nas décadas de 20 e 30 do século
passado, mas, como diz Yalman (que é turco), tal tentativa fracassou no atual
regime de Erdogan.
Fizemos
muito mais revoluções políticas e econômicas do que religiosas e, no entanto, a
Reforma que, pelo credo revolucionário, seria uma mera rebelião, agenciou uma
irônica mudança sem precedentes. A crer em Max Weber e Karl Polanyi, ela
estilhaçou o centralismo, reinventou a racionalidade, o capitalismo e o
mercado...
Tivemos
também o nosso momento revolucionário com Getúlio Vargas, em 1930, e até hoje persiste
dúvida na classificação do movimento militar ocorrido em 1964. Para quem diz
que o movimento ocorreu no dia 1.º de abril, todo mundo caiu num golpe. Para
quem se refere a um romano fim de março, teria sido revolução.
A
intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, determinada por imoralidade
administrativa, a perda de controle da rotina tomada por bandidos e a mais
absoluta ausência de competência têm suscitado reações.
Grande
parte da elite brasileira se diz revolucionária, mas não chega a ser
reformista. E, menos ainda, protestante. Há, agora, o receio da intervenção no
sistema de (in)segurança do Rio de Janeiro. Reformar mete menos medo do que
intervir, que fica mais ao lado do protesto.
Primeiro,
porque sempre fizemos as reformas apropriados a um Estado republicano cuja
função sempre foi a de canibalizar a sociedade a ele profundamente entrelaçada,
mas sempre visto como sendo uma entidade independente e, quando interessa,
onipotente.
Segundo,
porque as reformas requerem uma densa aprovação política e têm amplos objetivos
e múltiplas consequências. Para muitos, elas correm o risco de realizar o que
tememos: igualar e regular privilégios.
Terceiro
porque, nas reformas, as responsabilidades podem ser dissolvidas. Rejeitadas ou
modificadas numa instância política, pode-se culpar uma outra e se ninguém
decide coisa alguma, vão para o centro de nossa hierarquia: o STF.
O
contraste com a intervenção é nítido. Nela, há a figura de um interventor.
Personificada num responsável, corre-se o risco de erro ou acerto – ou seja:
daquilo que os políticos escondem, já que são capazes de tudo, menos de admitir
culpa ou admitir erros. Em suma: a intervenção é um protesto, tem uma autoria e
permite atribuir responsabilidade, dimensões que o sistema, regido pela sua
matriz aristocrática, tem horror.
Finalmente,
mas não por último, intervenção rima com revolução.
O Estado de São Paulo
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