Editorial
Não há nenhum motivo razoável para que juízes recebam auxílio-moradia
e uma série extensa e generosa de benesses custeadas pelo dinheiro dos
contribuintes a não ser o poder de que desfrutam legalmente para obtê-las. A
remuneração do Judiciário é um cipoal de "verbas indenizatórias" que
fariam a delícia dos trabalhadores da iniciativa privada, que compõem a fatia
dos 99% dos assalariados que têm rendimentos inferiores aos dos juízes e
magistrados.
Criado em 1979 pelo Estatuto da Magistratura, elaborado por membros do
Judiciário, o auxílio-moradia não atende mais sequer à sua finalidade duvidosa:
conceder ajuda pecuniária aos membros mais bem pagos do aparelho de Estado para
custear residências quando não existirem imóveis funcionais disponíveis. A
ajuda, de R$ 4.377,73, equivale ao dobro do salário médio brasileiro e é
concedida também ao Legislativo e Ministério Público.
Em setembro de 2014, para atender a ações de magistrados, o ministro
Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar que estendia o
auxílio-moradia aos magistrados que o pleiteassem, independentemente de
possuírem ou não imóvel próprio e de residirem ou não na mesma cidade em que
trabalham. No fim de 2017, Fux liberou para julgamento no STF a questão, que
deverá ser votada em março pela Corte. De lá para cá, foram consumidos em
dinheiro público algo como R$ 5 bilhões.
O auxílio-moradia comprova que o que é legal não é necessariamente
justo. Não só há juízes e procuradores com um ou mais imóveis no local em que
trabalham recebendo o benefício, como o juiz Sergio Moro e Deltan Dallagnol,
coordenador do MPF na Operação Lava-Jato, como há quem dê asas à interpretação
legal, como Marcelo Bretas, juiz responsável pela Lava-Jato no Rio - com
respaldo da Justiça. Casado com uma juíza, que já recebe o benefício, Bretas
pleiteou e obteve também o direito a recebê-lo, apesar de morar com a esposa e
ser dono de imóvel no Rio. A Justiça decidiu que o auxílio é um "direito
pessoal".
Membros da alta hierarquia do Judiciário reagem com indignação e algum
sarcasmo ao pedido de explicação das mordomias, como se elas fossem únicas,
naturais e incontroversas. Todos argumentam que a prebenda para moradia é
legal, embora sua extensão esteja sendo garantida por liminar. Estão certos
quanto à legalidade, mas suas manifestações deixam claro também que são contra
mudanças na lei.
O auxílio-moradia é uma de muitas regalias, que faz com que mais de
dois terços dos magistrados dos Tribunais de Justiça de 26 Estados recebam
acima do teto de R$ 33.763 a que faz jus o presidente da República, o que
ocorre com 11,6 mil dos 16 mil juízes e desembargadores. Sua média salarial é
de R$ 42,5 mil, como mostrou "O Globo".
Nessas e em outras coisas mais, o Rio de Janeiro se excede. A lista de
benefícios ao Judiciário é vasta e inclui auxílios para alimentação, saúde,
transporte, pré-escola, instrução dos próprios magistrados, fora pelo menos
dois meses de férias. Os gastos mensais com vantagens desse tipo, em um Estado
falido e carcomido pelo crime, são de R$ 6,9 milhões.
As benesses são fáceis de criar e difíceis de acabar, mesmo porque os
juízes e seus pares são os encarregados julgar sua propriedade e legalidade. Há
vários argumentos para tentar justificá-las. Uma análise superficial esbarra na
propensão a que a criação de alguma vantagem à categoria em alguma parte do
território se alastre nacionalmente, sob a bandeira da isonomia. "Os
advogados da União agora recebem honorários advocatícios. Em janeiro, cada um
recebeu R$ 6 mil e esse valor foi pago até mesmo para aposentados", disse
Roberto Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais. Que aposentados
ganhem por isso é uma aberração, mas o líder da associação de juízes acha isso
natural, desde que os magistrados não fiquem para trás.
Em artigo na "Folha de S. Paulo", a Ajufe defende direitos
questionáveis. Ela tem absoluta razão ao afirmar que, pela importância da
função, juízes merecem o teto da remuneração, algo de que ninguém discorda. Mas
seria altamente desejável que eles se restringissem de fato ao mais alto
salário da República. Hoje ganham muito mais do que isso, de forma não
transparente, algo incompatível com a verdadeira justiça.
Valor Econômico
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