Carlos Alberto
Sardenberg
Prefeito pode furar sinal vermelho,
juiz pode ganhar mais que o teto, ficha suja condenado pode ser candidato a
presidente
Um amigo
meu, professor da Universidade de Miami, cientista reconhecido, foi parado pelo
guarda. Excesso de velocidade. Tentou se explicar: “Sim, estou apressado, mas o
senhor compreenda, estou atrasado para uma aula na universidade...” Nem
terminou a frase. “Atrasado, professor? Não tem problema, vou aplicar a multa
bem rapidinho”, disse o policial, enquanto teclava no celular. “Pronto, pode
ir, e cuidado, há outros pontos de fiscalização.”
No Rio,
um dos carros utilizados pelo prefeito Crivella teve 55 multas no ano passado,
das quais 38 por excesso de velocidade, sete por passar no sinal vermelho e
cinco por circular na faixa exclusiva de ônibus.
Ficou
por isso mesmo. As multas foram canceladas porque, tal é a alegação,
autoridades têm o direito de não respeitar as leis de trânsito. Ou, dito pelo
avesso, furar sinal vermelho é legal para o prefeito. Ou ainda: o motorista de
um carro oficial pode, legalmente, colocar em risco a vida de outros motoristas
e pedestres.
E por
que o prefeito teria esse direito? Digo o prefeito porque certamente a culpa
não é do motorista. Algum superior manda: desça o pé porque Sua Excelência está
atrasada. Alguém poderia dizer: o motorista pode recusar uma ordem ilegal ou
cuja execução possa causar danos a ele e a terceiros. Mas não funciona assim,
conforme todos sabemos.
Pode
parecer um caso pequeno, mas basta dar uma olhada no noticiário para se
encontrar uma sequência de histórias com o mesmo enredo: a lei não vale para
autoridades nem para as elites políticas.
Por
exemplo: nenhum funcionário pode ganhar mais que o juiz do Supremo Tribunal
Federal. Logo, vencimentos superiores a esse teto são ilegais, certo?
Errado:
assim como criaram exceções para legalizar o excesso de velocidade, o “sistema”
inventou verbas indenizatórias que tornam legal o excesso de vencimentos. Caso
do auxílio-moradia, pago mesmo a funcionários que têm casa própria e cujo
cônjuge também recebe a mesma vantagem.
Lula foi
condenado em segunda instância, por unanimidade, e tornou-se ficha suja,
inelegível, portanto. O expresidente luta de todas as maneiras para escapar da
cadeia e ser candidato — uma prerrogativa do réu. Mas reparem os argumentos
apresentados pela sua defesa e por diversos outros chefes políticos: sendo Lula
um líder popular, pré-candidato e primeirão nas pesquisas, as condenações não
deveriam ser aplicadas. Quer dizer, a lei não deveria ser aplicada.
Já são
três casos: o prefeito pode furar sinal vermelho, o juiz pode ganhar mais que o
teto, um ficha suja condenado pode ser candidato a presidente. O prefeito é
responsável pelo respeito às leis do trânsito; o juiz é responsável pela
aplicação da lei em geral, inclusive da que trata de remunerações do
funcionalismo; e o presidente é responsável pela ordem legal republicana.
Todos
legalizando o ilegal. E desmoralizando a política. Tem mais. Em defesa da
deputada Cristiane Brasil, governistas e aliados dizem que não há qualquer
problema em ter um ministro do Trabalho envolvido com ... questões
trabalhistas. Mais ou menos como se o chefe da Receita Federal estivesse
enrolado com a Receita.
Há
centenas de parlamentares processados por crimes comuns, muitos já réus em mais
de uma ação, e que continuam legislando, não raro em causa própria. A lei penal
não vale para eles.
A Caixa
Econômica Federal está em óbvia situação difícil, consequência de uma
combinação de má gestão e corrupção. Três vice-presidentes acabam de ser
afastados e não se pode esquecer que Geddel Vieira Lima, hoje preso, foi
justamente vice-presidente da Caixa.
Por
isso, sem dinheiro, a Caixa está restringindo a concessão de empréstimos,
inclusive para governos estaduais. Bronca geral dos parlamentares da base.
Ameaçam não votar a reforma da Previdência ou qualquer outra coisa. Ocorre que
se a Caixa fizer tais empréstimos aos estados, sem aval da União, estará
cometendo uma ilegalidade. E se o Ministério da Fazenda der o aval, seria outra
ilegalidade.
Pois o
pessoal não vê aí qualquer obstáculo. É só aprovar alguma regra legalizando
essa ilegalidade, um assalto à Caixa — e assim se vai, quebrando uma estatal
atrás da outra.
Eis
porque a Lava-Jato causa alvoroço. A operação está dizendo que roubar é crime e
que os ladrões vão para a cadeia. Dizendo só, não, está aplicando a regra
segundo a qual a lei vale para todos. Simples, assim. É um assombro.
O Globo
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