Rodrigo
da Silva
Vai
dizer que você nunca ouviu essa história por aí, em qualquer
discussão política onde a expressão livre
mercado
insiste em aparecer: liberais são utópicos e ingênuos porque
acreditam que o mercado é bonzinho. Ora, empresários são
mesquinhos e estão interessados apenas em ganhar dinheiro, não é
mesmo? Por que raios alguém acreditaria que um pobre tem algo a
ganhar num cenário onde a livre concorrência impera? Os mais pobres
serão engolidos nessa selvageria onde cada um é dono do seu próprio
nariz, dizem. Além disso, os mais pobres precisam ter acesso à
educação e à saúde. Alguém acredita realmente que o tal do
mercado está interessado nesse negócio?
Quase
sempre o caminho oferecido ao combate dessa ingenuidade latente
liberal é a crença de que políticos estão plenamente interessados
em atender os interesses dos mais pobres – ou então, a
estabelecerem um cenário onde os mercados funcionam com justiça,
seja lá o que isso signifique. Políticos são como divindades
abençoadas que dedicam suas vidas ao mais desprendido altruísmo. A
ideia funciona da seguinte maneira: você pega compulsoriamente quase
metade daquilo que um pobre tem como fruto de seu trabalho, e entrega
para algumas figuras de terno e gravata que prometem mundos e
fundos num determinado período a cada quatro anos, acreditando que
elas estarão interessadas em defender seus interesses melhor do que
eles mesmos – e não apenas dedicando cada segundo de suas vidas a
sustentar suas posições de poder e a de seus financiadores, em
geral grandes empresas interessadas em utilizar de seus serviços para
concentrar poder econômico. É como se de tempos em tempos você
escolhesse o gerente do seu banco e lhe confiasse retirar todos os
meses quase metade do que você ganha para gastar em seu nome em
coisas para você mesmo, permitindo a ele retirar boa parte
desse dinheiro apenas para sustentar a intermediação desse
processo. Exatamente como se fosse um desses investimentos
estúpidos que você não tem como se livrar.
E
isso ainda não conta tudo que acontece por trás
dessa história. Você colocará também essas mesmas pessoas de
terno e gravata para criar leis e medidas que protejam os grandes
empresários – aqueles mesquinhos do começo da história – a não
lidarem com concorrência, afinal de contas você não quer um
cenário de livre mercado, não é mesmo? É
exatamente pra isso que a grande burocracia brasileira funciona:
proteger os mais ricos da entrada dos mais pobres no mercado.
As papeladas e boletos, afinal, funcionam como um tormento
incomparavelmente menor para aqueles que preenchem o topo da pirâmide
em comparação aos que estão na base, muitas vezes
condenados à informalidade empreendedora – e com ela à
insegura que sepulta muitos negócios promissores. O
protecionismo aqui não significa outra coisa que não seja proteger
as grandes empresas que já chegaram lá e condenar os mais pobres a
desistirem da possibilidade de ascender socialmente através das
ferramentas de mercado que ascenderam os mais ricos.
“Ok,
mas isso tudo não prova que o mercado é bonzinho”,
você deve estar pensando. E você tem razão. Só tem um
problema: não existe esse negócio de bem ou mal na natureza do
mercado. Assim como não passa de papo furado essa estória de
deus
mercado. Carlos
Fuentes, um dos grandes romancistas da literatura mexicana do último
século, criticava o fundamentalismo
econômico dos liberais, “com sua convicção religiosa de que
o mercado, deixado aos seus próprios mecanismos, é capaz de
resolver todos os nossos problemas”. Harvey Cox, um dos mais
influentes teólogos dos Estados Unidos, professor em Harvard, diz
que para os crentes do liberalismo o mercado é feito uma
divindade, “no mistério que o envolve e na reverência que
inspira”. Como Deus, na visão de Cox, para os liberais ele é
“onipotente (possui todos os poderes), onisciente (possui todo o
saber) e onipresente (existe em todos os lugares)”, com atributos
que “nem sempre são completamente evidentes para os mortais,
mas deve-se acreditar neles e afirmá-los pela fé”.
Não,
não se deve. No mercado não existe nenhuma divindade, fé, bem ou
mal. Mercados funcionam através de instituições econômicas. Sem
mágica. Não é como se houvesse homens usando chapéu-coco com os
pés apoiados em mesas de mogno, jogando banco imobiliário. Não
existe uma mente brilhante ou perversa por trás, julgando e
condenando a bel-prazer. O
mercado é um tecido social onde as pessoas realizam trocas.
Nesse tabuleiro, eu, você ou aquele seu amigo barbudo comunista,
traçamos o rumo daquilo que queremos. As moedas facilitam esse
processo. Os preços guiam o melhor racionamento de todas as coisas
que existem no mundo. No fundo, o mercado é uma invenção humana,
com imperfeições humanas, criado para lidar com um fato
incontestável a respeito da natureza: a certeza de que, longe da
infinitude do divino e das promessas abundantes e irresponsáveis do
universo político, o mundo material é limitado pela escassez.
Nada dura para sempre, não existe tal coisa como produtos ou
serviços ilimitados. Guiados por tal limitação, os seres humanos
desenvolveram uma ferramenta que possibilitasse razão ao uso
dos bens materiais. E o nome dela é mercado.
E
aqui, nós fazemos escolhas. O tempo todo. Quando você decidiu
colaborar livremente para financiar o projeto dessa página (e você
pode fazer isso clicando nesse
link), implicitamente escolheu não gastar o seu dinheiro
com outra coisa. Quando foi levado a abrir esse texto e
dedicar os minutos que o levaram até a exata leitura dessa frase,
fez o mesmo com outro bem escasso e precioso seu: o tempo. Essas
decisões acontecem o tempo todo ao redor do mundo. Bilhões de
pessoas, todos os dias, trocam sua força de trabalho por mordidas em
sanduíches, baforadas de perfume, pisões em sapatos de couro.
Outras tantas, sem qualquer julgamento moral do mercado, fazem o
mesmo com crucifixos e livros religiosos, parcelam brinquedos
eróticos no cartão de crédito, se embebedam com cerveja barata. O
mercado premia pessoas que servem pessoas – e se engana quem pensa
que isso acontece através da tal da meritocracia
(mas esse é assunto para outro texto, que você receberá em
primeira mão nos próximos dias caso tenha exercido a livre
decisão de curtir a nossa página; e você pode fazer isso clicando
aqui).
Nesse
imenso tecido de trocas, são as pessoas que criam os ideais do
que é bom ou ruim – não o sistema. No mercado, você pode
escolher adquirir marcas simplesmente porque elas apoiam o
casamento gay, combatem o racismo, questionam o papel da mulher na
sociedade ou defendem os interesses dos animais. Você pode fazer
tudo isso ao mesmo tempo em que realiza boicote ou pressiona outras
marcas a seguirem pelo mesmo caminho – algo estupidamente comum nos
últimos tempos. Pode criar produtos de nicho para atender
demandas de grupos esquecidos. Pode utilizar dos produtos dispersos
pelo mercado para propagar discursos contra o próprio mercado. No
fim, guiado por incentivos econômicos – o bom e velho interesse
pelo lucro – você provavelmente será condicionado dentro desse
sistema indisposto ao julgamento à tolerância em relação à
diferença. Como diz Robert Wright:
“Uma
das muitas razões por que penso que não devemos bombardear os
japoneses é que eles fizeram minha minivan.”
Dessa
forma, ainda que amoral, o mercado premia a empatia – entre
minorias étnicas, sexuais, religiosas. E isso pode ser facilmente
corroborado pela história. Como diz o psicólogo canadense Steven
Pinker:
“A
história sugere muitos exemplos nos quais a maior liberdade de
comércio correlaciona-se com mais paz. O século XVIII viu uma
calmaria nas guerras e uma ênfase no comércio, quando os alvarás e
monopólios régios começaram a dar lugar a mercados livres, e a
mentalidade protecionista do mercantilismo deu lugar à mentalidade
do ganho para todos do comércio internacional. Muitos países que se
retiraram do jogo das grandes potências e suas consequentes guerras,
como a Holanda no século XVIII e Alemanha e Japão na segunda metade
do século XX, canalizaram suas aspirações nacionais para o
objetivo de se tornarem potências comerciais. As tarifas
protecionistas dos anos 1930 acarretaram um declínio no comércio
internacional e, talvez, um aumento nas tensões internacionais. A
atual cortesia entre Estados Unidos e China, países que têm pouco
em comum além do rio de produtos manufaturados numa direção e
dólares na outra, é um lembrete recente dos efeitos conciliadores
do comércio.”
Em
resumo, mercados são amorais e privilegiam a convivência pacífica
entre as pessoas – quase todas interessadas na mesma coisa: servir
umas às outras, independentemente de suas identidades, para receber
dinheiro por isso. Não por acaso, como aborda o próprio Pinker em
The
Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined,
desde a Revolução Industrial e do desenvolvimento da sociedade
capitalista, países simpáticos à economia de mercado
testemunharam uma queda brusca em todos os cenários de
violência (seja quando falamos de guerras civis ou
internacionais, atos de terrorismo, abuso contra mulheres, gays,
crianças ou animais). Pense nisso na próxima vez em que
tentar tirar onda com um liberal ao citar sua hipotética
ingenuidade na crença de que o mercado é bonzinho.
spotniks
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