Jorge Maranhão
Já
se disse que o cidadão brasileiro aprendeu rapidamente a se manifestar.
Petroleiros e demais categorias de trabalhadores, funcionários públicos,
taxistas em protesto contra um aplicativo de celular, ativistas de minorias e
direitos humanos, moradores em busca de mais segurança, ambientalistas e outros
grupos políticos acostumaram-se a ocupar o espaço público para protestar contra
tudo e mais alguma coisa: preço do diesel, de tarifa de transporte, preço de
pedágio, falta de passarelas em rodovias, violência policial, transporte
público, precariedade de programas sociais, de habitação, serviços públicos de
saúde, educação, previdência e outras inumeráveis demandas. Infelizmente, ações
de grupos de interesse, muitas vezes legítimos, mas sem consequências maiores
na mudança da própria cultura, condutas e instituições políticas. Interesses de
grupos específicos que apenas reafirmam a falta de compromisso de todos com o
interesse público, fim maior da ação política.
Essa
discussão sobre direitos e deveres deveria ocupar um espaço muito maior no
debate público. O fato é que estamos há décadas inebriados com um sentido menor
da ação política, de cunho essencialmente demagógico e não propriamente
democrático, uma vez que direitos de alguns acabam por comprometer os direitos
de todos. E mais: se há direitos para uns é por que deve haver deveres para
outros. Entre as últimas manifestações por direitos, tomemos como exemplo as
mais recentes de caminhoneiros em pelo menos dez estados. Mesmo que as
reivindicações do momento sejam das mais justas para a categoria, é claro que a
interrupção do fluxo de veículos em vias públicas, seja uma rua, avenida,
estrada ou rodovia é ilegal. E, com certeza, muito perigosa por causa do alto
risco de acidentes. Infelizmente, o noticiário fica por aí e não avança numa
outra questão, o pedágio cobrado pelas concessionárias nessas circunstâncias.
Se
a concessionária tem o direito de cobrar pela garantia de segurança e de
fluidez de trânsito na rodovia sob seus cuidados, tem também uma série de
deveres legais que o noticiário não cobre, não questiona e não conscientiza os
cidadãos para o fato. Da mesma forma, se os caminhoneiros têm o direito à
liberdade de se manifestar, têm também o dever de não impedir o livre ir e vir
dos demais cidadãos. Dois direitos pétreos da alegada “Constituição cidadã”,
livre expressão e livre trânsito, sem a menção dos deveres cívicos de todos os
cidadãos para sua efetiva garantia.
Há
alguns anos, eu mesmo sofri na pele esse desentendimento de direitos e deveres,
que caracteriza nossa baixa cultura política, ao ficar preso numa rodovia no
interior do estado do Rio de Janeiro, bloqueada por manifestantes que
reivindicavam a construção de mais passarelas na via.
Em
todos os contratos do poder público com concessionárias para a exploração de
rodovias, está estabelecido que elas devem garantir a segurança e, é claro, a
fluidez do trânsito em sua área de responsabilidade. Estes vêm a ser em
essência os próprios serviços concedidos pelo poder público e prestados contra
o pagamento dos pedágios. No caso de manifestações, a concessionária deve
convocar e dar todo o apoio necessário às instituições policiais, agências
reguladoras (constantemente omissas em sua função de interceder junto ao
mercado para salvaguardar os interesses da cidadania) e Ministério Público para
que a situação seja normalizada o quanto antes e motoristas, passageiros e
cargas não tenham seu trânsito interrompido.
As
penalidades pelo não cumprimento desses serviços vão desde multas, liberação da
cobrança do valor do pedágio e, no extremo, o cancelamento da concessão. Ou
seja, para além da responsabilidade civil, ela tem a responsabilidade política
diante de demais entes públicos, de zelar pelos seus usuários.
O
conceito é o mesmo do Código de Direitos do Consumidor. Ao pagar o pedágio, o
usuário da rodovia espera, em retorno, não apenas os serviços de segurança e
fluidez do trânsito de uma rodovia expressa, mas a garantia de operação
conjunta com os demais agentes públicos responsáveis pela manutenção de seu
direito constitucional de livre trânsito. Se, num caso como esse de interrupção
de vias, fica claro que o retorno não existe, então não deveria existir também
a obrigatoriedade incondicional da cobrança do pedágio. Um bom exemplo disso
são as próprias praças de pedágio, pontos naturais de retenção de tráfego que
têm a sua liberação prevista em lei, caso as filas cheguem a 300 metros ou o
tempo de espera for superior a 15 minutos, sendo a concessionária obrigada a
liberar as cancelas para o tráfego voltar a fluir.
Evidentemente,
as concessionárias se defendem. A Associação Brasileira de Concessionárias de
Rodovias alega que, por se tratar de concessões de poder público, elas não
estão sujeitas ao Código do Consumidor, e sim ao Código de Defesa do Usuário de
Serviços Públicos e de Utilidade Pública, uma lei que ainda está tramitando no
Congresso Nacional sem qualquer previsão de aprovação. Esperteza pura. Segundo
o promotor de Justiça Rodrigo Terra, ele mesmo um dos Agentes de Cidadania aqui
de nosso Instituto, esta argumentação é falsa: “o que vale é mesmo o
Código de Direitos do Consumidor, que
está acima de regulações setoriais, como o setor bancário ou este de concessões
públicas”.
Pois
o que fiz, assim que o trânsito foi liberado? Dirigi-me à praça de controle de
tráfego e avisei que não pagaria o pedágio, pois houve quebra dos serviços de
segurança e fluidez no trânsito a que toda concessionária é obrigada a prover,
para além da quebra de uma garantia constitucional. Junto comigo, apenas dois
ou três outros cidadãos se dispuseram a perder este tempo e pressionar por
melhores serviços, que valham o abusivo preço dos pedágios cobrados hoje em
dia.
No
próximo dia 15 de novembro, domingo, estão previstas dezenas de manifestações
por todo o país para reivindicar o impedimento da presidente da República e a
deposição do presidente da Câmara dos Deputados. Um dos nossos direitos
máximos, o de expressão, será confrontado mais uma vez com outro, o da
liberdade de ir e vir, além de colocar em risco mais outro, o da propriedade.
Vamos às ruas mostrar nossa indignação com o baixo nível da nossa representação
política, mas não podemos esquecer que a esses direitos correspondem outros
deveres que não podem ser negligenciados. Esse é dos pontos centrais da
cidadania: a cada direito, um dever. Qualquer sentido diferente deste é
corrupção de valores, democracia corrompida em demagogia.
Vale
lembrar que o economista Roberto Campos, ele mesmo constituinte e crítico de
nossa “Constituição Cidadã”, demonstrou em números esta contradição num artigo
para o Jornal da Tarde, ainda em 1988: “a Constituição foi promulgada com a
palavra ´direito´ escrita 76 vezes, mas ´dever´ aparece em apenas quatro
momentos”.
Mal
sabia ele que, quase trinta anos e muitas emendas depois, nossa Carta Magna
ostentaria estratosféricas 163
ocorrências de “direito(s)”, contra apenas 48 “dever(es)!
Num
país de elites sociais politicamente míopes e deformadas, população deseducada,
governantes sem noção de honra ou pudor, gestores públicos omissos ou mal
intencionados e instituições de Estado ainda adolescentes, trombeteiam direitos
ilimitados a todos e a todo tempo, quase sempre a sociedade como um todo é que
paga a conta. Só mesmo a esperança de que a iniciativa de poucos cidadãos
conscientes e atuantes repercutida no espaço da mídia possa vir a mudar o
estado miserável de nossa cultura política.
Nunca
foi tão oportuno o alerta mordaz de Millôr Fernandes: “Nossa liberdade começa onde começa a escravidão alheia”.
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