quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A Argentina acaba de eleger seu novo presidente. E isso pode impactar a sua vida.

Felippe Hermes

Poucas nações sabem tão bem o significado da palavra “mudança” quanto a Argentina. O slogan da campanha vitoriosa de Maurício Macri – do espanhol, “cambiemos” -, se adapta perfeitamente à uma nação que experimentou no último século sair de uma economia próspera, com renda per capita superior a de países como França e Alemanha, para uma  economia emergente, com renda semelhante à Hungria e ao Cazaquistão. Mudanças estão no DNA argentino, e quase todas ligadas à política. Mais uma vez agora, o país surpreende e pode liderar uma mudança ainda mais ampla, que afete todo o continente.

Por trás das elegantes fachadas dos casarões do início do século vinte, auge da riqueza do país, quando a carne e o trigo argentinos abasteciam o mundo, a economia argentina vai de mal a pior. Argentina, Brasil e Venezuela devem ser, segundo o Fundo Monetário Internacional, as 3 únicas nações do continente a enfrentarem recessão em 2015 e 2016.

Os índices de preço, que medem a inflação oficial, são pouco confiáveis – mesmo eles, porém, atestam uma inflação acima de 2 dígitos, em torno de 15%. Como resultado, o governo já não consegue negar que, como no Brasil e na Venezuela, a pobreza voltou a crescer.
Neste clima de incertezas sobre o futuro, os argentinos optaram, ainda que timidamente, por eleger um presidente não alinhado ao kirchnerismo, a corrente política dominante no país nos últimos 12 anos, originada pelos presidentes Nestor e Cristina Kirchner. Ocupando o vácuo de poder durante a crise de 2001-2003, quando o país declarou moratória na sua dívida externa, levando a uma sucessão de presidentes incapazes de resolver a crise, o casal Kirchner se consolidou como uma considerável força política no país, não abrindo mão do confronto – seja com a mídia, os ruralistas, o judiciário, o ministério público, ou qualquer um que interferisse em seu projeto de manutenção do poder.

Assim como na última grande mudança, a situação do país não é nada tranquila. Apesar de não estar no nível de 2001, quando a moeda argentinou virou pó e o país viu sua economia encolher de US$ 325,5 bilhões para US$ 123,6 bilhões em 1 ano, a situação é complicada e oferece alguns desafios ao novo presidente – além de uma oportunidade para o Brasil. Aqui, listamos cinco desafios que Macri terá pela frente.

1. CONCLUIR SEU MANDATO.
Juan Domingo Perón governou a Argentina entre 1946 e 1955. Para além de uma biografia conturbada, incluindo acusações de pedofilia e simpatias pelo regime nazista (que ajudaram a tornar a Argentina um paraíso para criminosos de guerra fugidos da Alemanha após o fim da Segunda Guerra Mundial), sua política econômica de caráter nacionalista e seu discurso fortemente enraizado no populismo latino americano, o elevaram à condição de quase unanimidade no país, fazendo do peronismo a mais influente corrente política argentina durante décadas.

Desde que deixou o governo em 1955, porém, um estranho fato ronda a política do país. Nenhum político não-peronista conseguiu concluir um mandato dado pelas urnas. Para analistas, tal fato se deve pela completa ausência de uma terceira força, que garanta governabilidade ao presidente em questão. Para outros, no entanto, as razões são mais simples: os peronistas, e agora kirchneristas, comandam sindicatos e movimentos sociais capazes de impôr pressão política.

Maurício Macri elegeu-se presidente pelo PRO, o Republican Proposal (Proposta Republicana). Pela primeira vez, a oposição não peronista terá condições de obter maioria na Câmara dos Deputados, onde o partido Judicialista do casal Kirchner ainda manterá 117 das 257 cadeiras. No Senado, o partido de Kirchner terá 42 das 72 cadeiras. Macri enfrentará inúmeros desafios, mas certamente nenhum será maior do que romper esta barreira histórica e concluir seu mandato.

2. DAR TRANSPARÊNCIA AOS DADOS OFICIAIS.
Manipular dados estatísticos tornou-se um esporte para o governo argentino. Dos índices de inflação à taxa de câmbio, entidades independentes desconfiam de praticamente tudo o que seja noticiado pelo governo do país. Segundo o “índice-congresso”, estatística divulgada pela oposição que reúne uma média das principais consultorias independentes do país, a inflação em 2014 teria atingido 38,53%. No resultado oficial, porém, os números costumam ser metade ou um terço daquele apurado pelas consultorias.

Segundo os analistas, o INDEC, equivalente ao IBGE brasileiro, estaria sendo forçado a mudar suas formas de cálculo para agradar os interesses do governo, desde que sofreu pesada intervenção em 2007, ainda no governo Néstor. Consultorias internacionais, longe do alcance do governo argentino, apontam que a manipulação se estende para além dos índices de inflação, com índices de pobreza também inclusos no caos que se tornaram as estatísticas do país.

Em 2015, assim como ocorreu no Brasil e na Venezuela, a Argentina viu a pobreza parar de cair, a despeito do avanço de programas sociais. Estima-se que os subsídios dados pelo governo atinjam hoje 28,3% dos lares argentinos (contra 9,3% em 2003), incluindo aí uma versão do programa Bolsa Família. Ao todo os programas consomem 3,9% do PIB (no Brasil, o Bolsa Família e o Bolsa Empresário, nossos maiores “programas sociais”, custam respectivamente 0,5% e 0,7% do PIB).

Como era de se esperar, a presidente Cristina acusa o candidato da oposição de pretender acabar com os programas. Macri, porém, tem a oportunidade de salvá-los na medida em que assuma um compromisso com números realistas, que tornem mais palpável o problema da inflação no país.

3. FAZER A ARGENTINA VOLTAR A TER CREDIBILIDADE INTERNACIONAL.
Ao contrário do Brasil, que resolveu seus problemas com credores internacionais há mais de 2 décadas, a Argentina ainda vive às voltas com sua crise da dívida em 2001. Um grupo de credores recusou-se a fechar o acordo proposto pelo presidente Néstor, que pagaria apenas 30% dos valores devidos pelo país. Tal grupo, apelidado de fundos abutres, tem causado alguma dor de cabeça ao governo, como no episódio em que a presidente Cristina viu-se impedida de utilizar seu avião oficial por risco de vê-lo ser apreendido a pedido dos credores.

Disputas judiciais em tribunais internacionais e uma absoluta ausência de acordos comerciais de maior relevância (limitando-se a acordos com países como Irã e uma sabotagem no Mercosul), fizeram o comércio exterior do país minguar, levando a Argentina a uma crise cambial de grandes proporções. Para contornar o problema, o governo anunciou um rígido controle sobre gastos de cidadãos em viagens ao exterior e uma cotação paralela do dólar. As constantes intervenções cambiais e uma absoluta falta de perspectiva levaram ao anúncio do cancelamento de projetos bilionários, como os da mineradora Vale, que pretendia investir US$ 6 bilhões em um projeto de potássio (cerca de 1% do PIB do país).

A falta de dólares levou o governo a tornar comum o aumento da demora em liberar produtos brasileiros como calçados e eletrodomésticos. A corrente de comércio entre os dois países, que durante décadas foi favorável ao país vizinho, tornou-se largamente favorável ao Brasil, e com isso o comércio simplesmente travou. A boa relação entre os governos brasileiro e argentino não foi sinônimo de integração como era de se esperar. Projetos como a Termoelétrica de Uruguaiana, construída para operar com gás da Argentina, simplesmente deixou de operar por falta de condições do país vizinho de atender a demanda (a queda nos investimentos fez da Argentina um importador de energia, em especial da Bolívia).

Para Maurício Macri, a relação do governo brasileiro com a Casa Rosada tende a ser facilitada com sua eleição. Sua meta principal no âmbito externo é reconstruir a aliança com o Brasil e reformular o Mercosul, para levá-lo a fechar acordos bilaterais com blocos como a União Européia. Segundo ele, sua primeira visita oficial será no Brasil, onde se encontrará com a presidente Dilma Rousseff.

4. FAZER A ARGENTINA VOLTAR A CRESCER.
O caso argentino em muito se assemelha ao brasileiro quando o assunto é economia. Enfrentamos problemas semelhantes, como déficit em conta corrente, déficit nas contas públicas (os gastos públicos do governo argentino saíram de 22% em 2002 para 38% do PIB em 2014), além de uma inflação que ameaça chegar a 2 dígitos no Brasil e custa a cair abaixo deste patamar no país vizinho.


Assim como a Venezuela, Brasil e Argentina estão dentre as economias que registrarão duas quedas seguidas em sua economia, com uma retração de 0,3% em 2015 e uma previsão de 2,6% em 2016, no caso argentino. Durante décadas, no entanto, ambos os países compartilharam mutuamente o posto de maior parceiro comercial um do outro. Tal situação, ao contrário do que era de se esperar, mudou após o Mercosul. Não é de se estranhar, portanto, que a aposta no Brasil seja prioridade para o novo governo.

Tanto Macri quanto seu oposicionista durante as eleições buscaram a palavra “diálogo” para definir o novo governo que pretendiam. Macri, porém, com longa atuação no setor privado como empresário da construção, atraiu maior parte da simpatia de agricultores e empresários da indústria de transformação, a maior do país. Sua política de buscar abertura comercial junto a outros países tem sido vista como um alívio após anos de embate e controle de exportações pelo governo de Cristina. Ao que tudo indica, os bons ventos na economia podem soprar por aqui também.

5. OK, MAS O QUE VOCÊ TEM A VER COM ISSO TUDO?
O Brasil possui uma das economias mais fechadas do mundo (é a economia mais fechada do G20, atrás da Argentina e da Índia). Mas apesar de caminharmos para um solitário isolamento no cenário internacional, vimos na última década uma aproximação injustificável com uma nação em especial: a Venezuela, de Chávez e Maduro.
Nossas empresas participam de diversas atividades na Venezuela, do setor de alimentos até grandes obras de infraestrutura. Para o governo, a relação é valiosa e serviu, entre outras coisas, de lobby para incluí-la no Mercosul.

“A presença da Venezuela no Mercosul (…) abre oportunidades para vários empreendimentos”, disse Dilma ao dar as boas-vindas ao país ao bloco regional, em 2012.

Há bons motivos para isso? Certamente nenhum superior à identificação ideológica que o governo brasileiro mantém com Caracas. É graça a ela, aliás, que o Planalto vem sistematicamente se calando em relação aos contundentes descasos políticos testemunhados no país nos últimos anos – buscando ausentar-se de uma discussão inevitável, para fugir do combate a um governo ideologicamente alinhado.

E é aqui que entra a Argentina na história. Macri prometeu há poucos dias denunciar Maduro no Mercosul pelo caso de Leopoldo López, ameaçando pedir a realização de uma reunião dos países do bloco “para exigir que se aplique a cláusula democrática constante do acordo do Mercosul” e a suspensão venezuelana.

“Está muito claro, para nós, que Maduro tem de respeitar as liberdades”, disse.
Maduro, alinhado do kirchnerismo (e lobista da candidatura de Scioli, derrotado), respondeu à altura, dizendo que Macri realizou uma “campanha do medo”. Para o presidente venezuelano, o presidente eleito argentino é como “um demônio”.

O enfrentamento entre duas visões distintas de mundo no continente inevitavelmente forçará o governo brasileiro a tomar uma postura mais incisiva em relação ao seu papel no bloco: ou continuará reforçando o discurso de Maduro, ou abraçará a causa de Macri. Com o primeiro, construirá uma queda de braço diplomática desnecessária com a segunda maior economia da região, colhendo os frutos dos fracassos de Caracas e se isolando cada vez mais no comércio exterior. Com o segundo, terá a chance de remodelar completamente sua relação com a economia mundial, destravando-se de parceiros ideológicos para se tornar um player global unicamente interessado em seu próprio desenvolvimento.

A eleição de Macri é um passo importante para garantir alternância política e uma renovação que poderá tornar os governos sul-americanos mais moderados e adeptos ao comércio, além de outras medidas que podem gerar um continente mais rico e próspero.

Agora, resta saber qual caminho Dilma escolherá. Ele poderá ditar os rumos da região nos próximos anos – e da sua vida, por tabela.

SPOTNIKS




Nenhum comentário: