Felippe Hermes
Poucas nações sabem tão bem o significado da
palavra “mudança” quanto a Argentina. O slogan da campanha vitoriosa de
Maurício Macri – do espanhol, “cambiemos” -, se adapta perfeitamente à uma
nação que experimentou no último século sair de uma economia próspera, com
renda per capita superior a de países como França e Alemanha, para uma
economia emergente, com renda semelhante à Hungria e ao Cazaquistão. Mudanças
estão no DNA argentino, e quase todas ligadas à política. Mais uma vez agora, o
país surpreende e pode liderar uma mudança ainda mais ampla, que afete todo o
continente.
Por trás das elegantes fachadas dos casarões do
início do século vinte, auge da riqueza do país, quando a carne e o trigo
argentinos abasteciam o mundo, a economia argentina vai de mal a pior.
Argentina, Brasil e Venezuela devem ser, segundo o Fundo Monetário
Internacional, as 3 únicas nações do continente a enfrentarem recessão em 2015
e 2016.
Os índices de preço, que medem a inflação
oficial, são pouco confiáveis – mesmo eles, porém, atestam uma inflação acima
de 2 dígitos, em torno de 15%. Como resultado, o governo já não consegue negar
que, como no Brasil e na Venezuela, a pobreza voltou a crescer.
Neste clima de incertezas sobre o futuro, os argentinos optaram,
ainda que timidamente, por eleger um presidente não alinhado ao kirchnerismo, a corrente política dominante no país nos
últimos 12 anos, originada pelos presidentes Nestor e Cristina Kirchner.
Ocupando o vácuo de poder durante a crise de 2001-2003, quando o país
declarou moratória na sua dívida externa, levando a uma sucessão de presidentes
incapazes de resolver a crise, o casal Kirchner se consolidou como uma
considerável força política no país, não abrindo mão do confronto – seja com a
mídia, os ruralistas, o judiciário, o ministério público, ou qualquer um que
interferisse em seu projeto de manutenção do poder.
Assim como na última grande mudança, a situação do país não é nada
tranquila. Apesar de não estar no nível de 2001, quando a moeda argentinou
virou pó e o país viu sua economia encolher de US$ 325,5 bilhões para US$ 123,6
bilhões em 1 ano, a situação é complicada e oferece alguns desafios ao novo
presidente – além de uma oportunidade para o Brasil. Aqui, listamos cinco
desafios que Macri terá pela frente.
1.
CONCLUIR SEU MANDATO.
Juan Domingo Perón governou a Argentina entre 1946 e 1955. Para
além de uma biografia conturbada, incluindo acusações de pedofilia e simpatias
pelo regime nazista (que ajudaram a tornar a Argentina um paraíso para
criminosos de guerra fugidos da Alemanha após o fim da Segunda Guerra Mundial),
sua política econômica de caráter nacionalista e seu discurso fortemente
enraizado no populismo latino americano, o elevaram à condição de quase
unanimidade no país, fazendo do peronismo a mais influente corrente política
argentina durante décadas.
Desde que deixou o governo em 1955, porém, um estranho fato ronda
a política do país. Nenhum político não-peronista conseguiu concluir um mandato
dado pelas urnas. Para analistas, tal fato se deve pela completa ausência de
uma terceira força, que garanta governabilidade ao presidente em questão. Para
outros, no entanto, as razões são mais simples: os peronistas, e agora
kirchneristas, comandam sindicatos e movimentos sociais capazes de impôr
pressão política.
Maurício Macri elegeu-se presidente pelo PRO, o Republican
Proposal (Proposta Republicana). Pela primeira vez, a oposição não peronista
terá condições de obter maioria na Câmara dos Deputados, onde o partido
Judicialista do casal Kirchner ainda manterá 117 das 257 cadeiras. No Senado, o
partido de Kirchner terá 42 das 72 cadeiras. Macri enfrentará inúmeros
desafios, mas certamente nenhum será maior do que romper esta barreira
histórica e concluir seu mandato.
2.
DAR TRANSPARÊNCIA AOS DADOS OFICIAIS.
Manipular dados estatísticos tornou-se um esporte para o governo
argentino. Dos índices de inflação à taxa de câmbio, entidades independentes
desconfiam de praticamente tudo o que seja noticiado pelo governo do país.
Segundo o “índice-congresso”, estatística divulgada pela oposição que reúne uma
média das principais consultorias independentes do país, a inflação em 2014
teria atingido 38,53%. No resultado oficial, porém, os números costumam ser
metade ou um terço daquele apurado pelas consultorias.
Segundo os analistas, o INDEC, equivalente ao IBGE brasileiro,
estaria sendo forçado a mudar suas formas de cálculo para agradar os interesses
do governo, desde que sofreu pesada intervenção em 2007, ainda no governo
Néstor. Consultorias internacionais, longe do alcance do governo argentino,
apontam que a manipulação se estende para além dos índices de inflação, com
índices de pobreza também inclusos no caos que se tornaram as estatísticas do
país.
Em 2015, assim como ocorreu no Brasil e na Venezuela, a Argentina
viu a pobreza parar de cair, a despeito do avanço de programas sociais.
Estima-se que os subsídios dados pelo governo atinjam hoje 28,3% dos lares
argentinos (contra 9,3% em 2003), incluindo aí uma versão do programa Bolsa
Família. Ao todo os programas consomem 3,9% do PIB (no Brasil, o Bolsa Família
e o Bolsa Empresário, nossos maiores “programas sociais”, custam
respectivamente 0,5% e 0,7% do PIB).
Como era de se esperar, a presidente Cristina acusa o candidato da
oposição de pretender acabar com os programas. Macri, porém, tem a oportunidade
de salvá-los na medida em que assuma um compromisso com números realistas, que
tornem mais palpável o problema da inflação no país.
3.
FAZER A ARGENTINA VOLTAR A TER CREDIBILIDADE INTERNACIONAL.
Ao contrário do Brasil, que resolveu seus problemas com credores
internacionais há mais de 2 décadas, a Argentina ainda vive às voltas com sua
crise da dívida em 2001. Um grupo de credores recusou-se a fechar o acordo
proposto pelo presidente Néstor, que pagaria apenas 30% dos valores devidos
pelo país. Tal grupo, apelidado de fundos abutres, tem causado alguma dor de
cabeça ao governo, como no episódio em que a presidente Cristina viu-se
impedida de utilizar seu avião oficial por risco de vê-lo ser apreendido a
pedido dos credores.
Disputas judiciais em tribunais internacionais e uma absoluta
ausência de acordos comerciais de maior relevância (limitando-se a acordos com
países como Irã e uma sabotagem no Mercosul), fizeram o comércio exterior do
país minguar, levando a Argentina a uma crise cambial de grandes proporções.
Para contornar o problema, o governo anunciou um rígido controle sobre gastos
de cidadãos em viagens ao exterior e uma cotação paralela do dólar. As
constantes intervenções cambiais e uma absoluta falta de perspectiva levaram ao
anúncio do cancelamento de projetos bilionários, como os da mineradora Vale,
que pretendia investir US$ 6 bilhões em um projeto de potássio (cerca de 1% do
PIB do país).
A falta de dólares levou o governo a tornar comum o aumento da
demora em liberar produtos brasileiros como calçados e eletrodomésticos. A
corrente de comércio entre os dois países, que durante décadas foi favorável ao
país vizinho, tornou-se largamente favorável ao Brasil, e com isso o comércio
simplesmente travou. A boa relação entre os governos brasileiro e argentino não
foi sinônimo de integração como era de se esperar. Projetos como a
Termoelétrica de Uruguaiana, construída para operar com gás da Argentina,
simplesmente deixou de operar por falta de condições do país vizinho de atender
a demanda (a queda nos investimentos fez da Argentina um importador de energia,
em especial da Bolívia).
Para Maurício Macri, a relação do governo brasileiro com a Casa
Rosada tende a ser facilitada com sua eleição. Sua meta principal no âmbito
externo é reconstruir a aliança com o Brasil e reformular o Mercosul, para
levá-lo a fechar acordos bilaterais com blocos como a União Européia. Segundo
ele, sua primeira visita oficial será no Brasil, onde se encontrará com a
presidente Dilma Rousseff.
4.
FAZER A ARGENTINA VOLTAR A CRESCER.
O caso argentino em muito se assemelha ao brasileiro quando o
assunto é economia. Enfrentamos problemas semelhantes, como déficit em conta
corrente, déficit nas contas públicas (os gastos públicos do governo argentino
saíram de 22% em 2002 para 38% do PIB em 2014), além de uma inflação que ameaça
chegar a 2 dígitos no Brasil e custa a cair abaixo deste patamar no país
vizinho.
Assim como a Venezuela, Brasil e Argentina estão dentre as
economias que registrarão duas quedas seguidas em sua economia, com uma
retração de 0,3% em 2015 e uma previsão de 2,6% em 2016, no caso argentino.
Durante décadas, no entanto, ambos os países compartilharam mutuamente o posto
de maior parceiro comercial um do outro. Tal situação, ao contrário do que era
de se esperar, mudou após o Mercosul. Não é de se estranhar, portanto, que a
aposta no Brasil seja prioridade para o novo governo.
Tanto Macri quanto seu oposicionista durante as eleições buscaram
a palavra “diálogo” para definir o novo governo que pretendiam. Macri, porém,
com longa atuação no setor privado como empresário da construção, atraiu maior
parte da simpatia de agricultores e empresários da indústria de transformação,
a maior do país. Sua política de buscar abertura comercial junto a outros
países tem sido vista como um alívio após anos de embate e controle de
exportações pelo governo de Cristina. Ao que tudo indica, os bons ventos na
economia podem soprar por aqui também.
5. OK,
MAS O QUE VOCÊ TEM A VER COM ISSO TUDO?
O Brasil possui uma das economias mais fechadas do mundo (é a
economia mais fechada do G20, atrás da Argentina e da Índia). Mas apesar de
caminharmos para um solitário isolamento no cenário internacional, vimos na
última década uma aproximação injustificável com uma nação em especial: a
Venezuela, de Chávez e Maduro.
Nossas empresas participam de diversas atividades na Venezuela, do
setor de alimentos até grandes obras de infraestrutura. Para o governo, a
relação é valiosa e serviu, entre outras coisas, de lobby para incluí-la no
Mercosul.
“A presença da Venezuela no Mercosul (…) abre oportunidades para
vários empreendimentos”, disse Dilma ao dar as boas-vindas ao país ao bloco
regional, em 2012.
Há bons motivos para isso? Certamente nenhum superior à
identificação ideológica que o governo brasileiro mantém com Caracas. É graça a
ela, aliás, que o Planalto vem sistematicamente se calando em relação aos
contundentes descasos políticos testemunhados no país nos últimos anos –
buscando ausentar-se de uma discussão inevitável, para fugir do combate a um
governo ideologicamente alinhado.
E é aqui que entra a Argentina na história. Macri prometeu há
poucos dias denunciar Maduro no Mercosul pelo caso de Leopoldo López, ameaçando
pedir a realização de uma reunião dos países do bloco “para exigir que se
aplique a cláusula democrática constante do acordo do Mercosul” e a suspensão
venezuelana.
“Está muito claro, para nós, que Maduro tem de respeitar as
liberdades”, disse.
Maduro, alinhado do kirchnerismo (e lobista da candidatura de
Scioli, derrotado), respondeu à altura, dizendo que Macri realizou uma
“campanha do medo”. Para o presidente venezuelano, o presidente eleito
argentino é como “um demônio”.
O enfrentamento entre duas visões distintas de mundo no continente
inevitavelmente forçará o governo brasileiro a tomar uma postura mais incisiva
em relação ao seu papel no bloco: ou continuará reforçando o discurso de
Maduro, ou abraçará a causa de Macri. Com o primeiro, construirá uma queda de
braço diplomática desnecessária com a segunda maior economia da região,
colhendo os frutos dos fracassos de Caracas e se isolando cada vez mais no
comércio exterior. Com o segundo, terá a chance de remodelar completamente sua
relação com a economia mundial, destravando-se de parceiros ideológicos para se
tornar um player global unicamente interessado em seu próprio desenvolvimento.
A eleição de Macri é um passo importante para garantir alternância
política e uma renovação que poderá tornar os governos sul-americanos mais
moderados e adeptos ao comércio, além de outras medidas que podem gerar um
continente mais rico e próspero.
Agora, resta saber qual caminho Dilma escolherá. Ele poderá ditar
os rumos da região nos próximos anos – e da sua vida, por tabela.
SPOTNIKS
Nenhum comentário:
Postar um comentário