quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Futuro peronista não está em dúvida; o do kirchnerismo, sim

FEDERICO FINCHELSTEIN

Os resultados das eleições argentinas trazem interrogações importantes sobre o futuro do país: a Argentina continuará a ser um exemplo mundial de populismo? Ou, pelo contrário, esse será seu capítulo final?

Nem uma coisa nem outra. A partir destas eleições, o que está em dúvida na Argentina não é o futuro do peronismo populista, amplamente representado em quase todas as forças políticas do governo e da oposição, mas o futuro do kirchnerismo –esse peronismo autodenominado "nacional e popular" e autoidentificado com outros casos latino-americanos, em particular os da Venezuela e do Equador. Em termos concretos, a Argentina está vivendo o final da dinastia dos Kirchner.

A Argentina é o berço do populismo moderno, aquele que, com Juan e Eva Perón, depois de 1945, redefiniu a tradição antidemocrática em termos democráticos.

O peronismo surge de uma ditadura militar em que Perón (1943-1945) era quem mandava. Uma ditadura que Perón destrói ao convocar eleições presidenciais que vence em 1946.

Assim, o coronel argentino cria uma democracia autoritária, que, ao mesmo tempo em que permitiu uma ampliação dos direitos sociais, impôs uma limitação dos direitos políticos aos seus cidadãos.

Depois desse período clássico (1946-1955), o peronismo foi muitas coisas: neofascista, com a Aliança Anticomunista Argentina de Isabel Perón, guerrilheiro, com os montoneros nos anos 70, e, depois, neoliberal com Carlos Menem (1989-1999).

A partir de 2003, surge o kirchnerismo, que reivindica o peronismo original propondo uma mistura de verticalismo, falta de divisão de poderes, lideranças míticas e carismáticas, programas sociais limitados e muitas vezes concebidos em termos clientelistas, sujeição do poder judicial, perseguição aos meios de comunicação críticos e capitalismo de amigos.

Na política internacional, o kirchnerismo questionou, ou não valorizou suficientemente, as relações com os sócios mais próximos da Argentina, particularmente o Brasil. Também se afastou da Europa e dos Estados Unidos, ao propor novas relações estratégicas com a Rússia, a Venezuela e a China.

Algo disso verá seu fim no próximo governo. Os dois candidatos presidenciais –o oficialista peronista Daniel Scioli e o opositor conservador Mauricio Macri– planejam fazer mudanças a esse respeito, e independentemente de quem ganhar é de esperar que melhore substancialmente a relação estratégica que a Argentina deverá ter com o Brasil. E também o vínculo com os EUA e os países da Comunidade Europeia.

ANÁLISE INCORRETA
Muitos analistas interpretaram o resultado como um anúncio do ocaso do peronismo, a peculiar forma populista argentina de fazer e de entender política. Essa análise é incorreta.

Entre o peronismo oficial e seu candidato Scioli, que obteve 36,86% dos votos (ou seja, o movimento kirchnerista que, primeiro com Néstor Kirchner e depois com sua mulher, Cristina, governa a Argentina desde 2003), e o peronismo opositor de Sergio Massa, com 21,34%, o movimento obteve mais da metade dos votos argentinos no primeiro turno.

O próprio partido de Macri (34,33% dos votos) reúne muitos peronistas conservadores descontentes com o kirchnerismo.

Em termos concretos, é difícil falar de fim do peronismo na Argentina. Mas é possível entender a eleição como o fim da hegemonia kirchnerista dentro e fora do peronismo.

É o peronismo dos Kirchner que vai embora sem querer (propondo, por exemplo, menos de uma semana depois das eleições, dois candidatos para a Corte Suprema), mas sua herança pode continuar se Macri ou Scioli vencerem e decidirem reproduzir essa forma caudilhista de entender a política. Essa é a questão principal na Argentina de hoje.

O segundo turno não se apresenta como uma eleição entre populismo e antipopulismo, mas sim como o que fará o candidato eleito em relação à disseminada cultura populista na Argentina.

É uma cultura muito bem representada pelo kirchnerismo, mas não exclusiva dele, nem somente dessa história que acaba.
A virada de página é palpável. É sintomática a melancolia que se começa a perceber no discurso dos seguidores da presidente. Eles se encontram na disjuntiva de continuar a apoiar, para o segundo turno, um candidato que, de forma perceptiva, veem como diferente da sua chefe.

As eleições representam uma rejeição clara à forma autoritária de fazer política em democracia. O princípio unitário do populismo, segundo o qual uma única visão (a de Cristina Kirchner) é a única verdade que representa todos, perdeu sua legitimidade, pelo menos em relação à presidente.

Mas, se Cristina "já era", a questão continuará a ser se a sua cultura política vai continuar no novo governo.

FEDERICO FINCHELSTEIN
Professor e diretor do Departamento de História da New School for Social Research de Nova York (EUA).

Tradução de DENISE MOTA 

Folha de São Paulo



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