FEDERICO
FINCHELSTEIN
Os
resultados das eleições argentinas trazem interrogações importantes sobre o
futuro do país: a Argentina continuará a ser um exemplo mundial de populismo?
Ou, pelo contrário, esse será seu capítulo final?
Nem
uma coisa nem outra. A partir destas eleições, o que está em dúvida na
Argentina não é o futuro do peronismo populista, amplamente representado em
quase todas as forças políticas do governo e da oposição, mas o futuro do
kirchnerismo –esse peronismo autodenominado "nacional e popular" e autoidentificado
com outros casos latino-americanos, em particular os da Venezuela e do Equador.
Em termos concretos, a Argentina está vivendo o final da dinastia dos Kirchner.
A
Argentina é o berço do populismo moderno, aquele que, com Juan e Eva Perón,
depois de 1945, redefiniu a tradição antidemocrática em termos democráticos.
O
peronismo surge de uma ditadura militar em que Perón (1943-1945) era quem
mandava. Uma ditadura que Perón destrói ao convocar eleições presidenciais que
vence em 1946.
Assim,
o coronel argentino cria uma democracia autoritária, que, ao mesmo tempo em que
permitiu uma ampliação dos direitos sociais, impôs uma limitação dos direitos
políticos aos seus cidadãos.
Depois
desse período clássico (1946-1955), o peronismo foi muitas coisas: neofascista,
com a Aliança Anticomunista Argentina de Isabel Perón, guerrilheiro, com os
montoneros nos anos 70, e, depois, neoliberal com Carlos Menem (1989-1999).
A
partir de 2003, surge o kirchnerismo, que reivindica o peronismo original
propondo uma mistura de verticalismo, falta de divisão de poderes, lideranças
míticas e carismáticas, programas sociais limitados e muitas vezes concebidos
em termos clientelistas, sujeição do poder judicial, perseguição aos meios de
comunicação críticos e capitalismo de amigos.
Na
política internacional, o kirchnerismo questionou, ou não valorizou
suficientemente, as relações com os sócios mais próximos da Argentina,
particularmente o Brasil. Também se afastou da Europa e dos Estados Unidos, ao
propor novas relações estratégicas com a Rússia, a Venezuela e a China.
Algo
disso verá seu fim no próximo governo. Os dois candidatos presidenciais –o
oficialista peronista Daniel Scioli e o opositor conservador Mauricio Macri–
planejam fazer mudanças a esse respeito, e independentemente de quem ganhar é
de esperar que melhore substancialmente a relação estratégica que a Argentina
deverá ter com o Brasil. E também o vínculo com os EUA e os países da
Comunidade Europeia.
ANÁLISE
INCORRETA
Muitos analistas interpretaram o resultado
como um anúncio do ocaso do peronismo, a peculiar forma populista argentina de
fazer e de entender política. Essa análise é incorreta.
Entre
o peronismo oficial e seu candidato Scioli, que obteve 36,86% dos votos (ou
seja, o movimento kirchnerista que, primeiro com Néstor Kirchner e depois com
sua mulher, Cristina, governa a Argentina desde 2003), e o peronismo opositor
de Sergio Massa, com 21,34%, o movimento obteve mais da metade dos votos
argentinos no primeiro turno.
O
próprio partido de Macri (34,33% dos votos) reúne muitos peronistas
conservadores descontentes com o kirchnerismo.
Em
termos concretos, é difícil falar de fim do peronismo na Argentina. Mas é
possível entender a eleição como o fim da hegemonia kirchnerista dentro e fora
do peronismo.
É
o peronismo dos Kirchner que vai embora sem querer (propondo, por exemplo,
menos de uma semana depois das eleições, dois candidatos para a Corte Suprema),
mas sua herança pode continuar se Macri ou Scioli vencerem e decidirem
reproduzir essa forma caudilhista de entender a política. Essa é a questão
principal na Argentina de hoje.
O
segundo turno não se apresenta como uma eleição entre populismo e
antipopulismo, mas sim como o que fará o candidato eleito em relação à
disseminada cultura populista na Argentina.
É
uma cultura muito bem representada pelo kirchnerismo, mas não exclusiva dele,
nem somente dessa história que acaba.
A virada de página é palpável. É
sintomática a melancolia que se começa a perceber no discurso dos seguidores da
presidente. Eles se encontram na disjuntiva de continuar a apoiar, para o
segundo turno, um candidato que, de forma perceptiva, veem como diferente da
sua chefe.
As
eleições representam uma rejeição clara à forma autoritária de fazer política
em democracia. O princípio unitário do populismo, segundo o qual uma única
visão (a de Cristina Kirchner) é a única verdade que representa todos, perdeu
sua legitimidade, pelo menos em relação à presidente.
Mas,
se Cristina "já era", a questão continuará a ser se a sua cultura
política vai continuar no novo governo.
FEDERICO FINCHELSTEIN
Professor e diretor do Departamento de História da
New School for Social Research de Nova York (EUA).
Tradução de DENISE MOTA
Folha de São Paulo
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