Nelson Paes Leme
Dois cientistas políticos italianos da virada do
século retrasado para o século passado são leituras importantes para se
compreender o que está sucedendo no Brasil de hoje. São eles Gaetano Mosca e
Vilfredo Pareto, introdutores da chamada “teoria das elites”. Gaetano Mosca, em
seu clássico “Elementi di Scienza Política”, de 1896, estabelece os princípios
elementares do conceito de elite, vindo do arcaísmo à modernidade, passando
pela Antiguidade.
Tal como seu compatriota florentino e renascentista
Niccolò Macchiavelli, Mosca divide a sociedade em governantes e governados. Em
todos esses momentos históricos, fica patente que a elite é o estamento social
que domina a um só tempo o governo (a política) e as forças produtivas, ou
seja, a economia. Já Vilfredo Pareto, sociólogo e economista, contemporâneo de
Mosca, publicou dois trabalhos decisivos para a compreensão do tema, mais ou
menos à mesma época: “Manual de economia política” (1906) e “Tratado de
sociologia geral” (1916). Em ambos, trata da interação entre as diversas
categorias de elites, dando ênfase às elites políticas e econômicas.
Por que esses pensadores italianos são importantes
para o Brasil de hoje? Pelo simples fato de que as elites aqui, historicamente,
engendraram um Estado gigantesco e inadministrável, onipresente e absorvente da
economia e da política a um só tempo, gerando um presidencialismo de cooptação
e favores. E agora veem-se reféns desse aprisionamento desconcertante nas mãos
de uma burocracia partidária incompetente e corrupta que se apropriou desse
Estado patrimonialista e paquidérmico.
A aliança do populismo bolivariano com o
fisiologismo do chamado “baixo clero” legislativo tomou de assalto o Estado
brasileiro em todos os seus segmentos de forma metastática. E a sociedade não
dispõe de meios democráticos imediatos para sustar a sangria hemorrágica das
instituições que se debatem nesse caos.
Nossas elites falharam e hoje fazem uma autocrítica
tardia pelas ruas pintadas de verde e amarelo. Resultado: o Poder Executivo não
governa, o Poder Legislativo não legisla e o Poder Judiciário se atém a um
arcabouço jurídico e processual arcaico, gongórico e lento, gerando a
permanência da impunidade e a reincidência de crimes sucessivos contra o Erário.
A mesma Itália de Machiavelli, Pareto e Mosca, nos lega a Mani Pulite e
o juiz Moro, tentando abrir uma senda nessa silva oscura de
outro italiano ilustre, o magistral Dante Alighieri, em seu ciclo infernal.
Vale a transcrição na íntegra do resumo e
introdução do trabalho acadêmico transcendente do Direito Penal, de autoria do
juiz Sérgio Fernando Moro, para se compreender o que virá ainda por aí: “Traça
breves considerações sobre a operação Mani Pulite, na Itália, uma
das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a corrupção política e
administrativa. Discute as causas que precipitaram a queda do sistema de
corrupção italiano e possibilitaram a referida operação — entre elas os
crescentes custos, aliados a uma conjuntura econômica difícil —, bem como a
estratégia adotada para o seu desenvolvimento. Destaca a relevância da
democracia para a eficácia da ação judicial no combate à corrupção e suas
causas estruturais e observa que se encontram presentes várias condições
institucionais necessárias para a realização de ação semelhante no Brasil, onde
a eficácia do sistema judicial contra os crimes de ‘colarinho branco’,
principalmente o de corrupção, é no mínimo duvidosa.
Tal fato não escapa à percepção popular,
constituindo um dos motivadores das propostas de reforma do Judiciário. A
denominada ‘operação mani pulite’ (mãos limpas) constitui um
momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário. Iniciou-se em
meados de fevereiro de 1992, com a prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo
de diretor de instituição filantrópica de Milão (Pio Alberto Trivulzio). Dois
anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059 pessoas
estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores
locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros. A
ação judiciária revelou que a vida política e administrativa de Milão, e da
própria Itália, estava mergulhada na corrupção, com o pagamento de propina para
concessão de todo contrato público, o que levou à utilização da expressão Tangentopoli ou Bribesville (o
equivalente a 'cidade da propina’) para designar a situação.
A operação Mani Pulite ainda
redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida
política no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC),
foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos
votos, respectivamente. Talvez não se encontre paralelo de ação judiciária com
efeitos tão incisivos na vida institucional de um país.
Por certo, tem ela os seus críticos, especialmente
após dez anos. Dez suspeitos cometeram suicídio. Silvio Berlusconi, magnata da
mídia e um dos investigados, hoje (à época) ocupa (ocupou) o cargo de
primeiro-ministro da Itália.
Não obstante, por seus sucessos e fracassos, e
especialmente pela magnitude de seus efeitos, constitui objeto de estudo
obrigatório para se compreender a corrupção nas democracias contemporâneas e as
possibilidades e limites da ação judiciária em relação a ela” .
Tema para a profunda reflexão das nossas elites.
Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal do Brasil.
Nelson Paes Leme
Cientista Político.
O Globo
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