sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O Fies é uma Fiesta de maganos

Elio Gaspari 

Sérgio Cabral via em Eike Batista “um homem de visão fordiana, stevejobsiana”. Ambos estão na cadeia. Para Cabral, Eike simbolizava o “Brasil de Lula e de Dilma”. Ele encarnava também um aspecto do capitalismo brasileiro. Numa das listas de bilionários (em dólares) da revista “Forbes”, estrelada por Eike até 2011, Pindorama tinha três empresários do setor educacional. Estranha situação, porque entre os 1.694 bilionários americanos, havia só um nesse mercado. O Brasil não tem bons indicadores educacionais, mas tem a maior empresa privada do mundo, a Kroton.

No “Brasil de Lula e de Dilma” o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) foi transformado em girafa pedagógica e financeira. O estudante conseguia o financiamento da Viúva mesmo que tivesse tirado zero na prova de redação. Quando Dilma Rousseff mudou essa maluquice, exigindo um mínimo de 450 pontos na prova do Enem, donos de faculdades privadas protestaram.

A girafa financeira permitiu que as empresas que operam nesse setor transferissem para o caixa do Fies o risco da inadimplência de seus estudantes. Num ano ruim, ele ficava em torno de 25%. Afrouxaram as exigências para os fiadores e aquilo que podia parecer um programa de incentivo aos jovens virou um programa de estatização dos riscos das empresas. Uma delas tornou-se a maior receptora de dinheiro da Viúva, superando até mesmo a Odebrecht.

O repórter Paulo Saldaña informa que numa carteira de 562 mil contratos, a taxa de inadimplência do Fies está em 53%. Um terço dos caloteiros não paga suas prestações há mais de um ano. A explosão era pedra cantada. A taxa de inadimplência do programa que o antecedeu, hospedado na Caixa Econômica, era de 70%. Saldaña estava na equipe que ganhou o Premio Esso de Jornalismo de 2015 com uma reportagem sobre as loucuras do Fies. O analista de investimentos Tiago Ring batizara o sistema de Fiesta.

A Fiesta envolve uma carteira de um milhão de contratos e um ervanário de R$ 55,5 bilhões (o déficit do Rio de Janeiro é de apenas R$ 17 bilhões). O Ministério da Educação diz que não dispõe de estudos ou informações sobre os calotes no Fies, mas oferece boa parolagem: “Medidas mitigadoras dos atuais níveis de inadimplência, como também voltadas à reformulação do Fies ora em estudo, pretendem equacionar a sustentabilidade do programa”. Pura empulhação, eles sabem o tamanho da encrenca e, no escurinho da Esplanada, estão estudando um Fies 2.0.

José Janguiê Diniz, um dos bilionários da Forbes, dono do maior grupo educacional do Norte e Nordeste, defende a lassitude na concessão de financiamentos a estudantes com desempenho abaixo dos 450 pontos do Enem: “A gente acredita que o programa precisa colocar na universidade quem precisa e não pode pagar. E quem não tem nota é exatamente quem mais precisa”. Não faz sentido, quem não tem nota, nota não tem.

O Fies enriqueceu o andar de cima e está desmoralizando o sistema de financiamento público para o andar de baixo.

Paulo Renato Souza, o ministro da Educação de Fernando Henrique Cardoso, toureava os interesses das faculdades privadas com uma ponta de fatalismo: “Há setores que você pode até entregar para as freiras carmelitas descalças, mas na segunda reunião elas chegam com bolsas Vuitton”.

2.Crise no Fies é monumento ao populismo

Editorial

Colocado a serviço de interesses políticos e eleitorais, o crédito educativo passou a ser distribuído a partir de critérios demagógicos, e teve de ser reduzido

A mistura de voluntarismo com demagogia é infalível. Quando aplicada à economia, sempre produz dois efeitos: no início, euforia; depois, crise e ruína. A virtual quebra da Petrobras, em meio ao assalto do petrolão e a delírios estatistas, seguiu este roteiro. Entre bravatas nacionalistas e bilhões investidos na base da “vontade política”, sempre em nome do povo brasileiro, a estatal foi empurrada para o precipício. Não desabou por ter ligação umbilical com o Tesouro.

Há incontáveis exemplos, nos 13 anos da era lulopetista, de desastres plasmados pelo populismo. Um deles, ainda em curso, é o estouro do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), subsidiado pelo governo federal para conceder crédito a alunos de universidades particulares, sem renda para arcar com as mensalidades.

O estudante conseguia o financiamento a juros baixos, o dinheiro ia direto para a universidade, ele tinha carência de um ano e meio depois de concluir a graduação para começar a saldar o empréstimo, num prazo de três vezes o período do curso concluído.

Não se tratava de invenção nacional, mas no Brasil este fundo terminou contaminado pela demagogia e interesses eleitoreiros. Criado ainda na ditadura militar, em 1976, com o nome de Crédito Educativo, foi alterado em 1999, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, e, em 2010, no último ano da gestão Lula. O Fies, em 2010, sofreu mudanças sob medida para ajudar na primeira eleição de Dilma Rousseff.

Juros mais baixos — menos que a taxa básica da época; ou seja, mais subsídios — e prazo maior, permitindo, para a alegria de donos de faculdades, o aumento das mensalidades. Em 2014, outro ano eleitoral, da reeleição de Dilma, a farra foi ampliada, com objetivos também evidentes.

Reeleita a presidente, as contas explodiram, os rombos nas contas públicas escamoteados pela “contabilidade criativa” emergiram e, em 2015, ainda com Dilma Rousseff no Planalto, o aperto começou.

Reportagem da “Folha de S.Paulo” revelou que a inadimplência de 47%, em 2014, chegou no ano seguinte a 53%, no universo de 526,2 mil contratos. Um fundo garantidor criado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2012 cobria a inadimplência no Fies só até 10%. Não investigaram a experiência de outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde este crédito é um problema. Tem-se a impressão de que, como a ordem era tocar para frente o projeto — por “decisão política” —, não importavam os números.

Outra prova de que o Fies era usado preferencialmente para fins político-eleitorais é que, até 2015, não se levava em conta o rendimento escolar do estudante. Podia tirar zero em redação que o financiamento era aprovado. Ficou tão fácil que universidades passaram a transferir para o Fies alunos que pagavam as mensalidades. Para elas era reduzir a o risco.

Só em 2014, o Tesouro teve de transferir RS$ 14 bilhões para o Fies, meio Bolsa Família. Como esperado, transferências para o Fies foram reduzidas, a própria bagunça fiscal jogou a economia no chão, o desemprego ampliou a inadimplência no fundo, e assim reduziu-se a disponibilidade de dinheiro para novos créditos. A história acabou do jeito de sempre: crise e ruínas, devido ao encontro entre populismo e voluntarismo.

O Globo

Nenhum comentário: