terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Duas esquerdas e os desafios do presente

Sergio Fausto
(*)

Haverá ainda a chance de (re)construir no Brasil um campo político social-democrata?

Em meio às crises e incertezas do presente, pode parecer estranho voltar os olhos para o passado aparentemente longínquo. Mas é o que farei aqui, por motivos que espero deixar claros ao final.

Neste mês a Revolução Russa faz cem anos. Ela começa com a deposição do czar Nicolau II, em fevereiro, e desemboca na insurreição bolchevique de outubro de 1917. Vitoriosos, os bolcheviques dissolvem a Assembleia Constituinte recém-eleita, na qual são minoritários, e começam a implantar a “ditadura do proletariado”, que logo revelaria ser a tirania do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética e, finalmente, de seu secretário-geral, Josef Stalin.

Não é preciso idealizar o processo eleitoral que levou à Assembleia Constituinte para concluir que a insurreição bolchevique sepultou as possibilidades democráticas criadas em fevereiro de 1917. Essa é uma história conhecida, que se desdobrou em brutal repressão dos dissidentes; massacres e catástrofes humanitárias; campos de prisioneiros e trabalho forçado, os conhecidos gulags; falsificação histórica e judicial em larga escala, exemplificada pelos “processos de Moscou” – todos eles episódios “edificantes” do período stalinista. A União Soviética terminou melancolicamente em 1991.

Menos conhecida, mas muito mais fértil em sua contribuição à humanidade, é a história de outra esquerda, reformista e democrática, que começa a nascer exatos 20 anos antes da Revolução Russa. Suas origens se encontram na chamada polêmica revisionista, que entre 1896 e 1898 sacudiu o Partido Social-Democrata alemão. Sintomaticamente, poucos na esquerda latino-americana conhecem a obra intelectual e política de Eduard Bernstein, que abriu dissidência contra o dogmatismo doutrinário do maior partido marxista da Europa na virada do século 19 para o século 20.

Em Socialismo Evolucionário, Bernstein faz a defesa política da opção reformista com base na crítica à tese de que tendências intrínsecas ao desenvolvimento capitalista – crescimento e pauperização do proletariado, de um lado, e concentração da propriedade e da riqueza nas mãos da burguesia, de outro – tornariam a destruição do sistema pela revolução não apenas desejável, como inevitável. Esse filho de maquinista de trem, autodidata, expôs com rara coragem intelectual e política o principal calcanhar de Aquiles do marxismo – a sua filosofia da História – valendo-se de dados empíricos disponíveis à época.

A observação da realidade, sem a viseira doutrinária, mostrava não estar ocorrendo nos principais países da Europa nem a pauperização do proletariado, nem a “simplificação” da sociedade em duas classes sociais antagônicas. Não apenas as “leis do desenvolvimento do capitalismo” não se confirmavam na prática, como também o Estado não se cristalizava em “comitê central da burguesia”, frase famosa do Manifesto Comunista. Bernstein anteviu que a ampliação do direito de voto, por pressão social, aumentaria a participação dos partidos social-democratas nos Parlamentos e sua influência nas políticas de governo. Anteviu também que, num ambiente de maior liberdade, a luta sindical dos trabalhadores seria fortalecida. O caminho era o aprofundamento da democracia, não a insurreição proletária.,

Neste ainda início do século 21 a social-democracia está em crise. O mundo em que se tornou força dominante na Europa e dali irradiou sua influência não mais existe. As sociedades tornaram-se muito mais heterogêneas do que mesmo a crítica ao dogmatismo marxista poderia imaginar.

Os Estados nacionais perderam graus de autonomia ante a mobilidade internacional do capital produtivo e financeiro. O financiamento dos Estados de bem-estar se vê ameaçado por mudanças produtivas e demográficas. O nível de sindicalização dos trabalhadores despencou e os partidos social-democratas europeus não conseguem ancorar-se em novas bases sociais.

Como o mundo mudou e não mais voltará a ser o que era, a social-democracia vê-se diante do desafio de dar respostas novas. Mas elas devem ser consistentes com os valores que a distinguem historicamente não apenas da esquerda não democrática, senão que também do liberalismo. A social-democracia e o liberalismo (econômico e político) são responsáveis pelos maiores avanços civilizatórios já realizados. Não são, porém, a mesma coisa. Por ser tributária da tradição de lutas sociais da esquerda, a social-democracia tem uma visão mais realista sobre as relações complexas e por vezes conflituosas entre capitalismo e democracia e um compromisso maior de responder com políticas de governo aos processos de transformação econômica geradores de maior desigualdade e exclusão social. Tem, além disso, maior sensibilidade aos temas da sustentabilidade ambiental. Num mundo onde a desigualdade social aumenta, o desemprego produzido pelo avanço tecnológico se amplia, os riscos ambientais à qualidade de vida e a própria sobrevivência da espécie humana se elevam, a social-democracia tem espaço para voltar a crescer, se conseguir reinventar-se mantendo os elos com os valores de sua própria tradição.

Guardadas as peculiaridades nacionais, a afirmação aplica-se ao Brasil. Aqui, desse ponto de vista, o quadro não é animador. O partido que leva a social-democracia no nome, e a incorporou às políticas de governo na Presidência de Fernando Henrique Cardoso, dela se tem afastado, na ausência de qualquer reflexão programática e por cálculos eleitorais e parlamentares de curto prazo. Já o PT, que sociologicamente, por sua base sindical e popular, poderia ter-se convertido num partido social-democrata, saltou do sectarismo inicial para um pragmatismo sem limites, embalado pelo carisma do seu líder máximo e por ideologias retrógradas, quando não antidemocráticas.

Fica a questão: ainda haverá chance histórica, no Brasil, de (re)construir um campo político social-democrata?

*Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP

O Estado de São Paulo

(*)  Comentário do editor do blog-MBF:  a social-democracia enveredou pela populismo barato: distribuir “mimos” para a massa em troca de votos. No essencial eles não tem coragem de mexer, ou, nem querem.
Tanto a social-democracia como o liberalismo não tem propostas condizentes com a realidade que se nos afronta. Até hoje esses dois sistemas não tem coragem de enfrentar uma República Democrática na acepção do termo.

Enquanto não partirmos para a implementação da democracia, reduzindo a intervenção e mediação das corporações de Estado, sejam elas patronais, laborais ou políticas, continuaremos enganando as massas com este sufrágio universal viciado, onde os candidatos são impostos pelos donos do poder. Ao eleitor só cabe referendar aquele que ele acha menos pior, menos ladrão.

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