Marcia
Bizzotto
A mudança da política externa dos
EUA revela que o país não quer mais pagar o alto preço político e econômico de
continuar sendo uma potência hegemônica mundial
A busca por uma política externa voltada mais para interesses nacionais primários e diretos e menos para manter a posição de "hegemonia" econômica e ideológica mundial "pode sinalizar o começo do período de realinhamento global de maior alcance em mais de um século", afirma um ex-conselheiro diplomático da Casa Branca.
Para William McIlhenny, ex-diretor para América do Norte no Conselho Nacional de Segurança dos EUA durante o primeiro mandato de George W. Bush e atualmente analista sênior do centro de reflexão The German Marshall Fund of the US, essa mudança de foco "é inevitável".
"Nos últimos 70 anos, os EUA deixaram recair sobre si muito do custo e da responsabilidade pelos resultados políticos e de segurança em outros países. Com 4% da população mundial e 16% da economia, não podemos manter isso sem sacrificar nossa própria economia", afirma em entrevista à BBC Brasil.
Ao assumir a Presidência, Donald Trump confirmou sua plataforma de campanha e deixou claro que daria prioridade a interesses imediatos dos EUA em detrimento de acordos multilaterais econômicos e militares.
Como presidente desde 20 de janeiro, ele retirou oficialmente o país do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP) e anunciou planos para renegociar o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês), assinado em 1992 com México e Canadá, argumentando que ambos prejudicam as empresas americanas.
A Casa Branca, segundo ele, passará a dar prioridade a acordos bilaterais, que deverão responder mais adequadamente às expectativas dos EUA.
Trump também causou reações adversas na comunidade internacional ao autorizar a construção de um muro na fronteira com o México, elogiar a decisão do Reino Unido de abandonar a União Europeia e qualificar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de obsoleta, gerando dúvida sobre a permanência dos EUA na aliança militar ocidental.
'Nos últimos 70 anos, os EUA deixaram recair sobre si muito do custo e da responsabilidade pelos resultados políticos e de segurança em outros países', analisa ex-conselheiro da Casa Branca'
Hegemonia mundial
McIlhenny reconhece que o papel de "hegemonia mundial" era "indiscutivelmente um interesse primário, até existencial", dos EUA depois da Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria.
"Mas as realidades de hoje são diferentes. O mundo já é multipolar, econômica e politicamente, ainda que os EUA tenham uma força geopolítica inigualável. Não queremos, e realmente não podemos nos permitir, pagar o alto preço político e econômico de continuar como hegemonia mundial", argumenta.
A intervenção norte-americana no Iraque é uma amostra do "difícil e extremamente elevado custo de tentar afetar resultados políticos e de segurança distantes" no mundo de hoje, afirma o ex-conselheiro.
"A guerra no Iraque se tornou uma poderosa demonstração de um mundo que já está mudando, no qual os EUA foram incapazes de alcançar o resultado que buscavam a um preço aceitável, apesar de sua potência geoestratégica incomparável."
O conflito "dramatizou as limitações até mesmo de uma potência forte e tecnologicamente sofisticada", como os EUA, observa.
Presença seletiva
Para o analista, sob Trump, a defesa da democracia ou dos direitos humanos no palco internacional fica em segundo plano. Em seu lugar, a política externa passará a ser orientada pela defesa de interesses nacionais "primários" e diretos, que envolvem geralmente o comércio.
Ele ressalta que não se trata de uma "retirada" ou de um "declínio" do império americano.
"O resultado inevitável dessa definição mais estreita de interesses primários seria uma mudança no papel dos EUA em um mundo no qual (o país) segue sendo um ator forte, provavelmente o mais forte, e influente. Mas é muito mais seletivo na forma como usa esse poder", acredita.
A força desse poder no cenário internacional dependerá principalmente do resultado que as políticas de Trump terão sobre a economia nacional, afirma McIlhenny.
A influência do país também será afetada por "percepções e sentimentos"
"Desse modo, políticas implementadas desastrosamente, que ofendem sensibilidades internacionais, como o recente decreto antiimigração, ainda poderiam reduzir influência a curto prazo, e os EUA devem prestar atenção a isso", adverte.
Ele se refere ao decreto que suspende por tempo indeterminado o programa de recepção de refugiados sírios e proíbe a entrada nos EUA de cidadãos de sete países de maioria muçulmana. A medida foi suspensa por uma ordem judicial na sexta-feira.
"Se, como alguns temem, a administração Trump se deixar ser corretamente caracterizada como étnico-nacionalista, isso obviamente afetaria de uma maneira importante as percepções externas e internas."
'Para McIlhenny, a aproximação dos EUA com a Rússia depende também de uma mudança nos interesses de Moscou'
Realinhamento global
Nessa mudança de rumo na política externa, a grande questão para Trump é "como os EUA poderão se livrar do peso" da responsabilidade internacional "sem criar um vácuo que cause desestabilização generalizada, e ainda manter uma força adequada para proteger seus interesses em um cenário internacional mais competitivo", coloca McIlhenny.
"Nesse ambiente, obviamente, outros se sentirão mais livres para competir por interesse e influência. Este é um dilema que qualquer futura administração americana teria que enfrentar", assegura o ex-conselheiro.
McIlhenny diz que "é mais difícil que nunca" prever o resultado do realinhamento global, mas acredita que nenhum país assumirá sozinho a posição de potência mundial.
"De um ponto de vista prático, não acho que a China possa assumir o papel (de líder de uma ordem internacional liberal), ou que o mundo aceitaria isso."
Ele não descarta uma aproximação entre EUA e Rússia, mas observa que, para isso, Moscou "também teria que interpretar seus interesses de maneira mais criativa, menos ultratradicional do que o governo parece ser capaz de fazer no momento".
A mudança na ordem mundial "não significa necessariamente a morte das alianças tradicionais, porque muitas delas tendem a ser sustentados por interesses coesivos", matiza McIlhenny.
"Mas todas (as alianças) estarão abertas a revisão e talvez até a uma reconfiguração baseada em novos cálculos de interesses."
'Gestão Trump pode sinalizar "começo do período de realinhamento global", diz analista'
Dilema
McIlhenny afirma que a redução na intervenção externa dos EUA já vinha sendo discutida pelas altas esferas do governo americano há pelo menos uma década, desde quando ele fazia parte da equipe.
Se não foi feito antes é, em parte, devido aos "grandes interesses econômicos e de outro tipo investidos no 'status quo'".
"Isso faz com que, para qualquer presidente fruto do 'establishment', seja difícil resistir. Trump chegou ao poder opondo-se a esse 'establishment'. Ele ainda tem que governar, mas está menos preso a isso que qualquer outro presidente na história moderna", observa.
O analista acredita que a mudança na administração norte-americana "pode sinalizar o começo do período de realinhamento global de maior alcance em mais de um século".
Ele destaca que os efeitos do governo Trump se combinarão com outras "mudanças profundas" que estão ocorrendo em questões fundamentais.
Cita como exemplo a evolução tecnológica, que "está liderando uma completa redefinição da natureza do emprego", e o "desafio" imposto pelo envelhecimento da população.
"Para mim, este é realmente um desses raros momentos definidores da história, quando giramos para uma nova era. Quando se pensa na administração Trump, é importante vê-la como um primeiro passo. Difícil de dizer se para o lado, para frente ou para trás. Mas é, certamente, o impulso em um processo de mudança global mais amplo", afirma McIlhenny.
BBC Brasil - - De Bruxelas
A busca por uma política externa voltada mais para interesses nacionais primários e diretos e menos para manter a posição de "hegemonia" econômica e ideológica mundial "pode sinalizar o começo do período de realinhamento global de maior alcance em mais de um século", afirma um ex-conselheiro diplomático da Casa Branca.
Para William McIlhenny, ex-diretor para América do Norte no Conselho Nacional de Segurança dos EUA durante o primeiro mandato de George W. Bush e atualmente analista sênior do centro de reflexão The German Marshall Fund of the US, essa mudança de foco "é inevitável".
"Nos últimos 70 anos, os EUA deixaram recair sobre si muito do custo e da responsabilidade pelos resultados políticos e de segurança em outros países. Com 4% da população mundial e 16% da economia, não podemos manter isso sem sacrificar nossa própria economia", afirma em entrevista à BBC Brasil.
Ao assumir a Presidência, Donald Trump confirmou sua plataforma de campanha e deixou claro que daria prioridade a interesses imediatos dos EUA em detrimento de acordos multilaterais econômicos e militares.
Como presidente desde 20 de janeiro, ele retirou oficialmente o país do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP) e anunciou planos para renegociar o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês), assinado em 1992 com México e Canadá, argumentando que ambos prejudicam as empresas americanas.
A Casa Branca, segundo ele, passará a dar prioridade a acordos bilaterais, que deverão responder mais adequadamente às expectativas dos EUA.
Trump também causou reações adversas na comunidade internacional ao autorizar a construção de um muro na fronteira com o México, elogiar a decisão do Reino Unido de abandonar a União Europeia e qualificar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de obsoleta, gerando dúvida sobre a permanência dos EUA na aliança militar ocidental.
'Nos últimos 70 anos, os EUA deixaram recair sobre si muito do custo e da responsabilidade pelos resultados políticos e de segurança em outros países', analisa ex-conselheiro da Casa Branca'
Hegemonia mundial
McIlhenny reconhece que o papel de "hegemonia mundial" era "indiscutivelmente um interesse primário, até existencial", dos EUA depois da Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria.
"Mas as realidades de hoje são diferentes. O mundo já é multipolar, econômica e politicamente, ainda que os EUA tenham uma força geopolítica inigualável. Não queremos, e realmente não podemos nos permitir, pagar o alto preço político e econômico de continuar como hegemonia mundial", argumenta.
A intervenção norte-americana no Iraque é uma amostra do "difícil e extremamente elevado custo de tentar afetar resultados políticos e de segurança distantes" no mundo de hoje, afirma o ex-conselheiro.
"A guerra no Iraque se tornou uma poderosa demonstração de um mundo que já está mudando, no qual os EUA foram incapazes de alcançar o resultado que buscavam a um preço aceitável, apesar de sua potência geoestratégica incomparável."
O conflito "dramatizou as limitações até mesmo de uma potência forte e tecnologicamente sofisticada", como os EUA, observa.
Presença seletiva
Para o analista, sob Trump, a defesa da democracia ou dos direitos humanos no palco internacional fica em segundo plano. Em seu lugar, a política externa passará a ser orientada pela defesa de interesses nacionais "primários" e diretos, que envolvem geralmente o comércio.
Ele ressalta que não se trata de uma "retirada" ou de um "declínio" do império americano.
"O resultado inevitável dessa definição mais estreita de interesses primários seria uma mudança no papel dos EUA em um mundo no qual (o país) segue sendo um ator forte, provavelmente o mais forte, e influente. Mas é muito mais seletivo na forma como usa esse poder", acredita.
A força desse poder no cenário internacional dependerá principalmente do resultado que as políticas de Trump terão sobre a economia nacional, afirma McIlhenny.
A influência do país também será afetada por "percepções e sentimentos"
"Desse modo, políticas implementadas desastrosamente, que ofendem sensibilidades internacionais, como o recente decreto antiimigração, ainda poderiam reduzir influência a curto prazo, e os EUA devem prestar atenção a isso", adverte.
Ele se refere ao decreto que suspende por tempo indeterminado o programa de recepção de refugiados sírios e proíbe a entrada nos EUA de cidadãos de sete países de maioria muçulmana. A medida foi suspensa por uma ordem judicial na sexta-feira.
"Se, como alguns temem, a administração Trump se deixar ser corretamente caracterizada como étnico-nacionalista, isso obviamente afetaria de uma maneira importante as percepções externas e internas."
'Para McIlhenny, a aproximação dos EUA com a Rússia depende também de uma mudança nos interesses de Moscou'
Realinhamento global
Nessa mudança de rumo na política externa, a grande questão para Trump é "como os EUA poderão se livrar do peso" da responsabilidade internacional "sem criar um vácuo que cause desestabilização generalizada, e ainda manter uma força adequada para proteger seus interesses em um cenário internacional mais competitivo", coloca McIlhenny.
"Nesse ambiente, obviamente, outros se sentirão mais livres para competir por interesse e influência. Este é um dilema que qualquer futura administração americana teria que enfrentar", assegura o ex-conselheiro.
McIlhenny diz que "é mais difícil que nunca" prever o resultado do realinhamento global, mas acredita que nenhum país assumirá sozinho a posição de potência mundial.
"De um ponto de vista prático, não acho que a China possa assumir o papel (de líder de uma ordem internacional liberal), ou que o mundo aceitaria isso."
Ele não descarta uma aproximação entre EUA e Rússia, mas observa que, para isso, Moscou "também teria que interpretar seus interesses de maneira mais criativa, menos ultratradicional do que o governo parece ser capaz de fazer no momento".
A mudança na ordem mundial "não significa necessariamente a morte das alianças tradicionais, porque muitas delas tendem a ser sustentados por interesses coesivos", matiza McIlhenny.
"Mas todas (as alianças) estarão abertas a revisão e talvez até a uma reconfiguração baseada em novos cálculos de interesses."
'Gestão Trump pode sinalizar "começo do período de realinhamento global", diz analista'
Dilema
McIlhenny afirma que a redução na intervenção externa dos EUA já vinha sendo discutida pelas altas esferas do governo americano há pelo menos uma década, desde quando ele fazia parte da equipe.
Se não foi feito antes é, em parte, devido aos "grandes interesses econômicos e de outro tipo investidos no 'status quo'".
"Isso faz com que, para qualquer presidente fruto do 'establishment', seja difícil resistir. Trump chegou ao poder opondo-se a esse 'establishment'. Ele ainda tem que governar, mas está menos preso a isso que qualquer outro presidente na história moderna", observa.
O analista acredita que a mudança na administração norte-americana "pode sinalizar o começo do período de realinhamento global de maior alcance em mais de um século".
Ele destaca que os efeitos do governo Trump se combinarão com outras "mudanças profundas" que estão ocorrendo em questões fundamentais.
Cita como exemplo a evolução tecnológica, que "está liderando uma completa redefinição da natureza do emprego", e o "desafio" imposto pelo envelhecimento da população.
"Para mim, este é realmente um desses raros momentos definidores da história, quando giramos para uma nova era. Quando se pensa na administração Trump, é importante vê-la como um primeiro passo. Difícil de dizer se para o lado, para frente ou para trás. Mas é, certamente, o impulso em um processo de mudança global mais amplo", afirma McIlhenny.
BBC Brasil - - De Bruxelas
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