Nathan Gardels
Tradição dinástica do comando da
China permitiria aos atuais líderes se preocupar menos com o fantasma soviético
O
sistema de governo da China se mantém há milênios graças à sua resistência. Seu
sucesso baseia-se na autoridade hierárquica de um “imperador” que tem como
obrigação ética servir a “toda a família” da sociedade e na orientação
proporcionada por um “mandarinato” de refinada formação, testado pela
experiência e investido de poder graças a seu mérito.
Nesse
sistema, todas as dinastias deram inicialmente à civilização um novo impulso de
energia e confiança. Com o tempo, no entanto, elas deixaram de cumprir seus
deveres éticos e acabaram sucumbindo à decomposição decorrente da corrupção.
Consequentemente, a dinastia foi derrubada e um novo imperador assumiu o poder.
O
sistema de governo da China de hoje sob o Partido Comunista não constitui uma
mudança total, mas um descendente moderno, organizado, dessa antiga linhagem
política. Responsável por tirar centenas de milhões de pessoas da pobreza
proporcionando uma moderada prosperidade, estabeleceu a mais longa rede
ferroviária de alta velocidade do mundo, que liga as novas e florescentes
megacidades - e se catapultou até o ápice da economia global em apenas três
espantosas décadas.
Apesar
disso, o sistema que conseguiu equilibrar estabilidade e mudança por tanto
tempo sofre hoje desafios que jamais sofreu. Como nas dinastias anteriores, o
imperador luta para preservar a legitimidade em meio a um combate organizado e
persistente à corrupção. Novas tensões típicas do século 21 também são
claramente evidentes no esforço simultâneo da liderança do partido de respaldar
as bolsas de valores de Xangai e Shenzhen mediante uma maciça intervenção do
Estado, sem deixar de reprimir, ao mesmo tempo, uma sociedade civil emergente.
Além de
ordenar às agências corretoras e aos bancos estatais o fim da venda de ativos,
a liderança chinesa endureceu a censura das redes sociais e aprovou a prisão de
numerosos advogados que defendem os direitos civis em todo o país. Até
ativistas favoráveis às reformas estabelecidas pelo partido - a promoção dos
direitos das mulheres ou o combate à corrupção e à poluição - são perseguidos
ou presos.
Contradições. O
Partido Comunista que inaugurou as reformas há dezenas de anos chega, assim, ao
caminho capitalista e a uma sociedade agitada conectada à redes sociais. O
flagelo que acabou com sua capacidade de conter a volatilidade e de manter a
estabilidade pelo controle hierárquico tradicional é a democratização da
informação. As ações na bolsa são valorizadas e negociadas com base em
informações amplamente compartilhadas pelos investidores e não podem ser
simplesmente obrigadas a subir.
Seiscentos
milhões de usuários das redes sociais chinesas Weibo e WeChat, que compartilham
da mesma realidade várias vezes ao dia com os outros, não podem ser
simplesmente informados de que algo evidente a todos não corresponde à verdade.
O dilema
do partido é real. Como “organização abrangente” que toma conta de tudo, ele se
torna o culpado quando algo dá errado. Apesar dos consideráveis méritos de um
sistema de partido único que pode forjar o consenso e a unidade de propósitos
para objetivos benéficos de longo prazo, o presidente Xi Jinping e seus colegas
líderes atuam com base na metáfora errada. O que os guia é aparentemente uma
leitura equivocada das lições do colapso do Partido Comunista Soviético, no
final da década de 80.
A cúpula
do partido na China acredita que o partido soviético morreu por causa da
política de abertura - ou da informação transparente - implementada por Mikhail
Gorbachev, concluindo que a sobrevivência se baseará na construção de um
discurso em que a sociedade seja obrigada a acreditar e no controle do que ela
pode conhecer.
Na realidade,
o partido soviético entrou em colapso exatamente por causa de um esforço
semelhante que consistia em disfarçar a realidade com um discurso forjado que
não se coadunava com os fatos. Quando as mentiras foram apagadas graças à
glasnost, não sobrou nada.
O
partido chinês não podia ser diferente. Na China, o imperador está vestido. Ele
foi benéfico para o seu povo nos últimos 30 anos. Certamente, foram cometidos
erros. Mas a admissão dos erros e sua correção de maneira a impedir que sejam
escamoteados permitiriam estabelecer a legitimidade na era da informação em que
todos conhecem os fatos.
Desafio. É
verdade que a China sempre foi um Estado unitário que nunca experimentou as
batalhas no Ocidente entre autoridade religiosa e secular, graças às quais, do
ponto de vista histórico, foi criado o espaço para uma sociedade civil autônoma
além do poder do Estado. Por essa razão, a filosofia de governo da China nunca
desenvolveu uma separação institucional de poderes.
A
própria Escola de Legalismo da dinastia Qin - que serviria fundamentalmente de
inspiração ao presidente Xi em sua campanha de combate à corrupção - visava a
fortalecer o poder administrativo do Estado unitário. O “governo pela lei” não
significa dar ao indivíduo a possibilidade de corrigir os abusos de poder
mediante o apelo a um judiciário independente, como ocorre num Estado de
direito, mas assegurar que legisladores e cidadãos respeitem as normas
estabelecidas pelo Estado quando ele se enfraquece.
O que é
diferente na China, hoje, em relação aos seus 2 mil anos de civilização
institucional, é a intrusão da era da informação na qual todos têm o mesmo
acesso aos fatos. Assim como a burguesia criou o espaço para a sociedade civil
contra o absolutismo na Europa e assim como as mulheres são hoje as transformadoras
da sociedade civil em comparação à teocracia e ao patriarcado no mundo
islâmico, também os investidores de varejo e os cidadãos da internet são os
transformadores da sociedade civil na China. Essa é uma evolução sem
precedentes para uma civilização tão antiga.
Admitir
a realidade não significa que a China caminhará para o caos organizado e a
corrupção legalizada do financiamento de campanha da democracia
pluripartidária. Em grande parte do Ocidente, particularmente nos Estados
Unidos, partidos que competem entre si acabaram dividindo o corpo político e a
governança paralisada pelo dissenso em detrimento do bem comum. E quando as
autoridades eleitas representam cada vez mais seus financiadores em vez do
eleitorado, votar torna-se uma forma de marginalização disfarçada em
consentimento dos governados.
A China
deveria tomar como modelo Cingapura. Lá, o comportamento dos investidores faz e
desfaz os preços das ações com base em informações transparentes e confiáveis -
e um Judiciário independente impede os abusos de autoridade e neutraliza a
corrupção endêmica.
Quando a
copa abundante da figueira se torna tão densa que impede a passagem da luz para
permitir um maior crescimento no solo, como escreveu um ex-primeiro-ministro de
Cingapura, George Yeo, a árvore precisa ser podada, não arrancada.
Tendo
conquistado a fidelidade ao seu discurso graças a seu desempenho, o Estado babá
de Cingapura ganhou a confiança para iluminar e dar à sociedade civil mais
espaço para respirar. Os líderes da China serviriam melhor à sua causa adotando
a metáfora correta de sua própria esfera de civilização - em vez de ficarem
obcecados com o colapso do ex-partido soviético que tão pouco tem em comum com
o modelo asiático. /
TRADUÇÃO
DE ANNA CAPOVILLA
Nathan
Gardels é editor-chefe do Global Viewpoint e doWorld Post
O Estado de S. Paulo
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