Ivan
Alves Fº
-
Gramsci e o Brasil
A
marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um
partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras progressistas
iniciais e assume posicionamentos conservadores, se não reacionários. Após
quase uma década e meia no poder central, foi o que a prática petista, cada vez
mais autoritária, deu a entender. Nesse sentido, podemos até nos perguntar se o
petismo e alguns aliados seus não podem ser encarados como uma variante do
fascismo, movimento autoritário surgido na Itália no fim da Primeira Guerra
Mundial. Ou será preciso recorrer uma vez mais à boa e velha noção de populismo
latino-americano para entender a trajetória do Partido dos Trabalhadores?
Tendemos a considerar que o bloco capitaneado pelo petismo estivesse pelo menos
a um passo do fascismo, o que não exclui naturalmente que tenha tido entre seus
componentes elementos do populismo.
Com
efeito, chama a atenção o fato de que alguns dos componentes estruturais do
fascismo estão presentes igualmente na cultura petista ou do chamado
lulopetismo. Corporativismo, conluio criminoso com o grande capital,
autoritarismo político, manipulação das massas pelos sentimentos e emoções,
venda de ilusões, recurso à demagogia barata diante das demandas vindas dos
setores populares, instrumentalização dos sindicatos, política de apelo
nacionalista cada vez que uma dificuldade séria se apresenta, aparelhamento do
Estado, linguagem incitando à violência, corrupção desenfreada e tentativas de
estabelecer o chamado diálogo direto com as massas por intermédio de um chefe
carismático — eis em que se assenta o petismo. E só para refrescar a memória, o
grande ideólogo do fascismo, o italiano Benito Mussolini, o Duce, fez parte de
sua carreira política na esquerda.
O
petismo, historicamente, sempre defendeu um ideário autoritário, de exclusão do
outro da política. É a tal postura do “nós contra eles”. Dos puros contra os
impuros. Alguns dos dirigentes petistas mais proeminentes sempre acusaram os
membros dos outros partidos de fazerem o que eles mesmos fizeram depois,
surpreendendo a Nação. Durante várias campanhas eleitorais, petistas acusavam
seus adversários de proporem a privatização da Petrobrás — e promoveram sem
dúvida a pior das privatizações, ou seja, o assalto aos cofres da nossa maior
empresa para atender aos interesses de uma entidade privada, como é o caso de
um partido político. O juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, falou
diretamente na existência de um “grupo criminoso estruturado e sofisticado”
atuando no desvio de dinheiro público.
No
tocante ao aparelhamento do Estado, a performance petista só é comparável, em
termos de Brasil, ao Estado Novo de Vargas e à Ditadura de 64. Basta citar as
dezenas de milhares de nomeações que promoveu país afora. Era uma tentativa de
perpetuação no poder como em outras fases autoritárias da nossa História
recente. E como lembrou com muita razão Cristovam Buarque, defender o Estado
não significa colocá-lo a serviço dos “funcionários das estatais”, numa espécie
de “estatização neoliberal”. Pelo contrário, implica ampliar sua capacidade de
administração e intervenção públicas.
E
o que dizer dos arroubos nacionalistas que volta e meia acometem o petismo?
Toda vez que se confronta com uma dificuldade intransponível, essa corrente
política grita por socorro: isto é, se escora no pré-sal, no golpe imperialista
e por aí vamos, em um bolivarianismo primário (e talvez estejamos aqui
cometendo um pleonasmo).
Sabemos
que as atitudes racionais não estão muito em alta na política hoje. No plano das
tiradas emocionais, o petismo tampouco trai sua dívida para com um certo
autoritarismo. As declarações de alguns de seus dirigentes ao longo do processo
de impeachment foram totalmente movidas a emoção, com insistentes lembranças
por parte da ex-Presidente afastada Dilma Rousseff, por exemplo, da prisão que
sofreu durante o regime militar ou mesmo da doença que teve de encarar,
colocando-a frente a frente com a morte, segundo ela. O que aconteceu com a
ex-Presidente Dilma Rousseff foi duro — mas não é preciso que seja lembrado a
todo instante. Afinal, com todo o respeito, muitas outras pessoas também
passaram — ou ainda passam — por situações duríssimas na vida. O discurso do
ex-Presidente Lula da Silva na sede nacional do Partido dos Trabalhadores, em 25
de setembro de último, um dia após ser denunciado pelo Ministério Público
Federal à Operação Lava Jato, foi na mesma direção emocional daquele da
ex-Presidente Dilma Rousseff.
E
aqui abordamos a questão do carisma pessoal, de que tão bem se vale o ex-Presidente
Lula da Silva, com não menos insistentes referências à sua infância de menino
pobre do Nordeste, de filho do povo. Alguém com a cara do Brasil atingia
finalmente ao mais alto cargo da República, algo que nunca acontecera na
História deste país. Isso foi apresentado a todos nós como se o povo tivesse
finalmente alcançado o poder. O indivíduo era a massa — quase uma versão em
sinal trocado do l´Etat c´est moi do Absolutismo. E a identificação do partido
com o seu chefe passou a ser total, a ponto de podermos falar hoje em
lulopetismo, conforme destacamos acima.
No
decorrer do processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, chegou-se
a justificar o recurso aos créditos suplementares — sem a devida autorização do
Congresso, como determinava a Constituição Federal — em nome da manutenção do
programa Bolsa Família, do auxílio aos pobres. Com um detalhe altamente
significativo: um deputado revelou, com base nos próprios números divulgados
pelo Governo Dilma, que essa verba representava apenas 3% do total dos recursos
arrolados pela administração federal para justificar os tais créditos. O
recurso aos pobres — algo de forte conotação religiosa, elevado aqui quase a um
conceito de corte sociológico —, e não os trabalhadores, como até alguns
petistas salientaram, foram se configurando como o alvo político preferencial
do partido.
Se
fôssemos nos pautar exclusivamente pela política latino-americana, talvez seja
o caso de considerar que o modelo justicialista de Juan Domingo Perón e dos
descamisados argentinos era aquele que mais se aproximava da prática do
petismo. E se quisermos nos apoiar ainda no exemplo argentino, seria muito mais
interessante para a nossa democracia beber na fonte da Unión Democrática,
frente política que fazia oposição a esse mesmo peronismo, reunindo comunistas,
socialistas, os radicais da UCR e os liberais em 1946.
A
coerência em relação às práticas autoritárias tampouco nega fogo quando o
assunto é corporativismo. Sindicalistas muitas vezes comprometidos com o
projeto petista deflagraram greves cujo centro era o ganho salarial imediato
para uma determinada categoria profissional, em detrimento do interesse mais
geral da comunidade ou do conjunto dos trabalhadores. Muitos ainda devem se
lembrar dos grevistas que ameaçaram desligar os aparelhos nas unidades de
tratamento intensivo de alguns hospitais de Pernambuco, gritando slogans
despropositados contra o Governo Arraes. Ou de um chefe sindical ameaçando
invadir — diante da própria ex-Presidente Dilma Rousseff, no próprio Palácio do
Planalto, em primeiro de abril de 2016 — residências e gabinetes de
parlamentares.
Destacaríamos
ainda que a ex-Presidente afastada tentou desqualificar o tempo todo o processo
de impeachment, alegando que tivera 54 milhões de votos. Uma vez mais estamos
diante de um grave equívoco, para dizer o mínimo. Por vários motivos. Primeiro,
a ex-Presidente não obteve esses votos sozinha — Michel Temer compôs a chapa
com ela; e não era nem de longe o candidato das oposições, ao que consta. E
nunca é demais lembrar que o PMDB é o principal partido do país, com grande
penetração mas pequenas e médias cidades, ajudando de forma significativa a
eleger a então candidata do PT. Segundo: os congressistas que a afastaram do
poder também foram eleitos pelo povo — e a ex-Presidente Dilma Rousseff,
sabe-se lá por que motivo, parece ter se esquecido disso. Terceiro: a
representatividade do Congresso é a mesma do Executivo, já que emana igualmente
das normas eleitorais da Democracia brasileira. Quarto: curiosamente, como observou
o jornalista Zuenir Ventura em artigo no jornal O Globo, a ex-Presidente
afastada, que tanto criticou o suposto golpe de Estado promovido contra sua
gestão, se esqueceu de rechaçar o “fatiamento” da votação do impeachment, o
qual a possibilitaria manter seus direitos políticos intactos. Por uma questão
de coerência, deveria recusado o tal “fatiamento”. Quinto: os juízes do
impeachment julgaram apenas as ações que a ex-Presidente realizou no exercício
do seu Governo — e as consideraram criminosas, por sinal. Em nenhum momento
eles questionaram o número de votos que obteve ou sequer a forma como os obteve
— uma atribuição do Tribunal Superior Eleitoral, que ainda vai julgar as contas
da sua campanha de 2014. Somente no Absolutismo e nas ditaduras fascistas ou
populistas é que o “príncipe” não é submetido ao império das leis.
O
lulopetismo também cometeria graves equívocos no que tange a seu relacionamento
com o grande capital financeiro. Segundo o próprio ex-Presidente Lula da Silva,
nunca os bancos ganharam tanto dinheiro como nos seus dois governos (2003-2006
e 2007-2010). Isso, para não aludirmos aos desacertos que promoveram junto aos
bilionários fundos de pensão (nos primeiros dias de setembro, os jornais
divulgaram que o déficit atuarial atingia 46 bilhões de reais nos fundos da
Caixa Econômica, dos Correios, do Banco do Brasil e da própria Petrobrás). E se
formos entrar no terreno igualmente pantanoso do chamado mensalão — ou da
compra de apoio parlamentar para a formação de uma base política dócil aos
interesses do PT, compra essa que condenou à prisão membros destacados do
Governo Lula, no primeiro grande escândalo da sua gestão —, constataremos que
sua política subordinou sistematicamente o interesse coletivo ao privado, o
Estado perdendo parte de sua dimensão pública. Patrimonialismo é isso aí — e em
caráter quase puro. Não por acaso, a Lava Jato prendeu mais de cem pessoas em
dois anos e meio de atuação, condenando mais de meia centena delas. E tudo
indica que vem muito mais por aí até setembro de 2017, novo prazo dado para
suas averiguações. Seguindo os preceitos de Maquiavel, o PT imaginou que os
fins justificavam os meios. Só que os fins se foram e ficaram apenas os meios —
e esses eram em boa medida autoritários e marcados por práticas de corrupção.
Shakespeare chegou a ser cruel quanto aos abusos que se fazem em torno da
ética: “a honestidade é a forma mais refinada de empulhação”.
E
aqui cabe uma observação de corte mais geral: determinadas práticas da política
brasileira até lembram, pelo seu refinamento, o modus operandi de organizações
mafiosas. Ocorre que os agrupamentos que possuem um pé no autoritarismo têm um
inegável viés marginal, uma atração irresistível pelo crime e não é um mero
acaso se tantos delinquentes se sentem atraídos por determinadas ações. Quem
não respeita a lei geral costuma fazer a sua própria lei. A Alemanha do
falecido Adolf Hitler chegou a ser pródiga nessa matéria e muitos chefes do
Partido Nazista vieram do chamado lumpenproletariat. Os marginais não têm
adversários: eles têm inimigos. E inimigo tem de ser liquidado. O confronto é
tudo e o diálogo nada. A lógica da negociação e da conversa, esta sim, é que
emana da prática política propriamente. Fato muito preocupante — e sem dúvida
estimulado pelo clima reinante na política e na sociedade brasileiras — foi a
irrupção, nas eleições municipais de 2016, do crime organizado na cena
política, promovendo atentados que aterrorizaram algumas regiões do país e
custaram a vida a muitos candidatos.
A
lógica do autoritarismo é, portanto, aquela da terra arrasada. E os petistas,
em particular, sempre tiveram dificuldades em entender ou assimilar as
instituições da Democracia. Os fatos não desmentem isso, ao contrário. Quando
da ida das oposições ao Colégio Eleitoral, em 1984, os petistas chegaram a
expulsar de seus quadros os parlamentares que votaram com o oposicionista
Tancredo Neves contra Paulo Maluf, candidato da base do regime ditatorial.
Aparentemente, para uma grande parte ao menos dos petistas, era indiferente o
país continuar ou não vivendo sob uma ditadura militar. Na visão de alguns,
talvez porque o PT tenha sido legalizado por ela, contrariamente ao que
ocorrera com o PCB, o PC do B e o PSB, que tiveram de aguardar a instalação do
regime civil democrático para vislumbrar plenamente a luz do dia. Nesse
sentido, os petistas não poderiam mesmo dar tanto valor assim a algo que
receberam de bandeja do regime militar moribundo.
Seja
como for, o porquê disso é, ainda hoje, motivo de grande controvérsia.
Prosseguindo, convém recordar que a chamada Constituição Cidadã não foi bem
absorvida pelo PT por ocasião da sua promulgação, em 1988, já que o partido se
recusou a participar da sua homologação coletiva. Apesar de ter assinado
formalmente a Carta Constitucional, o PT votou contra o texto, infelizmente. Em
2013, o próprio ex-Presidente Lula da Silva reconheceria que se “o Regimento
(do PT) fosse aprovado, o país seria ingovernável”. Mais: quando Itamar Franco
assumiu a Presidência da República, o petismo simplesmente lançaria a palavra
de ordem “Fora, Itamar”, chegando a pedir seu impeachment assim como o de
Fernando Henrique Cardoso mais adiante. Em 1993, quando do plebiscito sobre a
forma (se regime republicano ou monarquista) e o sistema de Governo (se
presidencialista ou parlamentarista), os petistas se posicionaram contrários ao
parlamentarismo, apesar de ser esse modelo bem mais avançado do que o
presidencialismo.
De
outra parte, já que nos referimos mais acima à Alemanha no conturbado período entre
guerras, nada mais parecido com a situação que o petismo nos legou do que a
triste República de Weimar, que abriria a via ao nacional-socialismo.
Em
outras palavras, o petismo abalou a esquerda brasileira. Concordemos ou não com
suas propostas, os comunistas iam para a cadeia por subversão — conforme diziam
em seu linguajar os defensores das diversas ditaduras que os perseguiram,
daquela de Bernardes ao Estado de Novo de Vargas, do regime de Dutra à ditadura
militar de 64. Infelizmente, altos dirigentes petistas foram encarcerados por
suspeita de corrupção — algo que deixará marcas profundas na História do
Brasil, muito tempo após o desaparecimento de cena do lulopetismo. E pensar que
muitos desses dirigentes repetiram, durante anos, o slogan “ética na política”
até a exaustão. Vai ver que alguns acreditavam mesmo que uma inverdade dita
muitas vezes poderia virar a mais sincera das verdades. Como o fazem agora com
a narrativa do “golpe”.
A
marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um
partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras iniciais e
assume posições conservadoras, senão reacionárias. O problema não consiste
tanto em saber de onde se vem —, mas para onde se vai.
Em
2016, diante da iminência da derrota de seu projeto de governo, uma resolução
da direção do PT publicava um documento onde se podia ler:
Fomos
igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria
impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e
do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares;
promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala
mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de
verbas publicitárias para os monopólios da informação.
Trata-se
inegavelmente de um projeto autoritário, de corte bolivariano. Tão grave quanto
essas tentativas, felizmente abortadas, foi o estrago causado pela corrupção em
quase todos os setores da vida nacional. O historiador francês Marc Bloch, ao
se debruçar sobre as razões pelas quais os franceses não resistiram à invasão
hitlerista, em agosto de 1940, atribuiu o fato à desenfreada corrupção que se
abateu sobre a França nos anos anteriores, abalando a autoestima do seu povo.
Para os franceses daquela época, os políticos eram todos iguais, a
nacionalidade importando pouco... Em tempo: Marc Bloch escreveu seu trabalho
entre sua entrada na Resistência, verificada nesse mesmo ano de 1940, e o seu
fuzilamento pelo ocupante nazista, dois anos mais tarde. Esse seu livro — A
estranha derrota — é muito rico em ensinamentos para todos nós.
A
trajetória do PT dá o que pensar. Muitos jovens acreditaram sinceramente nesse
projeto partidário e alguns se veem hoje desiludidos com a política. Afinal,
como os jornais destacaram, a soma dos votos brancos, nulos e abstenções foi
superior aos votos do candidato que ficou em primeiro lugar em nove capitais.
Mas desanimar, daqui e dali, não significa desistir. E a esperança deve voltar.
É de se lamentar que o PT tenha perdido a oportunidade histórica de mudar o
Brasil. Paciência, ainda não foi dessa vez. Mas sociedade alguma vive sem
esperança e tampouco sem política. Se o Brasil começa a virar a página da
insensatez, podemos notar também que o petismo pode ganhar uma sobrevida por
meio de outros movimentos que se põem a trilhar o mesmo caminho seu do início
dos anos 80. Corre-se, então, o risco de repetir os equívocos do PT em outras
espaços políticos. Uma espécie de petismo sem PT, em suma. Um petismo dessa vez
muito mais universitário, comportamental até, do que sindical.
Não
foi fácil lidar com essas dificuldades durante todos esses anos. Para que uma
outra prática se imponha, é preciso que o campo democrático se mantenha unido
em torno de dois objetivos claros e imediatos, a saber: recuperação da economia
e manutenção das regras constitucionais. Isso vai muito além das esquerdas.
Isto é, superar a gravíssima crise econômica, gerar empregos e aprofundar a
democracia representativa são tarefas fundamentais, nacionais. Tarefas árduas,
sem dúvida, implicando reformas incontornáveis, tamanho o descalabro que grassa
em várias esferas da vida brasileira, da educação à saúde, da segurança ao
sistema de transporte. Antonio Gramsci escreveu certa feita que toda a luta da
Humanidade implicava a criação de instituições cada vez mais democráticas e que
satisfizessem as necessidades de cada um. Esse nos parece ser o caminho. E aqui
cabe realçar o protagonismo dos liberais nas diversas frentes que derrotaram
todos, mas absolutamente todos, os governos autoritários ou populistas entre
nós, do Estado Novo de Vargas à ditadura dos generais e desta ao “Estado Novo
do PT” (esta última expressão foi desenvolvida pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna,
um dos maiores intelectuais brasileiros).
Sabemos
todos da força histórica do populismo — e podemos citar a sua adoção na antiga
Roma, com sua política de panem et circenses satirizada por Juvenal (o que
aliás não impediu as revoltas populares, apesar de tudo, e menos ainda que a
velha capital criasse a prática do voto secreto, há quase dois mil e duzentos
anos...). Mas há razão para algum otimismo. A consolidação da Democracia em
várias partes do mundo, as extraordinárias mutações que se processam no
aparelho produtivo das sociedades e a expansão do conhecimento e das pesquisas
apontam para o fato de que talvez estejamos às portas de um novo Renascimento.
O trabalho por conta própria, o desejo de uma maior autonomia por parte das
pessoas, as alterações nas formas de comportamento delas em seu cotidiano, tudo
indica uma mudança profunda na nossa maneira de ver o mundo, de estar nesse
mundo. Contudo, para que essa mudança se verifique de fato, é preciso também
promover — conforme destacou Maquiavel, ao analisar a situação dominante na
Itália do seu tempo, o estupendo Cinquecento — o encontro da virtù com
a forza, pois até então os fortes não eram virtuosos e os virtuosos não
eram fortes. Ontem como hoje, empoderar a virtude parece ser a única maneira de
fazer triunfar os valores da Civilização — liberdade, igualdade e fraternidade.
Sim,
a experiência histórica e o aprimoramento das ideias ensina e muito. Senão,
vejamos. Jacob Boheme era um sapateiro nascido em 1575, na Alemanha. Era também
um apaixonado pela filosofia e receberia séculos mais tarde elogios de Georg
Hegel. Um filósofo popular, fato raro na Europa do Renascimento. Muito que bem.
Um dia, o nosso sapateiro-filósofo percebeu, no seu ateliê, um magnífico raio
de luz projetado sobre um fundo sombrio de uma chapa de estanho e concluiu que
a luz precisava de obscuridade para resplandecer. Para Jacob Boheme, “uma coisa
se opõe a outra não com a intenção de provocar uma hostilidade, mas para que
tudo se mova e se manifeste”.
O
que queremos dizer com tudo isso, em síntese? Que o Humanismo é uma força
considerável do nosso tempo no plano internacional. E suas bases, como na época
do seu florescimento, na Itália renascentista, estão assentadas em duas
premissas. De um lado, se alicerça na crescente consciência que o indivíduo vai
tomando sobre seu papel na sociedade e, de outro, se alimenta da sensação que
esse mesmo indivíduo tem de que vive em um mundo extraordinário, passível de
ser explorado ad infinitum. Em seu tempo, o filósofo e estadista inglês Francis
Bacon entendeu a importância da técnica para o pleno desenvolvimento da
sociedade burguesa. E de fato a fábrica virou a unidade produtiva por
excelência do modo capitalista. Da mesma forma, o pleno desenvolvimento do
mundo atual pressupõe o recurso às tecnologias de ponta, cujo impacto sobre as
forças produtivas não para de nos assombrar. É que não há democracia nem
desenvolvimento sem o conhecimento.
Hoje,
a luta pelo afastamento do homem do trabalho embrutecedor passa pelo incremento
da robótica. No plano da base material, as condições estão muito mais maduras
para o estabelecimento de uma sociedade sem classes do que em 1917, durante a
Revolução Russa, quando não existia a automação. Só perdemos momentaneamente as
condições políticas, fazendo-se necessário uma adequação entre a esfera
produtiva e aquela da participação coletiva. Provavelmente um novo projeto
político global está nascendo diante de nós, incorporando os nossos anseios de
paz, de busca por um equilíbrio ambiental efetivo e também integrando propostas
que deságuam no fim da exploração dos povos e da opressão de uma pessoa por
outra. O grande desafio é saber exatamente qual a cara política que terá essa
nova realidade alicerçada nas profundas transformações por que passa a base
material da sociedade contemporânea.
Nas
últimas décadas, ditaduras desmoronaram — basta pensar na Grécia, em Portugal,
na Espanha e em grande parte da América Latina — e inúmeras guerras terminaram
— no Vietnã, no Laos, no Camboja, e nas antigas colônias portuguesas da África
e em Timor Leste. Evidentemente, persistem situações terríveis em países como
Venezuela, Síria e Coreia do Norte. E há uma preocupação crescente com as
atitudes aventureiras do líder russo Vladimir Putin. Mas a solidez da
Democracia — materializada recentemente pelo avanço do Partido Democrata nas
eleições presidenciais dos EUA, em detrimento da candidatura desse
inacreditável Donald Trump — permite ainda um certo regozijo.
Tudo
indica que a batalha da sociedade brasileira por mais transparência e exercício
pleno da cidadania deve continuar se expandindo e se manifestando. A proposta
que poderíamos chamar de hobbesiana de submissão do homem ao Estado está se
esgotando rapidamente. A Revolução Burguesa — isto é, aquela que garante que
todos sejam iguais perante a Lei — ganhou as ruas do Brasil em junho de 2013 e
depois como que se completou com o apoio decisivo dessa notável operação Lava
Jato e do próprio Congresso Nacional, ao consagrar o afastamento de Dilma
Dousseff. Além disso, a vitória eleitoral das forças do campo democrático nas
principais cidades do país, no final de 2016, também demonstram que o povo, em
centenas de cidades, não deseja mais ser governado pelo sistema político do
lulopetismo, derrotando as ameaças autoritárias. Sopram ventos democráticos,
apesar de alguns impasses, como no Rio de Janeiro (mesmo assim, os partidos
mais identificados com o campo democrático, que infelizmente se apresentaram
divididos, tiveram mais votos do que os dois primeiros colocados vistos
separadamente).
Democracia
como meio e fim, ampliação da autonomia e dos diretos individuais,
transparência e gestão compartilhada das riquezas, inovações tecnológicas
incidindo sobre o modo de vida aqui e agora, luta pela diminuição do fosso
entre a ciência e a população, oportunidades iguais para todos estão entrando
na ordem do dia entre nós. Já não era sem tempo.
Aprendemos
com Armênio Guedes que o conceito de esquerda não é fixo e que o que era
considerado esquerda lá atrás não o é mais hoje. Na verdade, ampliou-se talvez
o espaço para uma política de novo tipo, ao mesmo tempo em que se verificou um
certo cansaço em torno de posicionamentos demagógicos. As redes sociais hoje
são praticamente um novo poder. Ernst Bloch chegava a falar em “escuridão do
momento vivido”, ao tentar entender uma determinada conjuntura. Realmente, não
é nada fácil. Porém, é inegável que o cerco agora vai se fechando com uma
tripla vitória das forças democráticas: política (impeachment), jurídica (Lava
Jato) e eleitoral (com o grande passo dado nas eleições municipais de 2016,
quando as forças que se juntaram para apoiar o impeachment de Dilma Rousseff
foram as grandes vencedoras). Acabou o tempo das ilusões com propostas que
quase nunca saíram do papel. Adeus, populismo — aos vencedores, a democracia.
Ivan
Alves Filho
Historiador.
Democracia Política
e novo reformismo/Brasil Soberano e Livre
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