Marcelo de Paiva Abreu
Falta consciência coletiva quanto à
ameaça do abismo econômico-financeiro que permita um ajuste eficaz
Um dos
melhores ditos de Samuel Johnson, famoso literato e frasista inglês do século
17, é o de que, quando um homem sabe que vai ser enforcado, seus pensamentos se
concentram esplendidamente. O dito certamente se aplica ao Brasil: a menos de
um ajuste profundo, rumamos para a estagnação crônica, a volta da inflação e a
crise política permanente. Mas, em meio à pior crise da história republicana, o
que se vê com frequência são manifestações de completa subestimação da sua
gravidade, mescladas a tentativas de eximir de culpa os gestores da política
econômica dos governos petistas.
Deixemos
de lado as tentativas de assessores da ex-presidente, corresponsáveis no
desastre, que insistem, em nome de um keynesianismo de meia-tigela, em
denunciar as mazelas da “ortodoxia”, deixando de lado qualquer autocrítica.
Mas há
outras posturas que merecem crítica por capciosas ou desinformadas. Clóvis
Rossi, na Folha de S.Paulo (6/10), citou com entusiasmo a tese de
Frei Betto de que o governo Temer não corresponde à volta da “direita” ao poder
porque, de fato, a “direita” nunca saiu do poder durante os governos de Lula e
Dilma. A evidência seria a permanência de Henrique Meirelles à frente do Banco
Central no governo Lula. É certo que Lula, matreiro, percebeu em 2003 que, para
assegurar condições de governabilidade, teria de repudiar o bestialógico
programático petista e mostrar responsabilidade macroeconômica, pelo menos
temporariamente. Mas quais foram os ministros da Fazenda de Lula e Dilma e o
presidente do Banco Central de Dilma? Eis que, para tentar inocentar o PT da
culpa do desastre, Palocci, Mantega e Tombini foram promovidos a “de direita”.
A racionalização é ridícula.
Uma das
grandes dificuldades que o governo Temer enfrenta é como conciliar um ajuste
fiscal significativo com preocupações distributivas, tratando de evitar que o ônus
do ajuste recaia sobre as camadas de renda mais baixa. Ou, pelo menos, buscando
minimizar tais danos. Celso Rocha Barros, na mesma Folha (26/9),
mencionou o assunto, mas embelezou a história. Segundo o artigo, o Plano
Trienal 1963-1965, de Celso Furtado, deve ser tomado como exemplo, pois
conciliou a proposta de estabilização com políticas de redistribuição. Quem se
der ao trabalho de ler o plano verá que, na essência, é um plano de
estabilização gradualista, baseado em medidas convencionais de contenção de
demanda. Políticas de redistribuição, arroladas em sete páginas finais (das 195
do total), não são mais do que declarações de intenções. Diz bem do patriotismo
de Furtado que estivesse disposto a elaborar, e defender, um plano ortodoxo, ao
arrepio de suas convicções estruturalistas. Se há lição a extrair é que, em
meio à crise, os esforços devem concentrar-se na estabilização.
Há muito
o que ajustar, indo bem além do controle agregado de gastos. É necessário
desmontar os privilégios do Judiciário e dos militares. Um país quebrado não se
pode dar ao luxo de permitir acumulação integral de aposentadorias e salários
na ativa. Os salários iniciais de diversas carreiras do setor público são
grotescamente altos. Quem pode pagar deve pagar, ao menos parcialmente, o custo
da educação universitária e da saúde pública.
O Estado
deve reduzir a sua responsabilidade financeira nos fundos de pensão de estatais
e não pagar as contas geradas por regras abusivas quanto a reajustes e
tratamento de pensionistas. Há muito espaço para o cancelamento de isenções e
regalias fiscais. As lições da Lava Jato devem ser incorporadas ao processo
decisório relativo ao gasto público, incluindo os fundos de pensão. E, é claro,
no devido tempo, poderá ser reduzida a conta de juros pagos pelo governo.
Não há
escassez de diagnósticos sobre como ajustar. O que está faltando é consciência
coletiva quanto à ameaça do abismo econômico-financeiro que permita um ajuste
eficaz.
Marcelo de Paiva Abreu
Doutor
em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento
de Economia da PUC-Rio
Estadão Economia
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