Guilherme Duque
Estrada de Moraes
Quase
todo o mundo culpa os funcionários públicos pelas exigências descabidas, pela
falta de clareza na relação com os usuários e pela morosidade na prestação de
serviços nos órgãos governamentais. Mas a burocracia brasileira tem muitas
fontes e uma das mais importantes é, certamente, o cipoal em que se transformou
o sistema legal do País. O excesso e a complexidade de nossas normas jurídicas,
muitas delas tecnicamente mal elaboradas, estão infernizando a vida do cidadão,
tumultuando o dia-a-dia das empresas e inibindo a ação dos servidores públicos.
Quem
prestar atenção aos números dos decretos expedidos pelo Poder Executivo da
União vai notar que já passamos do número 5.000. Se olhar as leis, verá que
estamos perto de 11 mil. E também há medidas provisórias, decretos-legislativos
e decretos-lei ainda em vigor, sem falar em portarias, resoluções, instruções e
pareceres normativos, além de atos de hierarquia inferior. O número só não é
maior porque no início da década de 90 fez-se uma "limpeza" nos atos
do Poder Executivo Federal, revogando-se mais de 100 mil decretos já
desnecessários. E o que dizer dos Estados e Municípios, que também expedem
leis, decretos e outros atos, às vezes até conflitando com dispositivos
federais? Contam-se em milhares.
Imagine-se
a dificuldade de quem, por dever de ofício, seja obrigado a consultar
freqüentemente a legislação. Dir-se-á que com a internet isto ficou fácil.
Basta recorrer aos sítios especializados, como o do Senado ou o da Presidência
da República e usar uma palavra chave. Pois não é tão simples. É verdade que o
tradicional "Revogam-se as disposições em contrário", que impedia o
bom uso da informática para a consulta à legislação em vigor, já não é usado,
embora ainda seja encontrado nos diplomas legais antigos. Mas a redação confusa
e as referências cruzadas aos dispositivos legais alterados tornam o uso da
informática menos útil do que pode parecer à primeira vista. Muitas vezes é
preciso recorrer a experientes juristas para se descobrir o que está em vigor.
A par de
inviabilizar um dos requisitos essenciais do regime democrático, qual seja o
conhecimento acessível dos direitos e deveres do cidadão, esse cipoal
legislativo causa boa parte de nossa burocracia. Perdido num labirinto de leis
e regulamentos, o funcionário tem medo de decidir, pois não sabe se, involuntariamente,
acabará descumprindo alguma norma em vigor. Por via das dúvidas, prefere
recorrer aos providenciais despachos: "À superior consideração" ou
"Ouça-se a douta Consultoria Jurídica", que congestionam protocolos,
entopem gabinetes e retardam decisões. O usuário do serviço público, por sua
vez, não sabe exatamente o que pedir nem como pedir.
Há anos
tenta-se promover a redução do número de leis e regulamentos a consultar,
mediante um processo de consolidação e com o aprimoramento das técnicas de elaboração
legislativa, de modo que as alterações sejam sempre feitas nos
"nichos" e "prateleiras" correspondentes, ou seja, nos
dispositivos existentes que tratem da mesma matéria. Um primeiro passo foi dado
na década de 80, com a compilação dos dispositivos legais esparsos tratando de
um mesmo tema, preparada por juristas de renome, convidados pelo governo. A
inspiração veio de uma experiência inovadora, feita, anos antes, no campo da
Previdência Social. A edição da Consolidação das Leis da Previdência Social ou
CLPS, como ficou conhecida, facilitou a vida dos funcionários da Previdência e
também dos próprios segurados, pois ficou muito mais fácil saber o que
realmente estava em vigor, numa área da legislação que havia sofrido tantas
mudanças. O único problema é que a CLPS foi aprovada por um decreto do Poder
Executivo e, assim, em caso de dúvida, não podia prevalecer sobre o texto
original, de hierarquia superior.
O tema
continuou em debate, tendo a Constituição de 1988 determinado a expedição de
lei complementar para tratar do assunto. A lei veio a ser expedida dez anos
depois, mas, infelizmente, não vem sendo cumprida. As consolidações
determinadas pela lei ainda não foram feitas e, enquanto isso, novas leis
continuam a ser expedidos sem observar que a alteração da lei deve ser feita
"mediante reprodução integral em novos texto, quando se tratar de
alteração considerável" ou "por meio de substituição, no próprio
texto, do dispositivo alterado".
É hora
de cumprir a lei. Adotadas as normas da Lei Complementar 95/98, estaríamos
facilitando a vida do cidadão, das empresas e dos funcionários públicos. Mais
do que isso, estaríamos agilizando a Justiça e dando decisiva contribuição para
a desburocratização dos serviços públicos.
Guilherme Duque
Estrada de Moraes
Advogado e Vice-Presidente do Instituto Helio Beltrão.
Advogado e Vice-Presidente do Instituto Helio Beltrão.
Artigo
publicado no jornal O Estado de São Paulo de 7.7.04 (pag. 2, 1° caderno).
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