Fernão Lara Mesquita
A democracia teve quatro etapas de desenvolvimento.
Na primeira os
cidadãos aprovavam ou não, diretamente, propostas apresentadas em praça
pública. Tornou-se inviável quando a Grécia passou a ser mais que Atenas. Veio
depois a Republica Romana em que o cidadão elegia quem decidia em seu nome.
Naufragou na corrupção pela ausência de mecanismos de controle dos
representantes pelos representados.
O passo seguinte é a República dos Iluministas que
asila-se na América em 1788. É a primeira e única revolução a substituir o
típico “manifesto” de direitos e objetivos utópicos em
que todas as precedentes terminavam pelo desenho de instituições projetadas
para submeter em vez de servir os próceres da nova ordem, pulverizar em vez de
concentrar o poder dos vencedores, incentivar em vez de impedir o dissenso, e
submeter cada uma dessas inovações ao debate nacional por meio dos “Artigos Federalistas” (“Federalist
Papers”), de modo a “estabelecer o bom governo pela
reflexão e pelo consentimento” e não mais “pelo acaso e pela força”.
Foi escassamente lido por aqui
esse manual de arquitetura institucional que o uso viria a consagrar como a
melhor que a humanidade produziu. A quase democracia brasileira encalhou em
algum ponto bem mais próximo da versão romana que da americana. A Republica,
entre nós, foi quase inteiramente “tocada de ouvido”. Não houve consertação nacional nem esforço abrangente de
reforma institucional. O voto substituiu o “direito divino”
mas o Estado herdou intactos os poderes discricionários do imperador sobre os
súditos. Ao sabor das idiossincrasias dos presidentes tivemos, depois de duas
ditaduras militares, o “acidente”
democrático Prudente de Morais num breve hiato do qual Rui Barbosa teve a
oportunidade fortuita de plantar o marco institucional do capitalismo
brasileiro – única inovação real da Republica – com o resultado fulgurante que
fez de São Paulo o que ele é até hoje. Daí em diante, porém, vimos, entre
ditaduras e quase ditaduras, empilhando leis e decretos para restabelecer
privilégios perdidos e criar novos, variando apenas as clientelas contempladas,
e reduzindo cada vez mais o Brasil “self made” criado
a partir daquela semente à condição de uma guerrilha de resistência.
Da quarta e última etapa de desenvolvimento da
democracia, a que emancipa finalmente o eleitor como soberano absoluto do processo
político, o Brasil ficou totalmente excluído. Mal tem notícia da sua
existência, aliás.
A democracia americana da virada do século 19 para
o 20 andava tão carcomida pela corrupção quanto a brasileira hoje. É nesse
momento que, começando por uma única e solitária cidade, parte para a síntese
entre o sistema representativo e o de democracia direta que inverteria a
hierarquia da relação entre representantes e representados, submeteria o Estado
à cidadania e liberaria as forças vivas da sociedade para mudar para sempre a
velocidade do desenvolvimento.
O “recall”, primeiro
instrumento dessa “virada”, foi importado da
democracia suiça que o adotara meio século antes, e garante a todo e qualquer
eleitor o poder de iniciar, mediante coleta de assinaturas, um processo de
cassação do mandato do representante do seu distrito e a convocação de nova
eleição a qualquer momento e por qualquer motivo, sem perturbar o resto do
país. Com essa arma na mão, todo cidadão passa a ter a prerrogativa de desafiar
qualquer aspecto do modelo institucional ou da ação governamental e obter
obrigatoriamente uma resposta do seu respresentante sob pena de demissão. E
isso altera radicalmente a ordem das prioridades na pauta política da nação.
Com um século de exercício dessa prerrogativa – que
sem nunca ter passado do âmbito estadual bastou para desinfetar todo o sistema
– os americanos, enquanto iam filtrando o joio do trigo, foram-se equipando, de
reforma em reforma, de um ferramental cada vez mais amplo de intervenção direta
no processo político que hoje lhes permite decidir no voto, sem pedir licença a
ninguém, tudo que nós vivemos rezando para os nossos políticos fazerem ou
deixarem de fazer por inspiração do Bom Jesus da Lapa.
Que impostos concordam em pagar; que quantidade de
dívida cada governo pode emitir; qual o salário e as obrigações dos servidores;
quem continua ou não empregado do Estado; qual a pena para cada crime no Código
Penal; leis de inciativa popular que o legislador não pode modificar; poder de
veto a leis aprovadas pelo Legislativo; confirmação ou não do juiz de cada
circunscrição a cada quatro anos; revisões periódicas obrigatórias de
constituições estaduais; escolha de diretores, currículos e professores das
escolas públicas, tudo isso e muito mais é decidido diretamente no voto e entra
ou sai da lista de questões incluídas nas cédulas de cada eleição por
iniciativa de quem vota e não de quem é votado.
Democracia é isso. O resto é tapeação.
Ao fazer da facilitação das correções sucessivas de
rumo o padrão do seu sistema num mundo travado pela burocracia a serviço do
privilegio os Estados Unidos decolaram para o futuro. Essa nossa montanha de
entulho institucional cheirando a idade média não dá mais remendo. O teste da
História comprova que só ha uma maneira de construir um país “user friendly”: é as instituições passarem a ser
definidas passo a passo pelos seus próprios usuários. E assim que isso começa a
acontecer no elo primário da cadeia que é o município, todo o resto do sistema
se vai ajustando pelo novo gabarito.
É um objetivo perfeitamente alcançável mesmo num
sistema tão emperrado quanto o nosso. Apresentar cotidianamente à massa dos
brasileiros o espetáculo da democracia em funcionamento onde ela de fato existe
seria um poderoso acelerador. Mas ainda que a imprensa siga até o fim dos
tempos tomando Brasília pelo Brasil e colocando ambos fora do mundo a rua pode
conquistar sozinha esse direito fundamental à ultima palavra nas decisões que
afetam o seu destino que define a democracia moderna. Tudo que é necessário é
foco e persistência.
VESPEIRO
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