Jorge
Maranhão
Neste
Brasil que vive tempos agitados, dois episódios movimentaram a cena política na
semana passada e deixaram clara a demagogia que grassa em nossa cultura
política. Diria mesmo na subcultura da politicagem. De uma classe de
governantes sem o menor entendimento ou pudor pelo que venha a ser a função de
uma alta cultura para o progresso civilizatório de uma nação. Chafurdada na
lama da corrupção objetiva dos recursos públicos e, o que é pior, na corrupção
mental dos valores da tradição moral ocidental.
Na carta de Michel Temer à presidente Dilma
Rousseff, ele opôs o valor da lealdade com a qual a distinguia no plano das
relações institucionais ao vício da desconfiança com que sempre foi tratado
pela presidente. E se aproxima o momento histórico em que o país terá de
escolher entre os pressupostos da lealdade e da confiança nas relações
políticas e sociais. Se a lealdade é originária da obediência à lei – delex, legalis, legitimus – a confiança ou
fidelidade se originam da fé pública – de fides, fidelis, fidutia, fiator– sem a qual não se
constroem nem relações nem transações, pressupostos essenciais para desenvolvimento
econômico e social. Caminhos que se bifurcam diante de um país que terá de
escolher em breve qual deles trilhar.
Pois
é a lealdade diante de um compromisso assumido que define o grau de confiança
de uma relação social, seja política ou comercial. Lealdade, para além de
respeito à lei, deve ser entendida como honra a contratos, palavra empenhada,
profissão de fé, dignidade, enfim: um dos valores mais básicos da cidadania,
junto mesmo da vida, da propriedade, da liberdade e da justiça. Valores inegociáveis
e que dão estabilidade às instituições da sociedade, condição preliminar do
desenvolvimento econômico, social e político. Ou, civilizatório tão
simplesmente. Pois repito: se aproxima o momento histórico em que o país terá
de escolher entre os valores morais clássicos da tradição humanista, como a
vida, a propriedade, a liberdade e a justiça e suas contrafações ditas
progressistas, como condições de vida, propriedade coletiva, justiça social e
liberdade voluntarista e de identidade. O que revela um viés igualitarista,
onde todos são tomados como iguais, mas nivelados por baixo, e não pela
verdadeira igualdade, onde todos têm as mesmas oportunidades e é o esforço e o
mérito ao longo da vida que vai determinar o grau de sucesso de cada um. A
igualdade como ponto de partida e não como ponto de chegada.
Este
é um problema intrínseco à ideologia esquerdista anacrônica que teremos de
superar muito em breve, como o povo argentino e venezuelano estão a fazer,
seguindo culturas políticas mais avançadas como as do Chile, Peru e Colômbia.
Na medida em que a utopia socialista vence a razão, temos o desprezo por tudo o
que significa esforço individual em detrimento de uma sociedade coletivista
inatingível. Onde temos certeza de que trocamos a liberdade pela igualdade e
acabamos por perder ambas.
Depois
de mais de uma década de governos populistas, a sociedade começa a se rebelar
contra esta apologia da baixa cultura, o renitente recurso à mentira e a
completa degradação de valores, onde à conduta moralmente condenável dos
governantes se tenta justificar como dentro da legalidade. Como se todos
fôssemos tontos e não saibamos discernir entre os dois diferentes atributos da
administração pública: a legalidade e a moralidade.
Muito
em breve teremos de nos definir se queremos governantes disléxicos ou dos que
aprumam seus discursos em sinal de respeito ao se dirigir à nação. Entre os que
ventam e inventam figuras grotescas e os que cultivam provérbios latinos para
despertar a curiosidade de nossos estudantes. Muito em breve nossas elites
terão de escolher entre a senda utópica rousseauneana do bom selvagem e a senda
realista hobesiana do homem como lobo do homem. Entre o inimputável a priori e
o que assume o livre arbítrio de responder por suas escolhas. Num entendimento contrário
a este relativismo moral esquerdista e retrógrado que corrompe os valores
clássicos da moralidade pública e da cidadania. Não é à toa que as liberdades
de expressão, de associação e de ir e vir, a propriedade privada e o
empreendimento individual, estão sempre na mira desses grupos.
É
dentro desse contexto que deve ser lida a carta do vice-presidente, quando
proclama lealdade, até por dever constitucional do cargo que ocupa. O
cumprimento da palavra, e que se reflete numa percepção de que o jogo político
deve ser digno e de alto nível, avisando previamente as armas com que lutará
daqui por diante, uma vez quebrada a confiança entre as partes. O resto é o
mais do mesmo: a argumentação falaciosa de que se trata de golpe um instituto
de impedimento que está inscrito no texto constitucional. Assim como é
desonesta a argumentação de legalidade sobre recursos de campanha de origem
sabidamente imoral e recebidos de empreiteiras corruptoras de estatais
aparelhadas.
No
segundo fato político da semana passada, temos que o governo federal, numa
tentativa canhestra de demonstrar força contra um iminente processo de
impedimento da presidente, arregimentou nada menos do que 30 ditos “juristas”
para a divulgação de um manifesto contra o pedido de impeachment alegando mais
uma vez a toada da falta de fundamento jurídico. Mais uma vez a desfaçatez da
argumentação da legalidade quando o que se está a julgar é a moralidade e o
decoro, num processo de natureza essencialmente política e não jurídica. Resta
saber quem pagou os 30 dinheiros para os 30 causídicos desconhecidos que não
chegam aos pés da trinca autora do pedido, formada pelos notáveis Hélio Bicudo
e Miguel Reale Jr., além da competentíssima Janaína Paschoal. Reale até foi
irônico e afirmou ser um elogio ao seu trabalho a necessidade de tantos para
contestá-lo. “Isso
é tudo firula. São considerações genéricas”, cravou o jurista.
Esses
dois episódios demonstram de forma cabal que não se suporta mais a imensa
mediocridade da cultura política brasileira, desleal e delinquente às
escâncaras. A carta à presidente pode se tornar um marco dessa ruptura com a
baixa politicagem empregada com o dinheiro público e sem risco de demissão para
se defender de processos ao invés de trabalhar pela dignidade da representação
política. E muito em breve teremos de nos definir também sobre até onde chega a
nossa paciência de cidadãos eleitores, pagadores de impostos e expectadores
deste circo de horrores.
“As palavras voam, os escritos
permanecem”,
escreveu Temer em sua carta. Vamos um pouco mais longe, pois nos aproximamos do
momento decisivo e desejamos tempora
mutantur et nos in illis, novos tempos, novos costumes.
A Voz do Cidadão
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