segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A Lealdade

Jorge Maranhão

Neste Brasil que vive tempos agitados, dois episódios movimentaram a cena política na semana passada e deixaram clara a demagogia que grassa em nossa cultura política. Diria mesmo na subcultura da politicagem. De uma classe de governantes sem o menor entendimento ou pudor pelo que venha a ser a função de uma alta cultura para o progresso civilizatório de uma nação. Chafurdada na lama da corrupção objetiva dos recursos públicos e, o que é pior, na corrupção mental dos valores da tradição moral ocidental.

Na carta de Michel Temer à presidente Dilma Rousseff, ele opôs o valor da lealdade com a qual a distinguia no plano das relações institucionais ao vício da desconfiança com que sempre foi tratado pela presidente. E se aproxima o momento histórico em que o país terá de escolher entre os pressupostos da lealdade e da confiança nas relações políticas e sociais. Se a lealdade é originária da obediência à lei – delex, legalis, legitimus – a confiança ou fidelidade se originam da fé pública – de fides, fidelis, fidutia, fiator– sem a qual não se constroem nem relações nem transações, pressupostos essenciais para desenvolvimento econômico e social. Caminhos que se bifurcam diante de um país que terá de escolher em breve qual deles trilhar.

Pois é a lealdade diante de um compromisso assumido que define o grau de confiança de uma relação social, seja política ou comercial. Lealdade, para além de respeito à lei, deve ser entendida como honra a contratos, palavra empenhada, profissão de fé, dignidade, enfim: um dos valores mais básicos da cidadania, junto mesmo da vida, da propriedade, da liberdade e da justiça. Valores inegociáveis e que dão estabilidade às instituições da sociedade, condição preliminar do desenvolvimento econômico, social e político. Ou, civilizatório tão simplesmente. Pois repito: se aproxima o momento histórico em que o país terá de escolher entre os valores morais clássicos da tradição humanista, como a vida, a propriedade, a liberdade e a justiça e suas contrafações ditas progressistas, como condições de vida, propriedade coletiva, justiça social e liberdade voluntarista e de identidade. O que revela um viés igualitarista, onde todos são tomados como iguais, mas nivelados por baixo, e não pela verdadeira igualdade, onde todos têm as mesmas oportunidades e é o esforço e o mérito ao longo da vida que vai determinar o grau de sucesso de cada um. A igualdade como ponto de partida e não como ponto de chegada.

Este é um problema intrínseco à ideologia esquerdista anacrônica que teremos de superar muito em breve, como o povo argentino e venezuelano estão a fazer, seguindo culturas políticas mais avançadas como as do Chile, Peru e Colômbia. Na medida em que a utopia socialista vence a razão, temos o desprezo por tudo o que significa esforço individual em detrimento de uma sociedade coletivista inatingível. Onde temos certeza de que trocamos a liberdade pela igualdade e acabamos por perder ambas.

Depois de mais de uma década de governos populistas, a sociedade começa a se rebelar contra esta apologia da baixa cultura, o renitente recurso à mentira e a completa degradação de valores, onde à conduta moralmente condenável dos governantes se tenta justificar como dentro da legalidade. Como se todos fôssemos tontos e não saibamos discernir entre os dois diferentes atributos da administração pública: a legalidade e a moralidade.

Muito em breve teremos de nos definir se queremos governantes disléxicos ou dos que aprumam seus discursos em sinal de respeito ao se dirigir à nação. Entre os que ventam e inventam figuras grotescas e os que cultivam provérbios latinos para despertar a curiosidade de nossos estudantes. Muito em breve nossas elites terão de escolher entre a senda utópica rousseauneana do bom selvagem e a senda realista hobesiana do homem como lobo do homem. Entre o inimputável a priori e o que assume o livre arbítrio de responder por suas escolhas. Num entendimento contrário a este relativismo moral esquerdista e retrógrado que corrompe os valores clássicos da moralidade pública e da cidadania. Não é à toa que as liberdades de expressão, de associação e de ir e vir, a propriedade privada e o empreendimento individual, estão sempre na mira desses grupos.

É dentro desse contexto que deve ser lida a carta do vice-presidente, quando proclama lealdade, até por dever constitucional do cargo que ocupa. O cumprimento da palavra, e que se reflete numa percepção de que o jogo político deve ser digno e de alto nível, avisando previamente as armas com que lutará daqui por diante, uma vez quebrada a confiança entre as partes. O resto é o mais do mesmo: a argumentação falaciosa de que se trata de golpe um instituto de impedimento que está inscrito no texto constitucional. Assim como é desonesta a argumentação de legalidade sobre recursos de campanha de origem sabidamente imoral e recebidos de empreiteiras corruptoras de estatais
aparelhadas.

No segundo fato político da semana passada, temos que o governo federal, numa tentativa canhestra de demonstrar força contra um iminente processo de impedimento da presidente, arregimentou nada menos do que 30 ditos “juristas” para a divulgação de um manifesto contra o pedido de impeachment alegando mais uma vez a toada da falta de fundamento jurídico. Mais uma vez a desfaçatez da argumentação da legalidade quando o que se está a julgar é a moralidade e o decoro, num processo de natureza essencialmente política e não jurídica. Resta saber quem pagou os 30 dinheiros para os 30 causídicos desconhecidos que não chegam aos pés da trinca autora do pedido, formada pelos notáveis Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr., além da competentíssima Janaína Paschoal. Reale até foi irônico e afirmou ser um elogio ao seu trabalho a necessidade de tantos para contestá-lo. “Isso é tudo firula. São considerações genéricas”, cravou o jurista.

Esses dois episódios demonstram de forma cabal que não se suporta mais a imensa mediocridade da cultura política brasileira, desleal e delinquente às escâncaras. A carta à presidente pode se tornar um marco dessa ruptura com a baixa politicagem empregada com o dinheiro público e sem risco de demissão para se defender de processos ao invés de trabalhar pela dignidade da representação política. E muito em breve teremos de nos definir também sobre até onde chega a nossa paciência de cidadãos eleitores, pagadores de impostos e expectadores deste circo de horrores.

“As palavras voam, os escritos permanecem”, escreveu Temer em sua carta. Vamos um pouco mais longe, pois nos aproximamos do momento decisivo e desejamos tempora mutantur et nos in illis, novos tempos, novos costumes. 

A Voz do Cidadão


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