José Casado
A fila do cartório estancou. No balcão, uma jovem
senhora de cabelos prateados arriscava a serenidade diante do indecifrável.
Para conceder um documento, exigiam-lhe o CPF da mãe.
Ela argumentava: — Mas a minha mãe morreu há trinta
anos e nunca teve um CPF...
— Só com o CPF dela — repetia a cartorária.
Ao perceber que a fila a conduzira à fronteira de
uma dimensão irreal, onde o absurdo é a regra, aventurou-se num quase patético
pedido de ajuda: — Por favor, então me explique: como é que eu tiro o CPF de
alguém que não é mais uma pessoa?
A escrevente mirou-a com firmeza, e retrucou: — Eu
não sei, mas sem o CPF não faço.
Cármen Lúcia Antunes Rocha agradeceu e foi embora
mastigando seus versos prediletos de Carlos Drummond de Andrade: “As leis não
bastam/Os lírios não nascem da lei/ Meu nome é tumulto, e escreve-se na
pedra...”
Três décadas atrás, nas aulas de Direito
Constitucional na PUC de Minas, aprendera que o Estado existe para servir às
pessoas. Hoje, na vice-presidência do Supremo Tribunal Federal, continua
acreditando que o Estado não existe para infernizar a vida dos outros.
A vida real, porém, insiste em discordar. Milhares
de brasileiros atravessaram o feriado prolongado em luta com a Receita Federal
para pagar tributos. O governo juntou uma sopa de siglas (GFIP, FGTS, Caged,
Rais, CAT, PPP, Dirf e TRSD, entre outros) num portal eletrônico, eSocial, que
não funciona. Os prazos se esgotam e a Receita avisa: a multa será automática.
A burocracia permite colher impostos e plantar
funcionários, especialmente num governo à caça de alianças com o baixo clero da
política, para garantir aquilo que chama de governabilidade, traduzível em
novos tributos para alimentar a máquina de 31 ministérios com 49,5 mil áreas
administrativas, que se dividem em 53 mil núcleos devotados, aparentemente, a
azucrinar a vida das pessoas.
A sociedade resiste. Sexta-feira, por exemplo, uma
comissão consultiva do Senado deve anunciar um pacote de iniciativas com o
objetivo de acabar com parte do papelório inútil do Estado que tumultua a vida
nacional.
O primeiro projeto é simbólico da confusão
burocrática brasileira: pretende-se reeditar norma instituída 47 anos atrás, no
interminável ano de 1968, quando as tropas soviéticas esmagaram a Primavera de
Praga e o regime militar brasileiro decidiu invadir a Universidade de Brasília.
Trata-se da extinção do instituto da firma reconhecida.
Outra ação prevista é o fim das licenças conhecidas
como alvarás, herança do absolutismo estatal. O emaranhado desse tipo de
papelório oficial criou situações esdrúxulas como a do Leblon, bairro da Zona
Sul do Rio, onde oficialmente não existem restaurantes. Todos os locais onde há
comida para venda são classificados como “lanchonetes”.
É assim porque uma antiga norma municipal de 49
páginas, com 102 artigos e inúmeros derivativos em resoluções e decretos,
determina que o Leblon só pode abrigar comércio de refeições ligeiras e frias.
É outro desses casos em que a burocracia persiste
na defesa do status quo, muito tempo depois que o quo perdeu o status.
José Casado
Jornalista.
O Globo
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