quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Tumulto

José Casado

A fila do cartório estancou. No balcão, uma jovem senhora de cabelos prateados arriscava a serenidade diante do indecifrável. Para conceder um documento, exigiam-lhe o CPF da mãe.

Ela argumentava: — Mas a minha mãe morreu há trinta anos e nunca teve um CPF...

— Só com o CPF dela — repetia a cartorária.

Ao perceber que a fila a conduzira à fronteira de uma dimensão irreal, onde o absurdo é a regra, aventurou-se num quase patético pedido de ajuda: — Por favor, então me explique: como é que eu tiro o CPF de alguém que não é mais uma pessoa?

A escrevente mirou-a com firmeza, e retrucou: — Eu não sei, mas sem o CPF não faço.

Cármen Lúcia Antunes Rocha agradeceu e foi embora mastigando seus versos prediletos de Carlos Drummond de Andrade: “As leis não bastam/Os lírios não nascem da lei/ Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra...”

Três décadas atrás, nas aulas de Direito Constitucional na PUC de Minas, aprendera que o Estado existe para servir às pessoas. Hoje, na vice-presidência do Supremo Tribunal Federal, continua acreditando que o Estado não existe para infernizar a vida dos outros.

A vida real, porém, insiste em discordar. Milhares de brasileiros atravessaram o feriado prolongado em luta com a Receita Federal para pagar tributos. O governo juntou uma sopa de siglas (GFIP, FGTS, Caged, Rais, CAT, PPP, Dirf e TRSD, entre outros) num portal eletrônico, eSocial, que não funciona. Os prazos se esgotam e a Receita avisa: a multa será automática.

A burocracia permite colher impostos e plantar funcionários, especialmente num governo à caça de alianças com o baixo clero da política, para garantir aquilo que chama de governabilidade, traduzível em novos tributos para alimentar a máquina de 31 ministérios com 49,5 mil áreas administrativas, que se dividem em 53 mil núcleos devotados, aparentemente, a azucrinar a vida das pessoas.

A sociedade resiste. Sexta-feira, por exemplo, uma comissão consultiva do Senado deve anunciar um pacote de iniciativas com o objetivo de acabar com parte do papelório inútil do Estado que tumultua a vida nacional.

O primeiro projeto é simbólico da confusão burocrática brasileira: pretende-se reeditar norma instituída 47 anos atrás, no interminável ano de 1968, quando as tropas soviéticas esmagaram a Primavera de Praga e o regime militar brasileiro decidiu invadir a Universidade de Brasília. Trata-se da extinção do instituto da firma reconhecida.

Outra ação prevista é o fim das licenças conhecidas como alvarás, herança do absolutismo estatal. O emaranhado desse tipo de papelório oficial criou situações esdrúxulas como a do Leblon, bairro da Zona Sul do Rio, onde oficialmente não existem restaurantes. Todos os locais onde há comida para venda são classificados como “lanchonetes”.

É assim porque uma antiga norma municipal de 49 páginas, com 102 artigos e inúmeros derivativos em resoluções e decretos, determina que o Leblon só pode abrigar comércio de refeições ligeiras e frias.

É outro desses casos em que a burocracia persiste na defesa do status quo, muito tempo depois que o quo perdeu o status.


José Casado
Jornalista.

O Globo


Nenhum comentário: