Fernão Lara Mesquita
Dos repetidos rompimentos das barragens de
contenção de rejeitos de mineração “a montante de comunidades”
soterrando populações indefesas aos repetidos rompimentos das barragens de
contenção de gastos públicos criminosos “a montante de economias nacionais”
soterrando vidas inteiras de trabalho duro de uma ou mais gerações de
inocentes; para todos os seus fracassos e para todas as suas catástrofes, seja
qual for a área envolvida, o brasileiro, como um autômato com defeito no software, repete mecanicamente a mesma resposta:
precisamos de mais leis, precisamos de mais regulamentos, precisamos de mais
fiscalização, precisamos de mais verbas (e impostos)…
Precisamos,
enfim, de mais Estado.
Quatro meses antes do
desastre de Mariana o Ibama ordenou o embargo da barragem do Fundão. Ha 14.966
“bombas” semelhantes espalhadas pelo território nacional, segundo a
última contagem que encontrei na imprensa. Dezesseis delas, em 14 municípios de
quatro estados diferentes, já oficialmente catalogadas como “de alto risco”
ameaçando diretamente 540 mil pessoas nas bacias do Amazonas, do Paraguai e do
moribundo São Francisco.
Entre todos os
brasileiros que assistem ou mesmo que protagonizam as longas e circunspectas
discussões televisivas sobre as “soluções” para os problemas crônicos
que o desastre do dia traz eventualmente à tona, não há um único que não saiba
que fiscalização é só mais um bom negócio que se outorga aos amigos do rei no
pais do petrolão; que tudo que os fiscais constatam ou determinam – da imposição de providências preventivas às multas pelas lamas derramadas e
vidas perdidas – pode ser livremente comprado e vendido no mercado ou, no mais
das vezes, não passa de jogo de cena pois, em tudo que diz respeito à grande
mineração, às grandes inundações hidrelétricas, a toda a sujeira que o petróleo
espalha na terra, no mar e no ar, aos futuros acidentes nucleares e a tudo que
é grande o bastante para ser realmente ameaçador neste pais, o fiscal e o
fiscalizado são a mesma pessoa; o mesmo onipresente Estado que insiste-se em
apontar como a solução para os problemas de que ele próprio é a causa.
Quem multa não cobra e quem é multado não paga
porque os dois são a mesma pessoa jurídica, e todo brasileiro, sem uma única
exceção, está careca de saber disso. Mas continuam todos, como se nada
houvesse, comemorando as “multas milionárias” que
nunca serão pagas, os “planos derecuperação ambiental”
que nunca serão executados e os novos e “severos” regulamentos que
– “agora sim” – vão “resolver”
o problema.
A questão é de um óbvio ululante e esta coleção
rigorosamente “holística” de fracassos que o Brasil vem
colhendo é a prova dela: quando o Estado e o Capital são uma só e a mesma
entidade, todos e tudo o mais é só comida pra ser mastigada.
Mas como o mesmo Estado que miserabiliza é quem
atira a migalha que mantém o nariz do miserável um centímetro acima da lama;
como a mesma mineradora que desencadeia o tsunami e depreda o ambiente em volta
até o esgotamento e a esterilidade absoluta transforma-se, por isso mesmo, na
única alternativa de emprego; como o Estado que arrebenta a economia é o
provedor da única ilha — a do funcionalismo — que nunca afunda na inundação,
ninguém, o desafia; ninguém põe o dedo na ferida. A farsa continua porque a
fera é vingativa e ninguém sabe o dia de amanhã…
E assim vamos, de desastre em desastre, em marcha
batida para o desastre final.
A região de Mariana e adjacências
vem sendo selvagemente depredada pela mineração há 300 anos. Foi impossível
mostrar o desastre do dia sem deixar entrever, nas mesmas cenas aéreas, a
paisagem lunar daquela coleção de crateras gigantescas e insanáveis. Nem um
milênio de paz dará jeito naquilo. Os repórteres e os ambientalistas que há três
semanas não saem da ribalta fazem parte dessa geração que se acostumou a pensar
que eucalipto é natureza porque “é verde” e que a
carne a venda nos supermercados não veio de animais que estiveram vivos. Mas
muito pior que o avanço da lama por aquela corrente esquálida daquele esqueleto
de rio é o deserto que se enxerga até onde a vista alcança em ambos os lados do
que foi o legendário Baixo rio Doce, o divisor de fauna entre os biomas da Mata
Atlântica e da Floresta Amazônica, recoberto, até há pouco, pela mãe de todas
as florestas deste paraíso luxuriante da botânica que já foi o continente sul
americano; ohabitat das mil e uma espécies de beija-flores de Augusto
Ruschi, o herói esquecido de um Brasil que amava passarinhos.
O mundo sabe; a História confirma: não há remissão
de nenhuma das nossas crises – a ambiental, a econômica ou a moral – fora da
conquista e da submissão do Estado pela cidadania. Mas não ha nenhum sinal
dessa virada no horizonte.
Os dicionários da internet definem assim a Síndrome de Estocolmo: “Submetida por tempo prolongado a um stress físico e emocional
extremo a mente da vítima inconscientemente fabrica uma estratégia para
proteger sua psique em que qualquer sugestão de alivio por parte do
sequestrador passa a ser supervalorizada a ponto de leva-la a sentir simpatia
ou até mesmo amor pelo seu agressor”.
É uma descrição bastante precisa do presente estado
da relação do povo brasileiro com o Estado que o sequestrou.
VESPEIRO
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