Michael Hudson, entrevistado por Kim
Brown, em The Real News Network | Tradução: Cauê Seignemartin
Ameni
FMI admite não ver saída para a
crise global. Michael Hudson explica: peso dos juros paralisa economias, exaure
sociedades e amplia riscos de retrocessos. Saberemos enfrentar a aristocracia
financeira?
Como era
de esperar, os jornais e TVs da velha mídia nada noticiaram. Em sintonia com o
governo Temer, estavam ocupados em demonizar o tímido gasto social do Estado
brasileiro. Mas em 5 de outubro, um novo relatório
do FMI sobre a
estabilidade financeira global lançou o alerta. Apesar de irrigado, desde 2008,
por seguidas operações de “salvamento”, sempre com dinheiro público, o sistema
financeiro internacional não se recuperou.
Embora a
grande tempestade tenha passado, “os riscos de médio prazo continuam a
crescer”. E — mais intrigante — mesmo no caso de uma recuperação sustentada das
economias (algo que não parece próximo), os problemas não estarão sanados.
Dias
depois de lançado o relatório, o economista norte-americanoMichael Hudson analisou-o,
em entrevista à rede de webTV independente “The
Real News“. Dedicado
há décadas ao exame do sistema financeiro, colaborador de dezenas de
publicações e consultor de governos como os da Grécia, Islândia e China, Hudson
tem uma visão particular sobre o papel das dívidas, nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Segundo ele, o pagamento de juros tornou-se, na época
pós-industrial, um fator crucial de extração de mais-valia e, portanto, de
ampliação das desigualdades.
Hudson
vê no relatório do FMI o reconhecimento de um ponto de impasse.
O
endividamento dos Estados e das famílias tornou-se tão vasto e opressor que
passou a comprometer a própria dinâmica de reprodução do capital.
Tanto os
salários quanto a receita de impostos são permanentemente corroídos pelas
transferências aos banqueiros e à aristocracia financeira. Em consequência, a
capacidade de compra despenca. Os investimentos estancam. A criação de empregos
e ocupações retrocede. Forma-se uma espiral descendente, que bloqueia as
economias.
Pior:
para sair do impasse, a aristocracia financeira procura, permanentemente,
avançar sobre as conquistas cidadãs. Calcula que os Estados devem reduzirem o
gasto social — para tornarem-se capazes de pagar mais juros… Aí está a origem
das políticas de “austeridade”, da devastação do Estado de Bem-estar social na
Europa e, no Brasil, de propostas como a PEC-241, que estabelece o congelamento
das despesas não-financeiras do Estado.
Como
escapar desta maré anticivilizatória? Em tempos anormais, é preciso propor o
incomum. Hudson vê uma alternativa — pouco debatida, mesmo entre a esquerda.
Ele defende políticas que promovam uma redução radical das dívidas e dos
pagamentos à aristocracia financeira. O relatório do FMI jamais proporá algo
com este sentido, zomba o economista. Mas ele mesmo provoca: enquando não houve
coragem e força política para tal passo, permaneceremos sujeitos à estagnação,
a crises e à ameaça de retrocessos.
Fique com a
entrevista (Antonio Martins)
O relatório sobre estabilidade
financeira do FMI diz que, apesar de os bancos serem mais fortes agora do que
na crise econômica de 2007-2008, cerca de 25% do bancos norte-americanos e 30%
dos europeus estão muito fracos até mesmo para se beneficarem de possível
aumento nas taxas de juros — ou de qualquer auxílio para recuperação, caso a
economia global sofra um novo abalo. Mas antes de entrar em qualquer tema mais
específico sobre a saúde dos bancos, pergunto: nestas duas regiões, ainda
estamos em recessão ou começamos a nos recuperar?
Não
estamos nem numa recuperação, nem numa recessão tradicional. As pessoas pensam
nos ciclos econômicos, nos quais há um boom seguido por uma recessão, para que
depois os estabilizadores automáticos reanimem a economia. Mas agora, não há
reanimação possível. A razão é que cada recuperação, desde 1945, estabeleceu um
alto nível de endividamento. Ele está tão alto agora que estamos vivendo, desde
a crise de 2008, o que chamo de deflação por dívida. As pessoas têm de pagar
tanto dinheiro aos bancos que não conseguem manter o suficiente para comprar os
bens e serviços produzidos. Por isso, não há novos investimentos, nem geração
de emprego (exceto empregos com salários-mínimos). Os meracados estão
encolhendo e as famílias estão quebrando. Por isso, muitas empresas não podem
pagar os bancos.
O
produto dos bancos é dívida. Eles tentam dizer aos clientes que “as dívidas são
boas”, mas os clientes não podem endividar-se mais, e não há mais caminhos para
que os bancos continuem seu atual plano de negocios. Na verdade, não há como os
bancos serem pagos por tudo que possuem. É desse ponto que o FMI não passa. Ele
não se atreve a dizer: “Os bancos estão quebrados porque o sistema financeiro
também quebrou; e se isso ocorreu é porque, em seu conjunto, a ideia de tentar
se enriquecer através das dívidas não funciona”.
Era um
modelo falso. Estamos no final do longo ciclo que começou em 1945 e
sobrecarregou as economias com dívidas. Não teremos condições de sair do
labirinto até que estas seja canceladas. Mas é isso que o FMI acredita ser
impensável. Não pode dizer isso, porque espera-se que represente o interesse
dos bancos. Tudo que o pode dizer é que os bancos não farão mais dinheiro,
mesmo que haja recuperação.
Mas na
verdade não há recuperação, e não há sinais disso no horizonte, porque as
pessoa têm de pagar aos bancos. É um ciclo vicioso – ou melhor, uma aspiral
descendente. Basicamente, os economistas do FMI estão entregando os pontos e
admitindo que não sabem o que fazer, dados os limites de seu horizonte.
Você pode nos ajudar a compreender
por que o crescimento foi tão fraco nos últimos seis a oito anos?
Vamos
analisar um orçamento familiar médio, estudando seus números essenciais. As
pessoas pagam entre 40% a 43% de sua renda para habitação. Pagam planos de
saúde, as dívidas do cartão de crédito, outros débitos. Sobram, disponíveis,
apenas 25% a 35% — digamos, um terço do salário — para adquirir bens e
serviços.
O
problema é que quem emprega são justamente empresas que vendem bens e serviços.
Elas simplesmente não estão contratando, porque os consumidores não tem
dinheiro disponível para comprar esses mesmo bens e serviços. Entramos numa
deflação crônica por dívida. Não há recuperação possível sem levar isso em
conta. É este fato que o FMI compreendeu, mas deixa apenas implícito em seu
relatório.
Ao noticiar este relatório, em
manchete, o site MarketWatch afirmou: “Esqueça o [conceito de] ‘grandes demais
para falir’. Os bancos estão fracos demais para sobreviver”. Na época em que
eram gigantes, os bancos quase destruíram o sistema financeiro global. Bancos
menores são melhores?
Pequenos
bancos voltados para empréstimos ao público seriam bons. Mas os bancos, em sua
maioria – o Deutsch Bank, em graves dificuldades, é um caso típico – avaliam
que não são mais capazes de ganhar dinheiro emprestando aos clientes normais.
Partiram para um novo plano de negócios: emprestar dinheiro capitalistas de
cassino. Isso é, emprestar para quem quer especular com derivativos.
Um
derivativo é simplesmente uma aposta de que uma ação, um título de dívida ou
relacionado a um ativo imobiliário irá subir ou cair. Há um vencedor e um
perdedor. É como aposta numa corrida de cavalos. O maior banco envolvido nestas
apostas — ou seja, não em financiar a produção, ou o investimento — era o
Detsche Bank. Grandes aplicadores tomavam emprestado para jogar.
Qual é,
hoje a melhor aposta no mundo? É apostar que as ações do Deutsche Bank irão
cair. Especuladores tomam dinheiro emprestado do seus bancos para fazer apostas
de que as ações do Deutsche Bank despencarão. Agora, ele se contorce e diz:
“Oh, os especuladores estão nos matando”. Mas são o próprio Deutsche Bank e
outros que fornecem dinheiro para os especuladores fazerem apostas.
O relatório do FMI diz que, na zona
do euro, se os governos pudessem ajudar os bancos a se livrar de seus
empréstimos ruins, isso teria um efeito positivo sobre o capital destas
instituições financeiras. Qual seria o efeito sobre a população e a economia
europeia?
A
matemática desta proposta muito simples. Para executá-la, você teria de abolir
as aposentadorias e os gastos sociais — além de aumentar os impostos. Você tem
que obrigar pelo menos 50% da população europeia a emigrar — quem sabe, para a
Rússia ou China… Haveria fome em massa. Muito simples: esse é o preço que
alguns, na zona do euro, pensam que vale a pena pagar — e que se tentou impor à
Grécia. Para salvar os bancos, você teria que converter toda a zona do euro
numa Grécia
Os
governos teriam de vender todo o setor público — inclusive ferrovias e terras
públicas. Estaríamos basicamente introduzindo o neo-feudalismo, voltando o
relógio da história para trás em mil anos e reduzindo a população da
Europa para dívidas escravocratas. É a solução que a zona do euro impôs a Grécia.
E a solução que os líderes e os bancos estão estão peindo para os economistas
responsáveis promoverem à população em geral.
Vamos falar a respeito de outra
informação divulgada pelo FMI sobre a dívida. O endividamento global chegou
recentemente a cerca de 152 trilhões de dólares. Isso inclui dívidas públicas,
familiares e de empresas não financeiras. O que isso significa para o sistema
financeiro global e as sociedades?
Significa
que a única maneira que as pessoas têm de pagar a dívida é cortando seus padrões
de vida drasticamente. Significa concordar em mudar suas aposentadorias atuais
— em que você sabe quanto receberá ao deixar de trabalhar — para “planos de
contribuição definida”. Nestes, você investe o dinheiro e não sabe o que
receberá.
Para
salvar os bancos de perdas que ameaçam varrer seu patrimônio líquido, teríamos
de nos livrar da Seguridade Social. Isso significa basicamente abolir o governo
para entregar o funcionamento do sistema aos bancos, com a ideia de que o papel
dos governos é extrair renda da economia para pagar os acionistas e os bancos.
Quando
se diz “pagar os bancos”, o que eles realmente querem dizer é pagar os
dententores de títulos bancários. São basicamente o 1% mais rico. O que estamos
vendo realmente neste relatório, neste crescimento de dívida, é que o 1% da
população detêm aproximadamente 3/4 de todos os créditos. Significa que há uma
escolha: ou você salva a economia, ou você salva o 1% de perder um único
centavo.
Todos os
governos, de Barack Obama até Angela Merkel, da zona do euro ao FMI,
comprometem-se a salvar os bancos, não a economia. Nenhum preço é muito alto
para tentar fazer o sistema financeiro ir um pouco mais longe. Ao final das
contas, ele não poderá ser salvo, por causa da equação em que está envolvido.
As dívidas crescem sem parar. E quanto mais crescem, mais encolhem a economia.
Quando você encolhe a economia, reduz a capacidade de pagar as dívidas. É uma
ilusão pensar que o sistema pode ser salvo. A questão é: por quanto tempo mais
as pessoas estarão dispostas a viver nesta ilusão?
E por quanto tempo essa ilusão se
sustenta antes de assistirmos a um novo colpaso econômico mundial? É algo
inevitável, a que devemos simplesmente esperar? Devemos nos preparar para isso?
Ainda
estamos sofrendo os efeitos do colapso que começou em 2008. Não há novo
colapso, nem recuperação. Os salários dos 99% caíram, de forma constante, desde
2008. Especialmente para 25% da população que ganham menos — nos Estados
Unidos, negros, latino-americanos e outros trabalhadores. O patrimônio
liquido deles ficou negativo, e eles não têm dinheiro suficiente para para
pagar as contas.
Uma das
maiores consultorias mundiais — a Ernst & Young — acaba de fazer o estudo
sobre os muito jovens. Descobriu que 78% das pessoas que nasceram por volta da
virada do século [e que têm em torno de 18 anos] estão preocupados por
imaginare que não encontrarão empregos que lhes permitam pagar seus empréstimos
estudantis. Além disso, 74% temem não poder pagar tratamento, se ficarem
doentes; 79% temem ficar sem renda suficiente para viver, quando eles se
aposentarem. Toda uma geração que emerge — não apenas nos EUA, mas também na
Europa — que não será capaz de ter empregos assalariados que paguem bem. O
único caminho é ter pais ricos o suficiente para lhes oferecer uma renda.
Seu último livro é Killing the
Host: How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy [“Matando
o hospedeiro: como os parasitas finaneiros e a escravidão por dívidas destroem
a Economia Global”]. Você está terminando outro, certo?
Sim, nas
próximas semanas. Seu título será J is for Junk Economics. Investiga por
que os economistas prometem que em algum momento haverá uma recuperação. Por
que isso é basicamente uma promessa impagável [junk] e por que hoje,
para ser um economista, você tem que participar desse conto de fadas segundo o
qual poderemos nos recuperar e, ao mesmo tempo, conservar a saúde dos bancos.
Quero mostrar por que não funciona.
OUTRA PALAVRAS
Comunicação
Compartilhada e Pós-Capitalismo
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