José Roberto Guzzo
(*)
Aconteceu
numa sessão qualquer de uma dessas comissões da Câmara dos Deputados em que
pouca gente fala, pouca gente escuta e quase ninguém presta atenção, mas nas
quais, de vez em quando, é possível ficar sabendo das coisas mais prodigiosas.
No caso, o deputado Nelson Marchezan Júnior, do Rio Grande do Sul, tomou a
palavra a certa altura dos procedimentos e revelou o seguinte: a Justiça do
Trabalho deu aos trabalhadores brasileiros que recorreram a ela no ano passado
um total de R$ 8 bilhões em benefícios; no decorrer desse mesmo ano, gastou R$
17 bilhões com suas próprias despesas de funcionamento. É isso mesmo que está
escrito aí. A Justiça do Trabalho brasileira custa em um ano, entre salários,
custeio e outros gastos, o dobro do que concede em ganhos de causa à classe
trabalhadora deste país. Pela aritmética elementar, calculou então o deputado,
o melhor seria a Justiça do Trabalho não existir mais, pura e simplesmente. Se
o poder público tirasse a cada ano R$ 8 bilhões do Orçamento e entregasse essa
soma diretamente aos trabalhadores que apresentam queixas na Justiça trabalhista,
todos eles ficariam tão satisfeitos quanto estão hoje, as empresas reduziriam a
zero os seus custos nesse item e o Erário gastaria metade do que está gastando
no momento. Que tal?
Não
existe nada de parecido em país algum deste mundo, ou de qualquer outro mundo.
Como seria possível, numa sociedade racional, consumir duas unidades para
produzir uma — e achar que está tudo bem? O sistema ao qual se dá o nome de
"Justiça do Trabalho" continua sendo uma das mais espetaculares
extravagâncias do Brasil — e mais uma demonstração concreta, entre talvez uma
centena de outras, da facilidade extrema de conviver com o absurdo que existe
na sociedade brasileira. E o que nos faz aceitar resultados exatamente opostos
ao que se deseja — estamos nos tornando especialistas, ao que parece, em agir
de forma a obter o contrário daquilo que pretendemos. Todos querem,
naturalmente, que a Justiça do Trabalho produza justiça para os trabalhadores.
Mas fazem tudo, ou aceitam tudo, para gerar o máximo de injustiça, na vida real,
para esses mesmíssimos trabalhadores. Que justiça existe em gastar R$ 17
bilhões de dinheiro público — que não é "do governo", mas de todos os
brasileiros que pagam imposto — para gerar R$ 8 bilhões? É obvio que alguma
coisa deu monstruosamente errado aí. A intenção era fazer o bem; está sendo
feito o mal em estado puro.
A
Justiça trabalhista é acessível a apenas 40% da população; os outros 60% não
têm contrato de trabalho. Ela não cria um único emprego — ao contrário,
encarece de tal forma o emprego que se tornou hoje a principal causa de
desestímulo para contratar alguém. Não cria salários, nem aumentos, nem
promoções. Apenas tira do público o dobro do que dá. Mas vá alguém querer mexer
nisso, ou propor que se pense em alguma reforma modestíssima — será
imediatamente acusado de querer suprimir "direitos dos
trabalhadores". Hoje a Justiça trabalhista gasta 90% do orçamento com os
salários de seus 3,5 mil juízes, mais os desembargadores de suas 24 regiões,
mais os ministros do seu "Tribunal Superior do Trabalho", mais os
carros com chofer. Em nome do progresso social, porém, fica tudo como
está.
Tudo
isso, claro, é apenas uma parte da desordem que transforma a Justiça brasileira
numa imensa piada fiscal. Com a mesma indiferença, aceita-se que o Supremo Tribunal
Federal, com 11 ministros, tenha 3 mil funcionários cerca de 300, isso mesmo,
para cada ministro. Mas não é suficiente: o brasileiro tem de pagar também R$ 1
bilhão por ano para ser assistido por um "Tribunal da Cidadania", de
utilidade desconhecida — o Superior Tribunal de Justiça, esse já com 33
ministros, quase 5 mil funcionários, incluindo os terceirizados e estagiários,
e capaz de consumir dois terços inteiros do seu orçamento com a folha de
pessoal. Tempos atrás, o historiador Marco Antonio Villa trouxe a público o
deslize para a demência de um órgão público que foi capaz de consumir R$ 25
milhões, num ano, em alimentação para funcionários, pagar de R$ 400 mil a R$
600 mil reais de remuneração mensal a seus ministros aposentados e ter na folha
de pagamento repórteres fotográficos, auxiliares de educação infantil e até
"jauzeiros". O que seria um "jauzeiro"? Vale realmente
tudo, nesse STJ.
Você
pode querer que nenhuma mudança seja feita nisso aí. Também pode achar que esse
sistema, tal como está, é uma conquista social. Só não pode querer que um negócio
desses funcione.
José Roberto
Guzzo
Jornalista
e membro do Conselho Editorial do Grupo Abril.
Revista Consultor
Jurídico, 29 de outubro de 2016, 16h38
Texto
originalmente publicado na revista Veja, edição 2.502, com o título Deu
Errado.
(*)Comentário do editor do blog-MBF: estas duas notícias abaixo são antigas, mas
fiz questão de mostrar:
O problema no Brasil não é simples,
pois os Três Poderes estão podres. Como mudar se nossas elites nos conduzem
sempre à discussão dos efeitos, desviando nosso foco das causas ? O que tem que ser
debatido e mudado é a estrutura do
Estado brasileiro. São problemas estruturais, e não conjunturais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário