sábado, 17 de junho de 2017

Crise bancária na China ?

Luiz Carlos Bresser-Pereira e Lucas José Dib

Em 24 de maio e pela primeira vez desde 1989, a Moody's rebaixou a nota de crédito da China, de Aa3 para A1, e alterou sua perspectiva de negativa para estável. A S&P deve seguir na mesma direção. O relatório aponta o que analistas já debatem ao menos desde 2013: o descompasso recente entre a velocidade do crescimento do estoque da dívida via expansão monetária e a diminuição de resultado que essa política tem apresentado sobre o crescimento do PIB, ainda alto, mas declinante.

Em dezembro de 1998, a Moody's rebaixou a nota de três (ICBC, CCB, ABC) dos quatro maiores bancos comerciais da China, de Baa1 para Baa2. Entre os motivos estava o contínuo aumento do risco sistêmico bancário, que à época era todo estatal, e tinha como grandes devedores as empresas públicas. O total de non-performing loans (NPL) sobre o volume total de empréstimos dos grandes bancos comerciais era de impressionantes 33,05%. 10 anos antes esse percentual era 10,52%, e em 1984, 0,04%. A situação em 1998 era grave, e se houvesse o acionamento dos "triggers" de crise bancária e financeira, tudo recairia na garantia implícita do próprio Partido/Estado, podendo desencadear uma crise fiscal e afetar a rota de alto crescimento iniciada nos anos 1980. Para evitar a crise, as autoridades encetaram uma reestruturação no sistema bancário e no balanço dos quatro principais bancos, os Big Four. Foi um processo complexo tendo como referência - mas sempre se levando em conta as particularidades do sistema chinês - a experiência de "limpeza" de balanços dos Estados Unidos instituída por meio da Resolution Trust Corporation (RTC), decorrente da crise de poupança e de empréstimos nos anos 1980: emissão de títulos; adequação de capital; refinamento de gestão e capacitação de pessoal; injeção de recursos das reservas cambiais; criação de bad banks ou Asset  Management Companies (AMC's) responsáveis por comprar, estruturar e vender NPLs via debt-for-equity swaps; securitização de dívida; lançamento na bolsa dos grandes bancos; reestruturação das empresas estatais, "retendo as grandes (estratégicas), e soltando (fusões, privatizações) as pequenas"; criação de uma gestora estratégica das estatais reestruturação das empresas estatais, "retendo as grandes (estratégicas), e soltando (fusões, privatizações) as pequenas"; criação de uma gestora estratégica das estatais reestruturadas, para citar algumas das iniciativas.

A China reduziu seu índice de NPL para 1,75% em 2016, segundo dados oficiais, divulgados também pelo Banco Mundial. A provisão para créditos de liquidação duvidosa aumentou muito. Ancorada em preços macroeconômicos certos e em um sistema bancário e financeiro modulado para promover crescimento econômico, a China estruturou o maior aparato de investimento produtivo do planeta, e financiou a criação de uma "máquina" que gera mais de US$ 2,3 trilhões por ano de receita de exportação (grande parte em bens altamente sofisticados tecnologicamente), capaz de prover mais de US$ 1 trilhão por ano de superávit na balança comercial.

Suas reservas, decorrentes desse saldo e não de emissão de dívida, aumentaram mais de 19 vezes, desde o rebaixamento da Moody's de 1998. Segundo o ARA Metric do FMI, a China tem estoque de reservas suficiente para cobrir muitos meses de obrigações externas e importação de bens e serviços, além de evitar ataques especulativos. O novo sistema bancário conta com quatro dos cinco maiores bancos do mundo em ativos, incluso a primeira posição e seus bancos comerciais são tão ou mais lucrativos do que seus pares europeus e norte-americanos.

A baixa da nota de crédito no último dia 24 reflete uma crença generalizada entre os analistas ocidentais. A partir de 2009, após a crise financeira norte-americana, a velocidade média de crescimento do crédito na China é de 20% ao ano, bastante superior ao crescimento nominal do PIB. Com isso, ocorre um gap na relação crédito/PIB, e quanto mais acentuado esse gap, maior seria a chance de desaceleração econômica ou crise. O principal vetor desse aumento na criação de crédito não são mais as empresas públicas como nos anos 1990, ou o endividamento das famílias chinesas, mas sim o setor privado não financeiro.

Além do aumento do ratio entre passivos/lucros do setor corporativo, tem decrescido sua capacidade para o pagamento de juros, mensurada pelo interest coverage ratio (EBIT/juros). Devido a esse quadro, alguns economistas do FMI, a partir de estimativas próprias, acreditam que o percentual real do total de NPL na China poderia ser mais alto, contaminado por uma situação onde até 15% do total dos créditos empresariais poderiam ser potencialmente de risco. Mas, dado a ampla provisão para créditos de liquidação duvidosa, uma ação articulada entre o BC chinês, o Tesouro, e as Asset Management Companies, além de rígido controle de capitais, não está claro que as autoridades chinesas não conseguirão mitigar os riscos e evitar que o total de NPL aumente descontroladamente. Além disso, os bancos chineses continuam majoritariamente públicos e são garantidos pelo Estado. Nossa hipótese é que desde que a China gere excedente fiscal e mantenha a relação dívida pública/PIB sob controle, terá os fundamentos necessários para evitar crise bancária e financeira.

Caso as políticas e estruturas criadas para diluição, absorção e mitigação das crises não sejam suficientes para contê-las, as autoridades possuem condições de agir forte e rapidamente para cumprir a garantia de emprestador de última instância, e manter a economia ativa, mesmo que, durante algum tempo, em "marcha forçada".

Enquanto muitos compram posições contra a China, o premier Li Keqiang insta os bancos a reestruturarem passivos e afirma que as soluções serão encaminhadas e o PIB, sustentado; o presidente Xi Jinping lança o maior projeto de infraestrutura do mundo (One Belt, One Road), algo que pode chegar a US$ 1 trilhão; revigora o programa Go Out Policy, que a apoia aquisições de multinacionais e investimentos por todo o mundo; e lançou o Made in China 2025, que promete levar a China a uma nova etapa de inovação e produtividade. É a geoeconomia e a busca da influência, ao mesmo tempo em que lida com problemas de ordem interna, buscando manter sob controle a maior restrição do regime: a necessidade de crescimento econômico.

Valor Econômico
16/06/2017

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