José
Casado, Danielle Nogueira, Ramona Ordoñez e Bruno Rosa
De segunda a sexta, é tudo
sempre igual. Sai de casa cedo, no Jardim América, Zona Norte, viaja uma hora
até o Centro do Rio e passa o dia à espera de um serviço de despachante no
entorno da sede da Petrobras, onde trabalhou um terço da vida. Deixou a estatal,
em 1993, levando um plano de previdência anunciado na empresa como a garantia
de um “futuro mais tranquilo”.
Aos 71 anos, Livaldo Pereira de Souza é um aposentado preocupado com o seu futuro e o de outras 150 mil pessoas que, como ele, apostaram no fundo de previdência da Petrobras:
— Não é possível que a Petros possa estar em situação difícil — hesita. — Quando mais vou precisar, ela não poderá pagar minha pensão? Como um fundo como a Petros, que tinha um dos maiores patrimônios depois da Previ (Banco do Brasil), pode estar em situação difícil? Isso só pode ser má gestão dos dirigentes, que sempre foram nomeados por indicação do governo federal.
Aflição similar há um ano consome o cotidiano em Brasília de Maria do Socorro Ramalho, de 56 anos. Ex-funcionária da Caixa Econômica Federal, ela começou a ouvir rumores sobre uma crise no fundo de previdência Funcef. O boato virou realidade numa segunda-feira, 13 de abril, quando ouviu o presidente da Funcef Carlos Alberto Caser confirmar o déficit:
— Foi chocante, porque eles viviam falando que estava tudo bem.
Maika, como prefere ser chamada, soube de uma mobilização dos sócios do fundo dos Correios. Aposentados da Funcef e do Postalis foram ao Congresso pedir ajuda para obter informações sobre a situação das contas. Ela descobriu que a situação no Postalis é bem pior que na Funcef.
Em quatro meses de ativismo, ela percebeu também como é a elevada sensibilidade do Legislativo às pressões do funcionalismo: a Câmara abriu uma CPI dos Fundos de Pensão e o Senado já tem outra na fila.
Sobram motivos. Um deles é o tamanho do déficit na Petros (da Petrobras), Funcef (Caixa) e Postalis (Correios): R$ 29,6 bilhões, pela última medição governamental, em agosto do ano passado.
Outra razão é a velocidade em que o rombo aumenta: média de R$ 3,7 bilhões ao mês, até agosto. Nesse ritmo, os balanços de 2015 de Petros, Funcef e Postalis, cuja divulgação está prevista para abril, devem fechar com perdas de R$ 44,4 bilhões — um valor sete vezes maior que as perdas reconhecidas pela Petrobras com corrupção.
O pagamento dessa fatura será dividido ao meio entre associados de Petros, Funcef e Postalis e as estatais patrocinadoras — ou seja, pela sociedade, porque as empresas são controladas pelo Tesouro Nacional. No Ministério da Previdência e na CPI, considera-se provável que os 500 mil sócios dos três fundos atravessem as próximas duas décadas com reduções nos rendimentos. De até 26% no caso do Postalis.
— Roubaram meu dinheiro — desabafa Jackson Mendes, aposentado com 42 anos de trabalho nos Correios.
Professor de Matemática, Mendes integra o grupo que levou a Câmara a instalar a CPI. Ele se diz convicto:
— Fizeram investimentos mal explicados e o dinheiro virou pó.
A maioria dos responsáveis pelos déficits das fundações públicas tem em comum a origem no ativismo sindical. Nos últimos 12 anos, os principais gestores dos fundos de Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Correios saíram das fileiras do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
É uma característica dos governos Lula e Dilma, e as razões têm mais a ver com perspectivas de poder e negócios do que com ideologias.
Os sindicalistas-gestores agem como força-tarefa alinhada ao governo. Compõem uma casta emergente na burocracia do PT. Agregam interesses pela capacidade de influir no acesso de grandes empresas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), fonte principal de recursos subsidiados do BNDES. Onde não têm hegemonia, por efeito do loteamento administrativo, convivem em tensão permanente com indicados pelo PMDB e outros partidos, caso do Postalis.
O uso dos fundos de pensão estatais como instrumento de governo é um traço peculiar do modo de organização política brasileira. Moldadas no regime militar, as 89 fundações públicas existentes dispõem de uma reserva de investimentos (R$ 450 bilhões no ano passado) que seduz governantes: permite-lhes vislumbrar a possibilidade de induzir iniciativas econômicas, por meio da participação dos fundos na estrutura de propriedade das empresas envolvidas. Petros, Previ, Funcef e Postalis, por exemplo, concentram dois terços do patrimônio dos fundos públicos.
Essas entidades paraestatais cresceram nas privatizações iniciadas por Fernando Collor e Itamar Franco. Com Fernando Henrique Cardoso, passaram ao centro das mudanças na mineração (Vale) e nas comunicações (Telefônicas).
Quando chegou ao Planalto, em 2003, Lula estava decidido a ampliar esse canal de influência sobre o setor privado, pela via da multiplicação da presença dos fundos de pensão estatais e do BNDES no quadro societário das empresas.
Havia um projeto, desenhado desde os primórdios do PT e da Central Única dos Trabalhadores, por iniciativa de Luiz Gushiken, então presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
Tipo incomum, ascendera à liderança sindical convocando greves a bordo de terno e gravata. Trocou a militância no comunismo trotskista pela composição com Lula, líder dos metalúrgicos, a partir de uma conversa de botequim. Ajudou a escrever o primeiro estatuto, presidiu o PT, elegeu-se deputado federal três vezes e se tornou um dos mais influentes assessores de Lula.
Foram os negócios nada ortodoxos entre fundos estatais e empresas privadas durante o governo Collor, em 1991, que levaram Gushiken e dois diretores do sindicato paulistano, Ricardo Berzoini e Sérgio Rosa, a abrir o debate dentro do PT sobre o potencial político dos fundos de pensão — até então percebidos como meros instrumentos governamentais de cooptação de sindicalistas.
No ano seguinte, a cúpula político-sindical do PT elegeu bancários para diretorias da Previ e da Funcef, derrotando a velha guarda da Confederação dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito.
O grupo avançou com a eleição de Berzoini à presidência do sindicato paulistano, com Sérgio Rosa e João Vaccari Neto na diretoria. Meses depois, esse trio teve a ideia de entrar no ramo imobiliário com apoio financeiro dos fundos de previdência: nascia a Bancoop, cooperativa habitacional, hoje alvo de múltiplos processos por suposto desvio de dinheiro para campanhas do PT e calote em mais de dois mil clientes.
Gushiken decidiu não disputar o quarto mandato de deputado federal pelo PT, em 1998. Berzoini ficou com a vaga. Elegeu-se, mas fez questão de continuar na direção da Bancoop até a campanha presidencial de Lula, em 2002.
Na sede da CUT, Gushiken instalou um curso para formação de sindicalistas em Previdência Complementar. Sinalizava o rumo nas apostilas: “No Brasil, o fundo de pensão como fonte de poder ou como potente agente de negociação nunca foi objeto de discussão nos sindicatos (...) Existe a possibilidade, não remota, de que este monumental volume de recursos, oriundos do sacrifício de milhões de trabalhadores, venha a se transformar num gigantesco pesadelo para estes mesmos trabalhadores”.
O grupo testou o potencial de um fundo estatal na campanha presidencial de 2002. Sérgio Rosa estava na diretoria de Participações da Previ, onde decidem-se os investimentos. Numa quinta-feira, 9 de maio, ele despachou cartas a uma centena de conselheiros do fundo em empresas privadas. Pediu informações sobre como a disputa política “está sendo abordada na empresa em que nos representa” e “qual o posicionamento” das companhias privadas quanto à “participação efetiva no processo”.
Naquele ano eleitoral, as aplicações da Previ no mercado de ações foram quadruplicadas. Adversários sindicais, como Magno de Mello e Valmir Camilo, relacionaram as aplicações da Previ com doações de empresas privadas para Lula e 254 candidatos do PT em todo o país.
Eleito, Lula deu à burocracia sindical 11 dos 33 ministérios e partilhou diretorias na Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Correios com PMDB e PTB, entre outros integrantes da “maior base parlamentar do Ocidente”, como definia o ministro da Casa Civil, José Dirceu.
Gushiken ficou com a Secretaria de Comunicação; Berzoini foi para o Ministério da Previdência; e Vaccari assumiu o sindicato em São Paulo. Eles definiram com Lula o comando dos maiores fundos de pensão estatais a partir do núcleo do sindicalismo bancário. Assim, Sérgio Rosa ganhou a presidência da Previ, Wagner Pinheiro ficou com a Petros e Guilherme Lacerda foi para a Funcef. Ao PMDB reservaram o menor, Postalis.
Na Previdência, Berzoini fechou o circuito com a nomeação de um ex-conselheiro fiscal da Bancoop, Carlos Gabas, para a secretaria-executiva do ministério, que controla o órgão de fiscalização dos fundos de pensão, a Previc. Passaram os anos seguintes testando na prática o projeto que haviam imaginado na década de 80. Os bons companheiros estavam no poder.
*
Apostas em negócios de alto risco, com apoio do governo
Fundador de uma empresa que recebeu R$ 3 bilhões em investimentos dos fundos de pensão da Petrobras, da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, João Carlos Ferraz inquietou-se na cadeira ao ouvir as perguntas:
— O senhor disse que num momento de fraqueza recebeu propina milionária no exterior? Também prometeu devolver uma parte e repatriar outra?
O antigo presidente da Sete Brasil respondeu quase sussurrando: — Gostaria de reafirmar que eu vou permanecer em silêncio.
Uma voz alta surgiu no plenário da CPI dos Fundos de Pensão, ironizando: — Se é verdade, vai tomar um baita prejuízo, porque levou propina com o dólar a dois reais e pouco e vai devolver a quatro e pouco... Talvez seja um dos bons investimentos que a Petrobras fez nos últimos tempos.
Os fundos de previdência estatais ainda se encontram no lado menos visível das investigações sobre corrupção nos negócios da Petrobras. Mas as evidências dos enlaces em negócios suspeitos se espraiam por diferentes inquéritos. E são realçadas pelo acervo de prejuízos bilionários que as fundações acumularam nos últimos 12 anos.
O caso da Sete Brasil é exemplar. Criada no governo Lula, dentro de uma Petrobras eufórica com o pré-sal, previa construir 28 navios-sondas para a petroleira. Os fundos Petros e Funcef compraram 18% das cotas do empreendimento. A Previ se limitou a 3,5%.
Propinas para gerentes da petrobras
Após meia década, empresa e sondas só existem no papel. O dinheiro das aposentadorias virou pó: Petros e Funcef já perderam R$ 828 milhões, e Previ, R$ 161 milhões. Os fundos justificam o fracasso indicando as “perspectivas favoráveis” do projeto em 2010, quando o barril de petróleo custava US$ 100 (fechou a semana a US$ 33).
Sobraram propinas, como as recebidas por João Carlos Ferraz e Pedro Barusco, ex-gerentes da Petrobras que montaram o projeto, se aposentaram na estatal e viraram executivos da Sete Brasil. Na Justiça fizeram acordos de delação, prometendo devolver os subornos: Barusco contabilizou US$ 97 milhões (R$ 388 milhões); Ferraz declarou US$ 1,9 milhão (R$ 7,6 milhões), e batalha para evitar o sequestro judicial dos bônus recebidos (R$ 11,5 milhões) na presidência da companhia.
Os déficits nas fundações públicas têm origem em atos típicos de gestão temerária, em negócios obscuros e nos frágeis sistemas de controle.
— É notável que os fundos de pensão estatais integrem um circuito bilionário de negócios sem controle efetivo — diz o deputado federal Raul Jugmann (PPS-PE). — Os dirigentes não respeitam as regras, a fiscalização faz vista grossa, a Comissão de Valores Mobiliários não tem poder para punir, e o Congresso não entende, só se interessa pelo assunto episodicamente.
Organismos de fiscalização recebem apelos constantes para intervenção nos fundos estatais deficitários. Responsável pela supervisão setorial, a Previc, do Ministério da Previdência, responde com a lembrança “dos limites legais de sua competência”, e a necessidade de “avaliar tecnicamente pressupostos, necessidade e consequências”.
O histórico recente dos investimentos desses fundos de previdência indica que apostas de alto risco, como a realizada na Sete Brasil, não foram acidentais. Havia um grupo de sindicalistas-gestores trabalhando de forma coordenada. Em agosto de 2003, eles se reuniram com Lula na sede da Petrobras, no Rio. Saíram convencidos de que deveriam apoiar integralmente todos os projetos governamentais de infraestrutura.
O alinhamento com o Palácio do Planalto, orientado pelo secretário de Comunicação Luiz Gushiken, intensificou-se a partir da autorização para confrontar parceiros privados — como o grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas—, considerados impeditivos à participação mais direta no controle de empresas de telefonia, privatizadas no governo anterior. Estabeleceram uma rotina de reuniões, uniram recursos e partiram para a batalha societária.
Venceram. Desde então, com respaldo do Planalto, houve uma escalada nas aplicações de alto risco com o dinheiro das aposentadorias, a despeito de contra-indicações jurídicas internas ou da oposição no conselho fiscal.
— Na Petros adotou-se um estilo extremamente autoritário, invertendo-se a lógica da governança— conta Fernando Siqueira, ex-representante eleito nos conselhos fiscal e deliberativo.
Apesar das perdas e danos, o legado do loteamento político é defendido pelos atuais diretores dessas fundações, também originários desse proceso. A Funcef, por exemplo, admite “resultados deficitários”, mas os atribui ao “fraco desempenho das economias nacional e internacional”. Acha que se constitui num “modelo" de governança. A Petros se afirma empenhada em “continuar reforçando” controles. No Postalis rejeita-se a palavra “déficit”. Diz-se apenas que “não há previsão de superávit”.
Para aposentados como Livaldo Pereira de Souza, sócio da Petros, Maria do Socorro Ramalho, da Funcef, e Jackson Mendes, do Postalis, resta uma certeza: sua renda será reduzida. Com sorte, talvez consigam recuperá-la antes do Carnaval de 2035.
O Globo
Aos 71 anos, Livaldo Pereira de Souza é um aposentado preocupado com o seu futuro e o de outras 150 mil pessoas que, como ele, apostaram no fundo de previdência da Petrobras:
— Não é possível que a Petros possa estar em situação difícil — hesita. — Quando mais vou precisar, ela não poderá pagar minha pensão? Como um fundo como a Petros, que tinha um dos maiores patrimônios depois da Previ (Banco do Brasil), pode estar em situação difícil? Isso só pode ser má gestão dos dirigentes, que sempre foram nomeados por indicação do governo federal.
Aflição similar há um ano consome o cotidiano em Brasília de Maria do Socorro Ramalho, de 56 anos. Ex-funcionária da Caixa Econômica Federal, ela começou a ouvir rumores sobre uma crise no fundo de previdência Funcef. O boato virou realidade numa segunda-feira, 13 de abril, quando ouviu o presidente da Funcef Carlos Alberto Caser confirmar o déficit:
— Foi chocante, porque eles viviam falando que estava tudo bem.
Maika, como prefere ser chamada, soube de uma mobilização dos sócios do fundo dos Correios. Aposentados da Funcef e do Postalis foram ao Congresso pedir ajuda para obter informações sobre a situação das contas. Ela descobriu que a situação no Postalis é bem pior que na Funcef.
Em quatro meses de ativismo, ela percebeu também como é a elevada sensibilidade do Legislativo às pressões do funcionalismo: a Câmara abriu uma CPI dos Fundos de Pensão e o Senado já tem outra na fila.
Sobram motivos. Um deles é o tamanho do déficit na Petros (da Petrobras), Funcef (Caixa) e Postalis (Correios): R$ 29,6 bilhões, pela última medição governamental, em agosto do ano passado.
Outra razão é a velocidade em que o rombo aumenta: média de R$ 3,7 bilhões ao mês, até agosto. Nesse ritmo, os balanços de 2015 de Petros, Funcef e Postalis, cuja divulgação está prevista para abril, devem fechar com perdas de R$ 44,4 bilhões — um valor sete vezes maior que as perdas reconhecidas pela Petrobras com corrupção.
O pagamento dessa fatura será dividido ao meio entre associados de Petros, Funcef e Postalis e as estatais patrocinadoras — ou seja, pela sociedade, porque as empresas são controladas pelo Tesouro Nacional. No Ministério da Previdência e na CPI, considera-se provável que os 500 mil sócios dos três fundos atravessem as próximas duas décadas com reduções nos rendimentos. De até 26% no caso do Postalis.
— Roubaram meu dinheiro — desabafa Jackson Mendes, aposentado com 42 anos de trabalho nos Correios.
Professor de Matemática, Mendes integra o grupo que levou a Câmara a instalar a CPI. Ele se diz convicto:
— Fizeram investimentos mal explicados e o dinheiro virou pó.
A maioria dos responsáveis pelos déficits das fundações públicas tem em comum a origem no ativismo sindical. Nos últimos 12 anos, os principais gestores dos fundos de Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Correios saíram das fileiras do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
É uma característica dos governos Lula e Dilma, e as razões têm mais a ver com perspectivas de poder e negócios do que com ideologias.
Os sindicalistas-gestores agem como força-tarefa alinhada ao governo. Compõem uma casta emergente na burocracia do PT. Agregam interesses pela capacidade de influir no acesso de grandes empresas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), fonte principal de recursos subsidiados do BNDES. Onde não têm hegemonia, por efeito do loteamento administrativo, convivem em tensão permanente com indicados pelo PMDB e outros partidos, caso do Postalis.
O uso dos fundos de pensão estatais como instrumento de governo é um traço peculiar do modo de organização política brasileira. Moldadas no regime militar, as 89 fundações públicas existentes dispõem de uma reserva de investimentos (R$ 450 bilhões no ano passado) que seduz governantes: permite-lhes vislumbrar a possibilidade de induzir iniciativas econômicas, por meio da participação dos fundos na estrutura de propriedade das empresas envolvidas. Petros, Previ, Funcef e Postalis, por exemplo, concentram dois terços do patrimônio dos fundos públicos.
Essas entidades paraestatais cresceram nas privatizações iniciadas por Fernando Collor e Itamar Franco. Com Fernando Henrique Cardoso, passaram ao centro das mudanças na mineração (Vale) e nas comunicações (Telefônicas).
Quando chegou ao Planalto, em 2003, Lula estava decidido a ampliar esse canal de influência sobre o setor privado, pela via da multiplicação da presença dos fundos de pensão estatais e do BNDES no quadro societário das empresas.
Havia um projeto, desenhado desde os primórdios do PT e da Central Única dos Trabalhadores, por iniciativa de Luiz Gushiken, então presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
Tipo incomum, ascendera à liderança sindical convocando greves a bordo de terno e gravata. Trocou a militância no comunismo trotskista pela composição com Lula, líder dos metalúrgicos, a partir de uma conversa de botequim. Ajudou a escrever o primeiro estatuto, presidiu o PT, elegeu-se deputado federal três vezes e se tornou um dos mais influentes assessores de Lula.
Foram os negócios nada ortodoxos entre fundos estatais e empresas privadas durante o governo Collor, em 1991, que levaram Gushiken e dois diretores do sindicato paulistano, Ricardo Berzoini e Sérgio Rosa, a abrir o debate dentro do PT sobre o potencial político dos fundos de pensão — até então percebidos como meros instrumentos governamentais de cooptação de sindicalistas.
No ano seguinte, a cúpula político-sindical do PT elegeu bancários para diretorias da Previ e da Funcef, derrotando a velha guarda da Confederação dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito.
O grupo avançou com a eleição de Berzoini à presidência do sindicato paulistano, com Sérgio Rosa e João Vaccari Neto na diretoria. Meses depois, esse trio teve a ideia de entrar no ramo imobiliário com apoio financeiro dos fundos de previdência: nascia a Bancoop, cooperativa habitacional, hoje alvo de múltiplos processos por suposto desvio de dinheiro para campanhas do PT e calote em mais de dois mil clientes.
Gushiken decidiu não disputar o quarto mandato de deputado federal pelo PT, em 1998. Berzoini ficou com a vaga. Elegeu-se, mas fez questão de continuar na direção da Bancoop até a campanha presidencial de Lula, em 2002.
Na sede da CUT, Gushiken instalou um curso para formação de sindicalistas em Previdência Complementar. Sinalizava o rumo nas apostilas: “No Brasil, o fundo de pensão como fonte de poder ou como potente agente de negociação nunca foi objeto de discussão nos sindicatos (...) Existe a possibilidade, não remota, de que este monumental volume de recursos, oriundos do sacrifício de milhões de trabalhadores, venha a se transformar num gigantesco pesadelo para estes mesmos trabalhadores”.
O grupo testou o potencial de um fundo estatal na campanha presidencial de 2002. Sérgio Rosa estava na diretoria de Participações da Previ, onde decidem-se os investimentos. Numa quinta-feira, 9 de maio, ele despachou cartas a uma centena de conselheiros do fundo em empresas privadas. Pediu informações sobre como a disputa política “está sendo abordada na empresa em que nos representa” e “qual o posicionamento” das companhias privadas quanto à “participação efetiva no processo”.
Naquele ano eleitoral, as aplicações da Previ no mercado de ações foram quadruplicadas. Adversários sindicais, como Magno de Mello e Valmir Camilo, relacionaram as aplicações da Previ com doações de empresas privadas para Lula e 254 candidatos do PT em todo o país.
Eleito, Lula deu à burocracia sindical 11 dos 33 ministérios e partilhou diretorias na Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Correios com PMDB e PTB, entre outros integrantes da “maior base parlamentar do Ocidente”, como definia o ministro da Casa Civil, José Dirceu.
Gushiken ficou com a Secretaria de Comunicação; Berzoini foi para o Ministério da Previdência; e Vaccari assumiu o sindicato em São Paulo. Eles definiram com Lula o comando dos maiores fundos de pensão estatais a partir do núcleo do sindicalismo bancário. Assim, Sérgio Rosa ganhou a presidência da Previ, Wagner Pinheiro ficou com a Petros e Guilherme Lacerda foi para a Funcef. Ao PMDB reservaram o menor, Postalis.
Na Previdência, Berzoini fechou o circuito com a nomeação de um ex-conselheiro fiscal da Bancoop, Carlos Gabas, para a secretaria-executiva do ministério, que controla o órgão de fiscalização dos fundos de pensão, a Previc. Passaram os anos seguintes testando na prática o projeto que haviam imaginado na década de 80. Os bons companheiros estavam no poder.
*
Apostas em negócios de alto risco, com apoio do governo
Fundador de uma empresa que recebeu R$ 3 bilhões em investimentos dos fundos de pensão da Petrobras, da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, João Carlos Ferraz inquietou-se na cadeira ao ouvir as perguntas:
— O senhor disse que num momento de fraqueza recebeu propina milionária no exterior? Também prometeu devolver uma parte e repatriar outra?
O antigo presidente da Sete Brasil respondeu quase sussurrando: — Gostaria de reafirmar que eu vou permanecer em silêncio.
Uma voz alta surgiu no plenário da CPI dos Fundos de Pensão, ironizando: — Se é verdade, vai tomar um baita prejuízo, porque levou propina com o dólar a dois reais e pouco e vai devolver a quatro e pouco... Talvez seja um dos bons investimentos que a Petrobras fez nos últimos tempos.
Os fundos de previdência estatais ainda se encontram no lado menos visível das investigações sobre corrupção nos negócios da Petrobras. Mas as evidências dos enlaces em negócios suspeitos se espraiam por diferentes inquéritos. E são realçadas pelo acervo de prejuízos bilionários que as fundações acumularam nos últimos 12 anos.
O caso da Sete Brasil é exemplar. Criada no governo Lula, dentro de uma Petrobras eufórica com o pré-sal, previa construir 28 navios-sondas para a petroleira. Os fundos Petros e Funcef compraram 18% das cotas do empreendimento. A Previ se limitou a 3,5%.
Propinas para gerentes da petrobras
Após meia década, empresa e sondas só existem no papel. O dinheiro das aposentadorias virou pó: Petros e Funcef já perderam R$ 828 milhões, e Previ, R$ 161 milhões. Os fundos justificam o fracasso indicando as “perspectivas favoráveis” do projeto em 2010, quando o barril de petróleo custava US$ 100 (fechou a semana a US$ 33).
Sobraram propinas, como as recebidas por João Carlos Ferraz e Pedro Barusco, ex-gerentes da Petrobras que montaram o projeto, se aposentaram na estatal e viraram executivos da Sete Brasil. Na Justiça fizeram acordos de delação, prometendo devolver os subornos: Barusco contabilizou US$ 97 milhões (R$ 388 milhões); Ferraz declarou US$ 1,9 milhão (R$ 7,6 milhões), e batalha para evitar o sequestro judicial dos bônus recebidos (R$ 11,5 milhões) na presidência da companhia.
Os déficits nas fundações públicas têm origem em atos típicos de gestão temerária, em negócios obscuros e nos frágeis sistemas de controle.
— É notável que os fundos de pensão estatais integrem um circuito bilionário de negócios sem controle efetivo — diz o deputado federal Raul Jugmann (PPS-PE). — Os dirigentes não respeitam as regras, a fiscalização faz vista grossa, a Comissão de Valores Mobiliários não tem poder para punir, e o Congresso não entende, só se interessa pelo assunto episodicamente.
Organismos de fiscalização recebem apelos constantes para intervenção nos fundos estatais deficitários. Responsável pela supervisão setorial, a Previc, do Ministério da Previdência, responde com a lembrança “dos limites legais de sua competência”, e a necessidade de “avaliar tecnicamente pressupostos, necessidade e consequências”.
O histórico recente dos investimentos desses fundos de previdência indica que apostas de alto risco, como a realizada na Sete Brasil, não foram acidentais. Havia um grupo de sindicalistas-gestores trabalhando de forma coordenada. Em agosto de 2003, eles se reuniram com Lula na sede da Petrobras, no Rio. Saíram convencidos de que deveriam apoiar integralmente todos os projetos governamentais de infraestrutura.
O alinhamento com o Palácio do Planalto, orientado pelo secretário de Comunicação Luiz Gushiken, intensificou-se a partir da autorização para confrontar parceiros privados — como o grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas—, considerados impeditivos à participação mais direta no controle de empresas de telefonia, privatizadas no governo anterior. Estabeleceram uma rotina de reuniões, uniram recursos e partiram para a batalha societária.
Venceram. Desde então, com respaldo do Planalto, houve uma escalada nas aplicações de alto risco com o dinheiro das aposentadorias, a despeito de contra-indicações jurídicas internas ou da oposição no conselho fiscal.
— Na Petros adotou-se um estilo extremamente autoritário, invertendo-se a lógica da governança— conta Fernando Siqueira, ex-representante eleito nos conselhos fiscal e deliberativo.
Apesar das perdas e danos, o legado do loteamento político é defendido pelos atuais diretores dessas fundações, também originários desse proceso. A Funcef, por exemplo, admite “resultados deficitários”, mas os atribui ao “fraco desempenho das economias nacional e internacional”. Acha que se constitui num “modelo" de governança. A Petros se afirma empenhada em “continuar reforçando” controles. No Postalis rejeita-se a palavra “déficit”. Diz-se apenas que “não há previsão de superávit”.
Para aposentados como Livaldo Pereira de Souza, sócio da Petros, Maria do Socorro Ramalho, da Funcef, e Jackson Mendes, do Postalis, resta uma certeza: sua renda será reduzida. Com sorte, talvez consigam recuperá-la antes do Carnaval de 2035.
O Globo
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