sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Na era da insensatez, o Brasil divorciou-se do bom senso

Ney Bello

A partir da segunda metade do ano que passou o país vem experimentando um incêndio. O fogo segue se alastrando pelos inúmeros grupos de WhatsApp, onde bem se sabe a gritaria é ampla, a estupidez é liberada e a estultice torna-se verdade absoluta, a depender do número de postagens efetuadas e da quantidade de concordâncias com a maluquice digitada.

A neurose coletiva também se vê fortalecida pelo Facebook e por outros canais virtuais, onde opiniões que seriam simplesmente ignoradas — se o contato fosse pessoal — transformam-se em textos, áudios e vídeos que ganham fôlego e atraem seguidores. Não é à toa que surgiram observações como a de Umberto Eco: “Redes sociais deram voz a legião de imbecis”.

A crise política e a crise econômica que varrem o país – de braços dados com a corrupção sendo conhecida e parcialmente punida e de par com o cinismo e a cegueira de uns tantos — tornaram qualquer grupo de amigos virtuais uma praça de guerra.  O produto tosco que surge desse embate entre pessoas aparentemente normais é a completa intolerância com a divergência.

Aquele que apoia governos de esquerda e aplaude programas de complementação de renda ou programas sociais é imediatamente igualado aos ladrões da Petrobras, instantaneamente reduzido à condição de sócio de um doleiro qualquer, lançado no patamar de incentivador da corrupção ou rotulado de beneficiário de algum delito ainda não descoberto. Argumentar pela defesa do mandato obtido nas eleições coloca o sujeito na posição de beneficiário de desvio de dinheiro, ou, quando não muito, de cego, de ignorante ou de desinformado.

Aplaudir um juiz atuante e concordar com certas prisões cautelares — em determinados grupos ou redes sociais — pode levar o manifestante a ser acusado de dormir de braços dados com Stroessner, Pinochet ou outro ditador do século passado.  Há quem iguale — sem noção do ridículo — a Lava Jato ao regime militar e a atuação da Justiça a uma perseguição atroz e meramente política. Há quem sustente um oximoro — uma contradição interna — e defenda uma impossível intervenção militar constitucional. E há quem considere os advogados tão culpados quanto seus clientes e não apenas os agrida, mas defenda, ao invés do processo e do julgamento, simples condenações, com ou sem provas.

Apoiar a liberdade das expressões homoafetivas virou motivo de crítica, como se permitir as escolhas da própria sexualidade significasse a obrigação de ser homossexual e, bem ali, na próxima esquina!

A violência urbana — que não mudou nem para o mais nem para o menos nos últimos anos – permite a alguns defenderem a redução da maioridade penal. E coitado daquele que pensar em argumentar em contrário, baseado em estatísticas ou em demonstrações de que são proporcionalmente muito poucos os menores infratores violentos e o encarceramento de adolescentes não reduz a criminalidade! Há sempre um amigo do WhatsApp gritando: “Leva para dormir no teu quarto, então!”

O Brasil divorciou-se do bom senso.
Estamos de férias do equilíbrio racional!
Cornelius Castoriadis disse certa vez, referindo-se à segunda metade do século passado, que o mal da nossa sociedade é que ela parou de se questionar.

Em plena marcha do século XXI percebo que um dos males que nos aflige é que paramos até mesmo de pensar. Passamos a aceitar tudo aquilo que nos apresentam pela mídia difusa da internet e reproduzimos coisas sobre as quais sequer pensamos ou refletimos.

Movidos por sensações epidérmicas e interesses personalíssimos apoiamos estupidezes, loucuras, irracionalidades e desvarios porque os recebemos pela rede mundial de computadores, mas muito principalmente  porque se acomodam ao nosso interesse pessoal mais imediato.

No tempo de “farinha pouca, meu pirão primeiro” a culpa é sempre do outro. Na guerra verbal do “vale tudo” não vale pensar nas opiniões divergentes, nas diferentes formas de ver o mundo e muito menos na observação clara segundo a qual o meu desejo não se confunde com o meu direito.

“Deu na televisão” era uma frase que minha avó usava para se referir a uma verdade sabida, sobre a qual não valia a pena discutir e da qual era impossível duvidar. Hoje, “estão falando no Face” ou “recebi no meu grupo de WhatsApp” virou sinônimo de algo que não merece crítica, por mais que uma simples corrida de olhos deixe claro o tamanho da inviabilidade da notícia.

Paramos de pensar! Só sabemos digitar e postar!
Quando a sociedade inteira para de refletir e mais gente do que imaginamos começa a valorizar figuras que estariam folgadamente presentes na “Noite de São Bartolomeu” é porque a história definitivamente está andando para trás.

Alguns povos e algumas sociedades ressurgiriam de crises sociais. Já aconteceu com a Alemanha, já aconteceu com o Japão e até com a vizinha Argentina. Tolerar o pensamento alheio contrário ao seu próprio é o primeiro passo. Estabelecer um consenso sobreposto, como dizia John Rawls é fundamental para avançarmos na construção de uma comunidade onde possamos ser livres e, ao mesmo tempo, responsáveis por um projeto comum.

O país se derrama a olhos vistos.
Ou nos damos conta disso e estancamos o sangramento, ou este final de década ficará para a eternidade como o tempo em que a história do Brasil — infelizmente — andou para trás.

Ney Bello
Desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras. 

A Voz do Cidadão



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