sábado, 30 de junho de 2018

Eleição sem partidos

João Domingos
(*)

O voto será dado a nomes, não interessa ao eleitor a qual sigla está vinculado o candidato

O segundo turno da eleição para mandato-tampão do governador de Tocantins, realizado no domingo passado, mostrou que a soma de votos brancos e nulos com as abstenções chegou a 51,83% do total de pessoas aptas a votar. Esse porcentual representa 527.868 eleitores e supera a soma dos votos conquistados pelos dois candidatos que disputaram o segundo turno: 490.461.

Estatísticos, cientistas políticos, jornalistas especializados em política e outros buscam entender o que aconteceu em Tocantins. Seria o desinteresse por uma eleição extemporânea? Dificuldades de locomoção do eleitor? Distanciamento da população em relação aos políticos? Desesperança? É possível que seja uma soma de tudo isso a razão que levou a números que chamaram tanto a atenção. (É preciso lembrar que mesmo na condição verificada em Tocantins, em que a soma de abstenções e votos brancos e nulos ultrapassou a dos votos nos candidatos, a eleição vale. Qualquer notícia diferente é fake news. E elas circulam a rodo por aí).

Mesmo que o cenário brasileiro seja de muita incerteza e que não se verifique, pelo menos por enquanto, grande empolgação em relação às eleições de outubro, que se avizinham, ninguém se arrisca a dizer que abstenções, brancos e nulos vão passar dos 50%. Calcula-se que entre 60% e 65% comparecerão às urnas, o que permite trabalhar com um eleitorado em torno de 90 milhões e 100 milhões, levando-se em conta que o número de eleitores deverá chegar perto dos 150 milhões.

Portanto, os candidatos que disputarão a eleição presidencial, os governos estaduais, o Senado, a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas devem levar em conta que terão de cavar o voto num universo que se situa entre 60% e 65% do eleitorado.

Os candidatos à Presidência que apareceram até agora estão muito longe daquilo que se pode chamar de liderança. Nem mesmo Lula, que está preso e mostra uma impressionante capacidade de permanecer nas mentes das pessoas, seja do ponto de vista positivo, seja do ponto de vista negativo, pode almejar para si essa função. Ele lidera o PT, não há dúvida nenhuma. Mas não o Brasil. Os 33% a 38% do eleitorado que dizem votar nele ainda são minoria. E não é possível perceber em Lula, dada a divisão da sociedade brasileira e de um discurso de confronto dele e do PT, capacidade para unificar o País. Esse líder ainda não existe. Ou, se existe, está escondido, talvez à espera de notícias melhores da política e do País.

Quanto aos partidos, simplesmente são ignorados pelo eleitor. Veja-se pesquisa do DataPoder360, divulgada na terça-feira, sobre a preferência do eleitorado de Minas Gerais. No cruzamento com a disputa presidencial, o tucano Geraldo Alckmin (SP) receberia apenas 10% dos votos do senador Antonio Anastasia, do PSDB, que disputará o governo e está à frente, com 27% da preferência do eleitorado, contra 15% do governador Fernando Pimentel (PT) e 9% do ex-prefeito de Belo Horizonte Marcio Lacerda (PSB). Já o deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) receberia 54% dos votos do eleitor de Anastasia.

Por que os votos do PSDB ao candidato a governador não chegam ao candidato do mesmo partido à Presidência, mas a Jair Bolsonaro? Porque o eleitor mineiro provavelmente ainda se lembra do governo de Anastasia, faz uma associação com o de Pimentel, que passa por uma crise política, econômica e ética danada e conclui que deseja o tucano de volta. Quanto a Alckmin, o fato de pertencer ao PSDB não faz nenhuma diferença. Como ninguém quer saber também a quais partidos pertencem Jair Bolsonaro, Marina Silva ou Ciro Gomes. O voto será dado no nome. Não do partido.

O Estado de São Paulo

(*) Comentário do editor do blog-MBF:  em algum momento os formadores de opinião terão que se convencer de que partidos políticos perderam a validade. Estão vencidos. Podem e devem ser descartados.
Monarquistas, republicanos, conservadores e liberais de um lado, contra comunistas e socialistas de outro, não mais interessa ao cidadão. Interessa à ele resultados, e estes não foram conseguidos por nenhuma das vertentes acima citadas.


Em busca da receita do crescimento

Claudia Safatle

O país experimenta caminhos que não o equilíbrio fiscal

Há 35 anos, desembarcou em Brasília a economista Ana Maria Jul, chefiando a missão técnica do Fundo Monetário Internacional (FMI). O Brasil havia quebrado, das reservas cambiais contavam-se as moedinhas, e o governo brasileiro buscou ajuda junto ao emprestador de última instância, o FMI. Dentre os compromissos firmados naquele acordo constava a meta de redução da necessidade de financiamento do setor público de 13,8% do PIB em 1982 para 7,9% do PIB em 1983 e para níveis bem mais baixos no período do acordo de três anos. Essa era a medida do déficit nominal.

Começava, ali, a percepção de que o gasto público precisava de maior controle e transparência.

A inflação deveria cair dos 100% em 1982 para 70% em 1983 e 40% em 1984, conforme previa o acordo. Os técnicos do fundo insistiram na desindexação dos salários que acabaram sendo reajustados com base em 80% da inflação.

Havia, também, um forte ajuste a ser feito nas contas externas do país. Poucas semanas após a assinatura da carta de intenções junto ao FMI, o governo fez a maxidesvalorização de 30% do cruzeiro em relação ao dólar. No ajuste, o déficit em conta corrente caiu de US$ 16 bilhões para R$ 94 milhões entre 1982 e 1984, mas a inflação não deu trégua. O FMI queria mais controle monetário e mais de corte das despesas públicas.

A primeira carta foi um fracasso e outra dezena de tentativas foram escritas. O objetivo final dos programas de negociados com o fundo monetário era reconstruir as condições de pagamento aos credores externos.

Antes da negociação com o FMI, no início de 1980, o então ministro Delfim Netto anunciou a prefixação da correção monetária em 45% e da taxa de câmbio em 40% durante o ano. Mas a inflação permaneceu nos três dígitos.

Entre pedidos de perdão pelo descumprimento das metas e renegociações, o governo brasileiro foi obtendo, junto ao fundo monetário, mudanças metodológicas para as contas públicas até chegar ao resultado primário que vigora hoje e que expurga as despesas com os juros da dívida pública.

Com o fim do regime militar e a ascensão de José Sarney à Presidência da República, os brasileiros passaram a conviver com uma inflação elevadíssima e uma sequência de planos econômicos heterodoxos que congelavam os preços, criavam gatilho para reajustes salariais e testavam, em vão, várias alternativas de política econômica, inclusive o confisco da poupança do Plano Collor.

Em 1994, no governo Itamar Franco, o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso comandou a equipe de economistas, os mesmos que elaboraram o Cruzado, que concebeu o bem-sucedido Plano Real, que derrubou a inflação de 2.477,15% em 1993 para patamares mais civilizados, de um dígito. Atualmente, sob o regime de metas para a inflação, o IPCA está na casa dos 3%.

O Real, ancorado na taxa de câmbio, descuidou das contas públicas até que, em 1998, o governo de FHC teve que recorrer ao FMI, reiniciando os acordos que terminaram em 2006, quando o então presidente Lula quitou a dívida com o Fundo.

A partir do segundo mandato de FHC, sob acordo com o FMI, deu-se curso a uma política de austeridade. O esforço fiscal foi excepcional para sair de um déficit de 0,87% do PIB em 1997 e chegar a um superávit primário de 2,86% do PIB em 1999.

Por dez anos, até 2008, o país manteve a política de superávits primários das contas públicas da ordem de 3% do PIB e obteve um crescimento médio de 3,45% do PIB. A partir daí os superávits começaram a decrescer até se transformarem em déficit em 2014, situação que perdura hoje. A expansão média do PIB 2009 a 2017 foi de 1,20%. É certo que o "boom" das commodities ajudou bastante a atividade econômica durante o periodo de Lula. Mas sabe-se que esses surtos são passageiros.

O déficit primário atingiu o ápice em 2016, ano em que a então presidente da República Dilma Rousseff foi afastada do governo com a aprovação do seu impeachment em agosto. O governo Dilma, além das pedaladas. testou alternativas de política econômica que não o tripé de FHC, representado pelo superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. Instituiu um programa desenvolvimentista conhecido como "nova matriz econômica". Ela ignorou os limites do gasto público e quase levou o Estado brasileiro à insolvência, deixando contratada uma recessão profunda e prolongada. De superavitária a União passou a viver de mais endividamento.

Dilma deixou de herança déficit primário de 2,49% do PIB e R$ 4,3 trilhões de dívida bruta do governo geral, equivalente a 69,95% do PIB. Hoje a dívida é de R% 5,04 trilhões, o que corresponde a 76,02% do PIB, segundo dados de abril do Banco Central.

Receitas crescentes com impostos ajudaram os governos a cumprir metas de superávit fiscal. As despesas, porém, assumiram trajetória de crescimento mais rápido, lideradas pela Previdência Social que consumiu, no ano passado, 57% dos gastos totais.

Nos últimos 35 anos o país testou várias políticas econômicas em busca do crescimento. Do congelamento de preços ao confisco da poupança, houve uma longa lista de experimentos.

Os erros e acertos, porém, não foram suficientes para criar uma consciência na classe política de que a boa gestão das finanças públicas é crucial para a estabilidade e, inclusive, para o bom desempenho das políticas de combate à desigualdade. Equilíbrio fiscal não deve ser um objetivo passageiro.

Ricardo Lagos, socialista, presidente do Chile de 2000 a 2006, disse ao assumir que seria rigoroso na política fiscal para poder ser ousado nas políticas sociais.

Ana Maria Jul, que era a expressão da austeridade com sua pasta preta e tailleur singelo, virou musa do carnaval no bloco do irreverente Pacotão, criado por jornalistas de Brasília para satirizar os Três Poderes.

A política fiscal, nessas três décadas, foi do déficit ao superávit e, novamente, para o déficit. O presidente Temer conseguiu a aprovação da PEC do teto do gasto público, iniciativa relevante para retomar a confiança no governo. Para cumprir o teto do gasto será imperativo aprovar a reforma da Previdência. Mas não só ela. A política fiscal responsável é, provavelmente, um ingrediente básico da receita do crescimento.

Valor Econômico


sexta-feira, 29 de junho de 2018

Chega de debate

Carlos Alberto Sardenberg

Desconfie de todos os políticos que dizem: sim, a reforma da Previdência é necessária, mas precisamos debater os termos com a sociedade

Claro que é preciso debater tudo com a sociedade, mas, caramba!, há quanto tempo estamos debatendo a reforma da Previdência? Qual discussão é mais antiga, essa ou a reforma tributária? Francamente: nos dois casos, já está tudo dito, há números abundantes, todo mundo já deu suas opiniões. O que precisa agora, especialmente neste momento de eleições federais e estaduais, é definir propostas.

Em outras palavras, desconfie de todos os políticos que dizem: sim, a reforma da Previdência é necessária, mas precisamos debater os termos com a sociedade. Mesmo admitindo que cabem mais algumas conversas, a obrigação das lideranças que buscam votos é iniciar o debate apresentando a sua proposta de solução.

Sem isso, estão subindo no muro, se esquivando e tentando passar a falsa impressão de que, no governo, vão buscar uma saída que satisfaça todo mundo. E que não existe.

Vale para a reforma tributária, outra veteraníssima. Tudo dito, façam suas opções, candidatos, e se comprometam perante o eleitor de modo explícito.

Vale também para a reforma trabalhista. Aqui, aliás, temos um caso mais claro de tentativa de embuste. O Congresso aprovou, e o presidente sancionou uma reforma, justamente entendendo-se que o debate estava feito, e decisões tinham de ser tomadas. Foram, mas sobram candidatos dizendo que a votação foi prematura e que é preciso rediscutir tudo de novo.

Por exemplo: seria preciso chamar as entidades de trabalhadores e de empregados para perguntar o que acham do imposto sindical obrigatório, que foi extinto. Ora, para que chamar essa turma? Eles vão dizer o quê? Que não querem o dinheiro fácil do imposto recolhido e distribuído pelo governo?

Do mesmo modo, de que adianta perguntar às pessoas se preferem se aposentar na faixa dos 50 anos ou só depois dos 65?

Argumentam marqueteiros: mas o candidato não se elege se disser que vai aumentar a idade de aposentadoria. Bom, então diga que não precisa de reforma da Previdência e que vai pagar essa despesa com mais impostos, por exemplo. O embuste é dizer: vamos debater com a sociedade.

Vamos mal. Decisões cruciais demoram séculos e, quando são tomadas ... melhor rediscutir. Não acaba nunca.

PRIVILÉGIOS
Dia desses, o Tribunal Superior Eleitoral lançou edital para comprar equipamentos de “reabilitação fisioterápica”. Ou seja, uma academia, que ficaria à disposição dos funcionários. Isso, lógico, exigirá a contratação de fisioterapeutas.

Indagada, a direção do TSE disse que outros tribunais superiores já tinham esse serviço e que se tratava de igualar benefícios.

De fato, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm essas academias, com fisioterapeutas de carreira, ganhando pouco mais de R$ 16 mil mensais. Está bom? Uma consulta às empresas de recursos humanos mostra que, no setor privado, os fisioterapeutas mais bem pagos estão em São Paulo: salário médio de R$ 3.700, teto de R$ 10 mil. No Brasil, média de R$ 2.200.

Não é uma questão de quem merece ou não. A questão é: pode o setor público pagar sete vezes mais para oferecer reabilitação gratuita a seus funcionários, que estão também entre os mais bem pagos?

Dirão: é coisa pequena, não é daí que vem o déficit das contas públicas.

Mas é daí, sim, especialmente nos governos estaduais e prefeituras. Nestes dois níveis de administração, a despesa com pessoal subiu sistematicamente desde os anos 90, até o ano passado, inclusive. Em 2017, esse gasto chegou a 9,1% do PIB. Muito, mas muito mais do que os investimentos. E todo dia saem notícias mostrando que esses níveis de governo estão quebrados, ou quase e, ainda assim, concedem aumentos salariais diversos.

Resumindo: todo mundo sabe que é preciso conter os gastos com o funcionalismo — uma questão econômica — e eliminar os privilégios — questão moral e política.

Não apenas aqui no Brasil, mas no mundo todo se sabe como funciona uma boa administração pública. É só copiar, em vez de propor um enganador debate sobre “soluções brasileiras”.

Tudo considerado, o setor público está quebrado. No governo federal, o principal gasto está na Previdência (INSS e aposentadoria dos servidores e militares). Nos níveis estaduais e municipais, a despesa que mais cresce é com salários do pessoal. Fato. Desconfie do candidato que propuser debates.

O Globo

Mourão bate no Judiciário gravemente queimado

Jorge Serrão 


Os grupos organizados nas redes sociais cansam de criticar o Supremo Tribunal Federal e a atuação (mais política, disfarçada de jurídica) dos seus ministros. A reclamação apenas amplia o desgaste de imagem dos membros Judiciário. Na prática, os criticados magistrados são inatingíveis. Decidem o que querem, como lhes é conveniente, porque o exagerado aparato legal brasileiro dá margem a qualquer interpretação, a favor e contra um réu ou reclamante. Nesta zona legal, causa e conseqüência se confundem. A toga corre atrás do próprio rábula...

A sessão de ontem do STF foi apenas mais uma prova do funcionamento pífio de um Judiciário que se acostumou a interferir nas decisões do Executivo, também legislando via imposição de interpretações convenientes de jurisprudência. O polêmico Gilmar Mendes reclamou: “Nós já temos as mãos queimadas em matéria de controle de emenda constitucional com aquele caso dos precatórios, em quem produzimos um verdadeiro desastre”. O ministro Luiz Fux aproveitou a queimação gilmariana para alfinetar as recentes decisões dos colegas: “Nós estamos não com as mãos queimadas. Estamos com o corpo todo queimado porque há outras decisões que também que são muitos díspares do ideário do Supremo”.

Claramente queimado perante a opinião pública – o que pouco importa para ministros que parecem executar, legislar e julgar em outro planeta -, o STF deu uma queimada nos planos privatizantes do trio presidencial Michel Temer, Moreira Franco e Eliseu Padilha. O ministro Ricardo Lewandowski tomou uma decisão monocrática que deixou os rentistas arrepiados. Ele concedeu uma liminar proibindo a venda do controle acionário de estatais brasileiras sem autorização legislativa. O patético da situação é que o ministro está certíssimo da silva... Não adianta o Gato Angorá soltar a franga...

Essa perniciosa insegurança jurídica incomoda os militares. Vide o recente pronunciamento do novo presidente do Clube Militar. O General Antônio Mourão soltou o verbo contra a suprema decisão que botou José Dirceu em liberdade:

“Ontem tive a honra e o privilégio de assumir a Presidência do Clube Militar, onde juntamente com a equipe formada pelos Gen Eduardo, Santos e Cel Lindenblat iremos não só dar continuidade ao excelente trabalho realizado pela equipe do Gen Pimentel, como também atuar no sentido de apoiar incondicionalmente nossos candidatos oriundos da família militar”.

Pondera Mourão: “Contudo, ao retornar para casa, tive o desprazer de ver a decisão da 2ª Turma do STF, colocando em liberdade o facínora José Dirceu, um guerrilheiro fajuto e, pior ainda, ladrão dos parcos recursos desta Nação. A argumentação do Ministro Toffoli soou como um tapa na cara da população ordeira e que paga os pesados impostos, os quais alimentam os salários e mordomias dessa casta. Óbvio que o time formado por Gilmar e Lewandowski de imediato coonestou a tese de que a dosimetria da pena de Dirceu poderia ser revista. Ora minha gente, independente do tempo que tenha de cumprir, a verdade é que Dirceu está condenado em 2ª instância e portanto deveria aguardar na cadeia a solução do seu caso”.

O General Mourão finaliza fuzilando: “O trio de Ministros constitui o exemplar perfeito daquilo que Skousen denominou de "homo marxianus" (homem marxista). Esta espécie, infelizmente ainda abundante em nosso País, considera que nada é mau, desde que atenda suas conveniências. Libertou-se de todas as restrições da honra e da ética que o confinavam e que a humanidade havia tentado usar como base para a harmonia nas relações humanas. Quantas leis houverem, igual número ele as quebrará. VEGONHOSA DECISÃO!!!!!”.

O General Mourão não falou nada diferente do que pensa a maioria da população brasileira acerca do Judiciário e sua mais alta Corte. Felizmente, o STF ainda garante a plena liberdade de expressão – inclusive para receber críticas duríssimas de quem quer que seja. O problema concreto é: estamos longe de resolver o problema estrutural da insegurança individual, jurídica, política e econômica – que são a base da Democracia.

Resumindo: Judiciário queimado significa a incineração do regime democrático. O Brasil arde no inferno antidemocrático. Até quando suportaremos tamanho regime de exceção?


Alerta Total

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Turbinar crescimento e conter Trump: dois desafios do próximo presidente do México

IGNACIO FARIZA

O nome escolhido nas eleições do dia 1° de julho terá de enfrentar a dívida pública e propor uma reforma fiscal para resolver o problema da arrecadação

Muitas questões econômicas e poucas respostas concretas a quatro dias daseleições presidenciais mexicanas. Dada a avalanche de temas urgentes, com a corrupção e violência entre as questões mais preocupantes, a economia passou quase despercebida na campanha, e as soluções propostas foram predominantemente improvisadas, sem profundidade e um plano de acompanhamento fiscal. Mas os desafios, latentes há décadas, agora parecem mais prementes do que nunca: apesar da estabilidade macroeconômica, o crescimento e o investimento ainda são baixos; a lacuna da desigualdade permanece aberta; os salários estão estagnados e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês), do qual depende um terço do PIB mexicano, está em risco enquanto Donald Trump estiver na Casa Branca.

Reativar a economia será a primeira tarefa do próximo Governo. Nos últimos seis anos, o crescimento médio anual se manteve em pouco mais de 2%, um resultado que cai ainda mais se o que é medido é a renda per capita — o indicador que melhor reflete a evolução da riqueza real de uma sociedade. O ainda presidente mexicano Enrique Peña Nieto iniciou seu mandato de seis anos de forma brilhante, com uma bateria de reformas que renderam-lhe o aplauso unânime do FMI e da OCDE. No entanto, o retorno foi menor do que o esperado: a realidade, teimosa, deixou em quimera os augúrios de uma expansão anual de 5%. O sul do país continua desconectado da globalização e do investimento público em pelo menos 70 anos.

"Nas últimas campanhas, pelo menos se falava sobre como íamos tentar crescer mais, mas ainda continuamos na mesma e nenhum candidato propôs algo novo", lamenta Valeria Moy, diretora do think tank Mexico Cómo Vamos?. O modelo seguido há décadas, com base nas exportações e contenção salarial, já mostra suas deficiências, e o fortalecimento do mercado interno, mediante o reajuste de salários que estão entre os mais baixos da América Latina e o aumento do investimento público, mostra-se essencial. Mais ainda em um momento em que o por muito tempo maior parceiro comercial, os Estados Unidos, país do qual depende quase um terço do PIB mexicano, se opõe à visão global e abraça o protecionismo. "Além do TLC [NAFTA], o México pode fazer muito para impulsionar sua economia com mais investimentos em infraestrutura", diz Robert Blecker, da American University. "É uma parte essencial do plano de Andrés Manuel López Obrador [o grande favorito], mas pouco enfatizado na campanha."

Preservar o NAFTA, que une México, Estados Unidos e Canadá desde 1994, será, no entanto, uma tarefa essencial para o próximo presidente.

Diferentemente de anos atrás, a política comercial quase não entrou na campanha, e todos os candidatos defenderam o acordo, mas o desafio será redirecionar uma negociação que, ano após ano, quase não deu frutos. Também diversificar a matriz comercial: isso não depende de um único parceiro, diz Gabriel Lozano, economista-chefe para México e América Central do banco de investimento JP Morgan.

Mas retomar o crescimento, salvar o NAFTA e expandir o horizonte comercial seriam medidas inócuas se não forem acompanhadas de inclusão social. Em um país em que a pobreza continua a afetar mais da metade da população e na qual as tímidas melhorias da produtividade só conseguiram retribuir melhor o capital e não o trabalho, o aspecto social deve ser uma das pedras angulares da futura política econômica. "A desigualdade sempre esteve ausente do curso de política macro, e não pode continuar assim", destaca Juan Carlos Moreno Brid, professor de economia da UNAM. Desta vez, a desigualdade entrou com força na campanha: os dados não são nada encorajadores —1% da população acumula mais de um terço da riqueza e 10% ganha 21 vezes mais do que o decil mais pobre— e os mexicanos exigem soluções.

O indicador de desigualdade mais utilizado, o índice de Gini, ficou ancorado em níveis inaceitavelmente altos na comparação internacional. E o sistema tributário corrige muito menos do que seus parceiros brasileiros, argentinos, chilenos ou uruguaios. A mobilidade social também permanece escassa: a pobreza afeta 40% dos mexicanos, 7 em cada 10 pessoas nascidas nessa situação não podem escapar dela. E, embora tenham provado ser uma medida muito boa para aliviar a pobreza extrema, as transferências condicionais servem apenas para superar o primeiro elo do desenvolvimento. "O que falta é justamente dar o salto para o próximo andar: que as pessoas que recebem esses programas possam avançar no trabalho, mas a informalidade e a precariedade o impedem", diz Gabriela Ramos, diretora-geral da OCDE. "O grande desafio será político: convencer os empresários de que o México só avançará se dividir sua fatia do bolo aumentando os salários", completa Moreno Brid.

O pequeno esforço em gastos sociais não ajuda. Apesar de ter quadruplicado desde meados dos anos oitenta, até 8%, este item continua a anos-luz de outros países industrializados (21%) e da média da América Latina (14%). Aumentar os gastos é, no entanto, tão premente quanto reformular os programas sociais: 8 em cada 10 não atingem suas metas e apenas 10% conseguem um desempenho "ótimo".

Qualquer passo para tentar combater a desigualdade e a pobreza também corre o risco de ser em falso se não for acompanhado por uma nova reforma tributária. Embora a dívida pública permaneça em níveis não tão preocupantes, o forte crescimento dos últimos anos reduz a margem de manobra do Governo que saia das urnas. Opções para adicionar músculo financeiro ao Estado são muitas, mas quase todos os especialistas concordam em dois pontos: aplicar o IVA a alimentos e medicamentos —hoje isentos—, introduzindo compensações aos setores menos abastados para evitar a regressividade e aplicar um verdadeiro imposto de propriedade (sobre os bens imóveis), hoje praticamente inexistente.

Em março, a OCDE deu um passo adiante e recomendou taxar as heranças para aumentar a arrecadação enquanto se reduz a desigualdade. Mas os candidatos continuam paralisados no não. "É preocupante que continuem prometendo reduzir ou manter os impostos", opina Rodolfo de la Torre, do Centro de Estudos Espinosa Yglesias, que espera que, já na residência presidencial Los Pinos, percebam o rombo da arrecadação e mudem sua aversão fiscal. Muitas questões pendentes para os próximos seis anos que se apresentam, pelo menos em seu envoltório, mais problemáticos do que qualquer mandato anterior.

ESTABILIDADE MACROECONÔMICA, MAS COM DÍVIDA PÚBLICA EM ALTA
A relativa estabilidade econômica tem sido a marca predominante dos últimos anos. Para um país que conviveu, não há muito tempo, com taxas anuais de preços de três dígitos, uma inflação de 7% não é uma boa notícia, mas é facilmente digerível. Apesar da abrupta queda dos preços do petróleo, que em tempos não tão distantes teria sido um golpe quase fatal para a economia mexicana, o PIB do México manteve uma taxa de crescimento baixa, mas estável. E, no entanto, o cenário macro tem sabor agridoce: o déficit cresceu e arrastou a dívida pública, que já está em torno de 50% do PIB.

EL PAÍS

Parlamento espanhol aprova eutanásia com o voto contra do PP

Observador - Portugal

O Parlamento espanhol votou e aprovou nesta terça-feira uma proposta de lei do Partido Socialista espanhol para regulamentar a eutanásia. O Partido Popular foi o único partido a votar contra.

O Parlamento espanhol votou e aprovou nesta terça-feira uma proposta de lei do Partido Socialista espanhol (PSOE) para regulamentar a eutanásia. O Partido Popular (PP), que até há pouco tempo esteve no poder, foi o único partido a votar contra o projeto do governo de Pedro Sanchéz, depois de o Ciudadanos, que se ia abster, ter mudado de posição e votado a favor.

O objetivo da proposta é tornar a eutanásia num direito individual e efetivo que passa a estar disponível nos serviços do Sistema Nacional de Saúde.  De acordo com a proposta do PSOE, as pessoas maiores de idade com doença grave e incurável ou deficiências crónicas graves poderão receber ajuda do sistema público de saúde para morrer.

A proposta dos socialistas prevê que os profissionais de saúde envolvidos diretamente na prestação de assistência à morte tenham o direito de exercer a objeção de consciência. Essa opção deve, porém, ser informada com antecedência por escrito, de forma a criar um cadastro de profissionais indisponíveis para praticar a eutanásia e assim permitir a gestão do serviço por parte da administração do sistema de saúde espanhol.

Ao contrário do que aconteceu em Portugal, o projeto de lei foi apoiado pelos vários partidos do espectro político, com exceção do Partido Popular. O Podemos, ERC (partido da Esquerda Republicana da Catalunha), o PNV (partido nacionalista basco), o PDeCAT (partido democrata europeu catalão), e o Ciudadanos, foram os partidos que viabilizaram a proposta. O Ciudadanos, que inicialmente se absteve, acabou por mudar na última hora e votou favoravelmente dando luz verde à viabilização do projeto de lei.


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Partido de Bolsonaro terá de ir à Justiça para lançar candidatos em SP

JUSSARA SOARES
(*)

Diretório paulista do PSL foi suspenso pelo TRE por falha na prestação de contas de 2016

SÃO PAULO — O diretório paulistano do PSL, partido do pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro, vai à Justiça para garantir participação nas eleições deste ano. A sigla no estado está suspensa pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) devido a uma falha de prestação de contas no ano de 2016. Advogados da legenda já preparam um pedido de liminar para o partido voltar a exercer as suas atividades.

Caso a situação não for regularizada até agosto, o PSL pode ser impedido de lançar candidatos por São Paulo, o que vetaria inclusive a candidatura à reeleição do deputado federal Eduardo Bolsonaro. Terceiro filho de Jair Bolsonaro, ele foi eleito por São Paulo em 2014. Ao todo, o diretório estadual promete lançar 141 candidatos à Assembleia Legislativa e outros 105 para Câmara Federal, além de ter candidatura própria para o governo do estado.

Presidente do PSL em São Paulo e pré-candidato ao Senado, o deputado federal Major Olímpio afirma que a suspensão ocorreu porque a gestão anterior não declarou dois depósitos que somam R$ 950. A nova executiva, ligada a Bolsonaro, assumiu o diretório em abril deste ano.

— Foi uma total falta de responsabilidade dos antigos administradores do partido. Eles não nos passaram nenhum documento. Estou indo a bancos para descobrir onde o partido tinha movimentação. Se conseguirmos, amanhã (quarta-feira) já entramos com o pedido de liminar — disse Major Olímpio.
De acordo com o presidente estadual do PSL, esse é apenas um “incêndio”, mas outros executivas, que assumiram o partido junto com o Bolsonaro, também estariam enfrentando os mesmos problemas.

O Globo

(*) Comentário do editor do blog-MBF:  incrível. Como que a Justiça Eleitoral consegue descobrir  uma falha destas – dois depósitos que somam R$ 950,00 e não foram declarados -, e não consegue detectar depósitos de MILHÕES provenientes de fontes não declaradas em outras legendas ?

Supremo dos EUA apoia veto migratório de Trump

AMANDA MARS

Presidente norte-americano proibiu a entrada de imigrantes de cinco países de maioria muçulmana

Donald Trump conseguiu uma grande vitória política nesta terça-feira, com a bênção da Suprema Corte dos Estados Unidos ao seu polêmico veto migratório para vários países de maioria muçulmana. O tribunal superior, formado por uma maioria conservadora, aprovou o decreto do presidente dos EUA com cinco votos a favor e quatro contra.

Para o republicano, a resolução representa um reconhecimento de especial relevância neste momento conturbado de sua política migratória, cuja mais recente polêmica, a separação de crianças e pais indocumentados, o levou a retificar sua doutrina de tolerância zero na fronteira. "Esta decisão é também um momento de defesa especial depois de meses de comentários histéricos da mídia e de políticos democratas que se recusam a fazer o que é necessário para proteger nossa fronteira e nosso país", disse Trump em seu comunicado.

Trump aprovou um veto a sete países de maioria muçulmana com o argumento de garantir a segurança nacional poucos dias depois de assumir poder, no início de 2017. Mas os tribunais derrubaram o decreto logo depois por considerá-lo discriminatório contra cidadãos de uma religião. Depois Trump emitiu um novo decreto um pouco mais ameno, mas na mesma linha, que também foi suspenso pelos juízes de instâncias inferiores à Suprema Corte. O mesmo aconteceu com um terceiro decreto, que agora foi endossado.

A Suprema Corte dos EUA considera que o veto à imigração não viola a primeira emenda da Constituição, que impede o Governo de favorecer uma religião em detrimento de outra, e ratifica o poder presidencial ao decidir quem entra nos Estados Unidos. Durante a campanha eleitoral, o próprio Trump havia dado argumentos aos detratores deste veto, afirmando que era necessário proibir a entrada de "muçulmanos" no país para reduzir os riscos do terrorismo islâmico.

EL PAÍS

terça-feira, 26 de junho de 2018

Esquerda e seus dogmas

Rodrigo da Silva

Fabio Assunção pode ser hetero, rico, branco, truculento e viciado em cocaína. Lindbergh Farias também. Aécio Neves não.

Lula pode ser hetero, rico, branco e assumir publicamente, como já fez à Playboy, que é machista e que o lugar da sua mulher é dentro de casa, cuidando dos filhos. Silas Malafaia não.

Nicolás Maduro pode ser hetero, rico, truculento e ridicularizar inúmeras vezes em público os homossexuais. Che Guevara também. E Evo Morales. E Fidel. Magno Malta não.

Tico Santa Cruz pode ser hetero, rico, branco e racista, como foi quando chamou Fernando Holliday de "capitão do mato". Jair Bolsonaro não.

Ciro Gomes pode ser hetero, rico, branco, truculento, nacionalista e assumir que o principal papel de sua mulher é dormir com ele. Donald Trump não.

Marcelo Freixo pode ser hetero, rico, branco e machista, como acusa sua ex-esposa, que confessou se sentir "acuada por um período longo" desde o término de seu relacionamento, quando passou a ser "caluniada, por ele e seus companheiros de partido, o clã dos esquerdo-machos". Marco Feliciano não.

A questão nunca foi a luta do bem contra o mal, travada em defesa das minorias. É "a moral deles e a nossa".

No Brasil, você só precisa defender uma visão de mundo à esquerda para ser tratado como um humanista, mesmo quando é um discípulo da truculência. Basta assumir também uma posição política antagônica à esquerda, no entanto, para fatalmente ganhar o rótulo de tirano, mesmo quando propaga a tolerância.

Por aqui, há os que possuem a licença de praticar violência e preconceito e há os que são impedidos. E a única coisa que os separa, como as redes sociais vêm mostrando dia após dia, não é gênero, cor ou classe social: é a filiação partidária.

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O belo Antônio e Frankenstein

Bolívar Lamounier

Pensando o impensável: o futuro com presidencialismo e patrimonialismo

Nossa renda anual por habitante está estacionada em torno de US$ 11 mil e por enquanto nada sugere que consigamos aumentá-la a um ritmo superior a 3% ao ano. Nessa toada, levaremos 23 anos para duplicá-la, alcançando o padrão atualmente vigente nos países mais pobres da Europa meridional. Não é preciso um grande esforço de imaginação para compreender que isso será um desastre, acarretando uma elevação intolerável do nível de conflito social, instabilidade política crônica e, no limite, riscos para a própria unidade nacional.

O quadro acima esboçado agravou-se terrivelmente nos últimos anos em decorrência de fatores que ninguém desconhece. O Estado, em tese federativo, é altamente centralizado, sujeito a constantes apertos fiscais e pateticamente ineficiente na condução das políticas públicas. Apesar da centralização, a disputa que lavra entre os grupos corporativos, quase todos incapazes de enxergar um palmo além do nariz, debilita visivelmente a capacidade política do poder central. Ensandecidos na defesa de suas prerrogativas e corroídos internamente pela corrupção, os três Poderes não dão sinais de recuperação. Subjacente a esse quadro lamentável, ou pairando sobre ele, impávido e colosso, temos o demônio histórico do patrimonialismo - o governo orientado pelos e para os “amigos do rei” -, como ficou evidente na facilidade com que o cartel da construção levou todo o sistema à beira da desagregação. Duas questões se impõem, portanto, de maneira inevitável. Como chegamos a tal situação? Que saídas têm sido ou podem ser cogitadas?

A primeira questão pode ser esquematicamente abordada através de um retrospecto da relação entre liberalismo econômico (capitalismo) e político (democracia representativa). Numa ponta, os casos clássicos da Inglaterra e dos Estados Unidos, liberais em ambos os sentidos. Na outra, a URSS e os demais países comunistas, antiliberais em ambos os aspectos, eis que baseados na planificação central, no partido único, na ideologia totalitária e na onipresente polícia secreta. China e Vietnã, para ficarmos nesses dois, inventaram um novo modelo: totalitarismo político e desregulamentação econômica. E onde fica, nessa história, a combinação de liberalismo político sem liberalismo econômico, ou seja, com um mercado distorcido, atrofiado e sujeito a uma sucessão, ao que parece, interminável de intervenções arbitrárias? Fica aqui mesmo, claro: no Brasil.

A diferença fundamental entre o Brasil e a China é que lá a concentração do poder político ainda se dá por meio de um partido ferreamente organizado e orientado por uma ideologia totalitária, enquanto aqui o que temos é um onipresente patrimonialismo, operado por uma classe política e uma burocracia arcaicas. Pelo “Estado cartorial”, como o designava Hélio Jaguaribe, ou o “sistemão”, como concisamente o descrevia Oliveiros Ferreira. Ao contrário do que singelamente pensam alguns, o patrimonialismo não é uma “sobrevivência”, um resto moribundo do colonialismo português, fadado a desaparecer graças apenas à passagem do tempo. A verdade é que ele foi relançado e fortalecido pela ditadura Vargas (1937-1945) e, no pós-guerra, pela tentativa de industrialização acelerada inspirada no nacional-desenvolvimentismo. Hoje, confrontado com um poder central em perceptível debilitação e ao mesmo tempo hostil a uma reforma efetivamente voltada para a descentralização federativa. De um lado, o arcabouço de que se servem os “amigos do rei”; do outro, o poder eunuco, o belo Antônio a que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão”. Um Frankenstein tributariamente escorchante que não sabe o que fazer com a fatia do PIB que mantém sob seu controle. Considerado esse conjunto de fatores, não é exagero avaliar que o sistema vigente é uma ameaça à própria democracia.

Isso tem conserto?

Descartemos, por óbvio, o modelo chinês. Se não temos tutano para efetivar as raquíticas reformas que estamos discutindo há anos, é óbvio que o verticalismo e a onipresença do PC chinês não é uma alternativa que mereça ser considerada. E que tal a “democracia direta”? Essa, como sabemos, é a nova mania das grandes publicações internacionais. Vários jornais europeus e mesmo publicações de grande prestígio como Foreign Affairs e The Economist não se cansam de flertar com essa hipótese. Observam, corretamente, que as novas tecnologias permitem aos cidadãos se comunicar maciçamente e em alta velocidade entre si e com os governos. Ou seja, transportar a informação tornou-se um problema banal. Mas a operação de governar vai muito além de tomar conhecimento das demandas sociais; seu cerne é a tomada de decisões imperativas que de algum modo as equilibre ou equacione. E quanto a isso a teoria da democracia direta tem muito pouco a dizer.

Suponhamos, porém, tendo em vista o caso brasileiro, que por via de tais teorias cheguemos a formas concretas de “empoderar” (argh!) um grande número de grupos sociais. Estes, evidentemente, não usariam seu poder apenas para tecer loas aos governantes de plantão, mas para pressioná-los, confrontá-los com suas demandas, multiplicando-as até o infinito. Se em sua forma atual, claramente oligárquica, nosso Estado é cronicamente deficitário, como iria ele manejar esse aumento exponencial de exigências e reivindicações?

Concluindo, direi, pois, que a saída, se existe, começa por cortar a cabeça do Estado-camarão, privatizando seus penduricalhos empresariais e concentrando suas energias nas áreas sociais. Instaurar, efetivamente, a Federação. E substituir o “presidencialismo de coalizão” por um parlamentarismo racionalizado, como o adotado no segundo pós-guerra pela Alemanha, a fim de impedir a petrificação de impasses que acabou por paralisar a economia brasileira.

O Estado de São Paulo


segunda-feira, 25 de junho de 2018

Fatos x opinião

Pedro Delfino

As pessoas hoje não têm mais noção da diferença entre citar um fato e dar uma opinião. Podem — e provavelmente vão — dizer que a sua “opinião” prega isso e aquilo, mesmo quando a única coisa que você faz é constatar a realidade tal como ela é. Se eu disser, por exemplo:

- O socialismo é inviável e só se mantém através de ditadura;

- Só existem dois gêneros: homem e mulher;

- O movimento feminista de hoje se alimenta do caos e degrada a figura feminina;

- Aborto é uma forma de assassinato;

- Negros não foram escravizados pelos brancos, mas, apenas, vendidos a eles na costa da África, depois de terem sido escravizados previamente por *outros negros* africanos;

- O Comunismo matou 10x mais do que o Nazismo;

- A essência de todas as ideias de esquerda se resume, declaradamente, em sua literatura, em algo que a própria militância desconhece: o ódio à civilização e a necessidade de corrompê-la, para, depois, substituí-la.

- Eleição com apuração secreta e veto à recontagem de votos já é fraude, havendo manipulação do resultado ou não;

- A impossibilidade de atribuir diferentes pesos à qualidade de diferentes culturas, hábitos e conceitos abre as portas para a relativização, que mina os melhores, acomoda os piores e nivela por baixo todo o conjunto geral da sociedade;

- As guerrilhas revolucionárias não lutavam por democracia, já existiam *antes* do advento do regime militar e chegaram a matar 19 pessoas *antes* mesmo de começar a repressão do governo;

- Armas salvam vidas com uma freqüência muito maior do que tiram;

...vão dizer que não concordam com a minha “opinião”. O que é estranho, porque eu não dei opinião nenhuma! 

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Usinas de concentração de renda

Editorial

O Estado brasileiro, da forma como está estruturado, e sendo permeável à pressão de corporações, é ele próprio a causa das injustiças sociais

Injustiças sociais, com renda concentrada e precários serviços públicos básicos fazem parte da imagem do país. Afinal, essas mazelas acompanham o Brasil há muito tempo. Com a redemocratização, institucionalizada na Carta de 1988, pensava-se que o quadro social melhoraria. E melhorou, com o fim da hiperinflação herdada por Sarney da ditadura e o golpe certeiro que a alta dos preços recebeu do Plano Real, com Itamar Franco no Planalto e Fernando Henrique no Ministério da Fazenda. Mas controlar a inflação é necessário para combater a pobreza, porém não o suficiente.

Completam-se 30 anos de democracia sob a Constituição de 1988, e o quadro social não melhora. Algo deu muito errado, mesmo com promessas de avanços, aumentos reais do salário mínimo, Bolsa Família e assim por diante. Uma pista para ter a resposta é admitir a possibilidade de que, seja o país governado pela direita ou esquerda, o Estado brasileiro, da forma como está estruturado, e sendo permeável à pressão de corporações, é ele mesmo a causa das injustiças sociais. Por funcionarem no seu interior engrenagens que privilegiam poucos — empresas e pessoas.

No enorme oceano de isenções e incentivos que o Estado distribui, para atender a lobbies diversos, o Bolsa Família, instrumento direto de distribuição de renda, é uma gota d’água. Textos do Tribunal de Contas da União (TCU) elaborados para o processo de votação das contas do ano passado do governo Temer são assustadoramente reveladores: o total de incentivos tributários, financeiros e creditícios somou no ano passado o equivalente a 5,4% do PIB, tendo chegado há dois anos antes a 6,7%, e partido, em 2013, de 3%. O secretário da Receita, Jorge Rachid, disse, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, que a média mundial dessas transferências é de 2% do PIB.

Nem todo este dinheiro, equivalente a 30% da receita líquida da União, aparece no Orçamento. Há doações a empresários sem prazo delimitado de vigência. E a regra é a inexistência de qualquer sistema de avaliação das transferências. São bilhões do contribuinte distribuídos por força de grupos de pressão, sem estudos técnicos. Só para a Zona Franca de Manaus são R$ 25 bilhões em isenções, a perder de vista.

Este sistema é uma engrenagem que funciona distante da sociedade, para concentrar renda. E é composto de vários subsistemas. Nem ajuda a reduzir desequilíbrios regionais: a menor transferência per capita é para o Nordeste. A do Norte é elevada devido à Zona Franca (gráficos).

Outra parte deste mecanismo de injustiças é a Previdência, desbalanceada em favor do servidor público: enquanto a média das aposentadorias pelo INSS, do trabalhador na área privada, é de R$ 1.240, a do servidor público do Executivo federal chega a R$ 7.500 e, na casta do funcionalismo do Legislativo, a R$ 28 mil. Outra usina eficaz de concentração de renda.

A sempre aplaudida “política de valorização do salário mínimo” sequer arranha o problema, e ainda costuma ajudar a desequilibrar ainda mais as contas públicas. Praticar justiça social no Brasil requer um enorme trabalho que passa por uma reforma da Previdência para reduzir as disparidades entre servidor público e trabalhador privado, pela revisão de isenções, mas não só. É imperioso reformar o próprio Estado.

O Globo


domingo, 24 de junho de 2018

Fuga de venezuelanos faz país se equiparar ao Iraque em pedidos de refúgio no mundo

BBC - Brasil

Venezuela não sofreu uma guerra nem uma catástrofe natural, mas, em 2017, ocupou o quarto lugar na lista de países de onde sai a maior quantidade de novos pedidos de refúgio no mundo - e o primeiro, se considerada apenas a América Latina.

O direito de refúgio permite que pessoas que saem de seus países de origem perseguidas, ou sob risco, por causa de etnia, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, ou, ainda, devido a uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos, sejam protegidas em outro território.

De acordo com um relatório divulgado na terça-feira pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) sobre as tendências globais em deslocamentos forçados, o número de venezuelanos que pediram esse tipo de proteção internacional somou 111,6 mil no ano passado, o triplo da quantidade registrada em 2016.

Com esse resultado, a nação sul-americana só foi superada por países que na última década sofreram com guerras devastadoras, como o Afeganistão, origem de 124,9 mil pedidos de refúgio, a Síria (117,1 mil) e o Iraque (113,5 mil), países que têm passado por intervenções militares e onde atuam grupos extremistas, como a autodenominado Estado Islâmico, a Al-Qaeda e o Talebã.

Na lista da Acnur também aparecem outros países latinoamericanos, como El Salvador (59,4 mil pedidos de asilo), Guatemala (36,3 mil ) e Honduras (34,9 mil), mas a uma distância considerável dos que ocupam as primeiras posições.

Embora reconheça dificuldades para compilar esse tipo de estatística, o relatório sobre deslocamentos forçados estima em mais de 1,5 milhão o número de venezuelanos que saíram de seus países levados pela "difícil situação da segurança, pela perda de rendimentos como consequência da atual situação econômica do país e pela escassez de alimentos e medicamentos".

Além disso, nesta sexta-feira, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos acusou as forças de segurança da Venezuela de terem matado sem justificativa mais de 500 pessoas desde julho de 2015 e alegou que a lei está "praticamente ausente" do país latinoamericano.
'Guerra econômica'

A Venezuela também ostenta a maior inflação do mundo.
O Banco Central não publica estatísticas oficiais. Os números que mais se aproximam da realidade são as estimativas da Assembleia Nacional, controlada pela oposição, que calcula que o aumento do preço anualizado até maio foi de 24.571%. A projeção para o ano é de 300.000%.

Mas o governo de Nicolás Maduro considera que se trata de uma inflação "induzida" e parte de uma suposta "guerra econômica" na qual vertentes da oposição e os grandes empresários, com o apoio dos Estados Unidos, supostamente se dedicam a sabotar o país.

Em sua última tentativa de controlar a inflação desenfreada, Maduro ordenou a eliminação de três zeros da moeda, o bolívar. Essa reconversão monetária e o novo cone monetário (conjunto de moedas no país) já deveriam ter entrado em vigor, mas foram adiados para 4 de agosto.
Além da inflação, os que deixam o país estão fugindo de uma grave crise na área da saúde.

Conforme o Parlamento denunciou na terça-feira, mais de 2 mil pessoas com câncer morreram porque não puderam ter acesso a um tratamento adequado nos últimos dois anos.

'Pessoas de interesse'
O relatório destaca que, embora desde o início de 2015 até o final de 2017 cerca de 166 mil venezuelanos tenham pedido refúgio, há um número maior (mais de 500 mil) que pode se valer de formas legais alternativas para permanecer nos países receptores.

A Acnur observa que a Venezuela lidera a lista em crescimento do número de "pessoas de interesse", isto é, de cidadãos a quem, além do refúgio, se pode oferecer alguma proteção graças a outros acordos internacionais, regionais ou resoluções da Assembleia Geral da ONU.

"Alguns países da região latinoamericana introduziram mecanismos paralelos ao sistema formal de refúgio para que cidadãos venezuelanos residam por um longo período (de um a dois anos) nos países de destino, com acesso a trabalho e a serviços sociais. Esses mecanismos incluem autorizações de residência temporária, vistos de migração de trabalhadores, vistos humanitários e acordos de vistos regionais", destaca o relatório.
A agência da ONU estima que em 2017 o número de venezuelanos nessa situação aumentou em 345,6 mil pessoas.

Aonde eles vão?
No caso específico do refúgio, a Acnur ressalta que o país do mundo que mais recebeu pedidos de venezuelanos em 2017 foi o Peru (33,1 mil), seguido pelos Estados Unidos (29,2 mil), Brasil (17,9 mil), Espanha (10,6 mil), Panamá (4,4 mil), México (4 mil) e Costa Rica (3,2 mil).

No entanto, um número maior de venezuelanos pode se encaixar na categoria de pessoas de interesse, em países como Chile (84,5 mil), Colômbia (68,7 mil), Argentina (56,6 mil), Panamá (48,9 mil), Equador (41 mil), Peru (31,2 mil), Brasil (8,5 mil) e Uruguai (6,2 mil).

Apesar desses números elevados, a ACNUR estima que a maioria dos cidadãos que deixaram a Venezuela nos últimos anos esteja em situação irregular.
Esta situação preocupa o organismo, que adverte que, "sem acesso a um estatuto legal, eles estão mais expostos à violência, à exploração, ao abuso sexual, ao tráfico de pessoas e à discriminação".


O mistério sobre quem realmente foi Maria Madalena

Edison Veiga

O filme Maria Madalena, que chega aos cinemas nesta quinta (15), lança olhar sobre uma das versões da trajetória desta figura fundamental à história do cristianismo. Na obra dirigida por Garth Davis, ela aparece como uma fiel seguidora de Cristo. Mais do que isso, uma mulher à frente de seu tempo, que desafia a sociedade patriarcal da época, contrariando seu pai ao decidir se tornar uma discípula.

Citada nominalmente 17 vezes na Bíblia, Maria Madalena, ao que tudo indica, era uma entre tantas pessoas que se encantaram com as pregações de Jesus e passaram a segui-lo. A principal pista sobre sua origem está no nome: originalmente, Maria de Magdala, ou seja, nascida em Magdala, uma vila de pescadores próxima ao Mar da Galileia, localizada a 10 km de Cafarnaum, a cidade que foi a base de Jesus na vida adulta.

O primeiro contato entre eles está narrado no capítulo 8 do Evangelho de Lucas. Cristo encontra Maria Madalena e expulsa dela sete demônios.
Sete é um número simbólico e, na Bíblia, significa a totalidade. A partir de então, ela se torna uma seguidora do pregador. Madalena é citada como uma das mulheres que testemunharam a crucificação de Jesus e, de acordo com o evangelista Marcos, ela teria visto onde o seu corpo foi sepultado. A Bíblia relata ainda que ela acabou sendo a primeira a encontrar o sepulcro de Cristo aberto e, portanto, se tornou a anunciadora, aos outros discípulos, da ressurreição de Jesus.

A seguir, todavia, seu nome desaparece do livro sagrado. Nos relatos - presentes em Atos dos Apóstolos e nas epístolas - dos primeiros anos da Igreja, é como se Madalena não tivesse existido.

"O silêncio dos apóstolos trouxe aos exegetas diferentes interpretações e, para o imaginário coletivo, muitas histórias que ainda hoje pairam sobre a imaginação de homens e mulheres do mundo cristão ocidental", pontua a pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião.
"Crentes ou ateus, todos conhecem alguma história sobre Maria Madalena".

Relacionamento amoroso
Isto porque as histórias são muitas. Um exemplo bastante difundido: a mulher era uma prostituta que, resgatada por Jesus, acabou virando sua amante. Os dois teriam se casado e, quando ele foi crucificado, Madalena esperava um filho dele. Então, ela fugiria para a França, onde daria à luz. Os descendentes dessa linhagem seriam os membros da dinastia Merovíngia, que governou os francos de 478 a 751.

Este enredo aparece na literatura em O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln - publicado em 1982.
Um relacionamento amoroso entre Cristo e Madalena também é narrado tanto no livro O Segredo dos Templários, escrito por Lynn Picknett e Clive Prince e lançado em 1997, quanto no best-seller O Código Da Vinci, de Dan Brown. Nestes, a conspiração envolve o gênio renascentista Leonardo Da Vinci (1452-1519), que teria retratado Maria Madalena, de forma cifrada, ao lado direito de Jesus em sua representação da Última Ceia.

No tratado hagiográfico Legenda Áurea, publicado em 1293, o frade dominicano Jacopo de Varazze (1230-1298) conta que 14 anos depois da morte de Jesus, Madalena e um grupo de cristãos acabaram expulsos da Judeia. Embarcados à força, foram atracar no porto de Marselha, no sul da França. Lá, Maria Madalena teria pregado e convertido muitas pessoas. Mais tarde, ela se retirou à gruta de Sainte Baume, onde terminaria se dedicando por 30 anos à penitência e à contemplação.
Verdade ou não, o local celebra esta história.

"Nos anos 1950, morei quatro anos no sul da França, onde se encontram a gruta em que se recolheu Maria Madalena e seu túmulo, na cripta da grande basílica, hoje museu. Havia uma grande festa provençal em sua honra, no dia 22 de julho", recorda-se o teólogo Francisco Catão, autor do livro Catecismo e Catequese, entre outros.

Lendas
As versões populares sobre quem teria sido Madalena são muitas. Há quem acredite que ela tenha sido uma mulher que decidiu fugir com um soldado romano. Depois de um tempo, ele a abandonou e ela virou uma prostituta. Foi quando se encontrou com Cristo e passou a ser sua seguidora. Também há a lenda de que ela tenha sido uma aristocrata, herdeira de um castelo na região de Magdala. Vivia numa vida de luxúria até conhecer Jesus e passar a segui-lo.

Segundo a Bíblia, o primeiro milagre realizado por Cristo teria sido, em uma festa de casamento, transformar água em vinho. A identidade dos noivos não é revelada. Há quem diga que o matrimônio era entre Maria Madalena e João Evangelista. Por essa versão, entretanto, o noivo acabaria se encantando com o gesto de Jesus - e abandonado o casamento para se tornar discípulo. Deixada só, Madalena acabaria vivendo como prostituta e, muito tempo depois, encontrado Jesus conforme está nos evangelhos.

Força da mulher
Uma das teorias atribui ao machismo a desconstrução moral de Maria Madalena. Isto porque ela teria tido um papel muito importante nos primeiros anos do cristianismo, algo semelhante ao de Pedro - considerado como o primeiro papa da Igreja Católica, o fundador do catolicismo.
Mas quando a Igreja se tornou religião oficial de Roma, teve de dar uma atenuada nesses aspectos, por conta do machismo do império.

"Maria Madalena é uma figura forte desde o início do cristianismo. Mas, em uma sociedade patriarcal, em que o Jesus ressuscitado apareceu a uma mulher em primeiro lugar, confiando a ela a missão de anunciar aos apóstolos a sua ressurreição - a mais alta missão possível! - foi um problema para os homens de seu tempo", disse a historiadora Lucetta Scaraffia, que há décadas estuda a importância da mulher na tradição cristã, em entrevista publicada semana passada no L'Osservatore Romano.
Mais do que os quatro evangelhos canônicos - de João, Marcos, Lucas e Mateus -, muitos evangelhos ditos apócrifos, não reconhecidos pela Igreja Católica, tratam da vida de Maria Madalena - e são fonte de muitas das teorias sobre ela que sobreviveram ao tempo.

Se nos evangelhos oficiais seu papel é restrito a apenas uma entre tantos seguidores de Cristo, nos apócrifos Maria Madalena é retratada como alguém próxima do mestre, uma sábia que gozava de posição especial entre os primeiros cristãos.

"A liderança de Madalena era incômoda em muitos setores do cristianismo dos primórdios. A escolha dos livros que formam o Novo Testamento se deu num cenário em que se procurava sufocar as lideranças femininas existentes nas comunidades cristãs", afirma o teólogo Pedro Lima Vasconcellos, professor da Universidade Federal de Alagoas e autor do livro O Código da Vinci e o Cristianismo dos Primeiros Séculos, para explicar por que ela é retratada nos apócrifos de uma maneira diferente dos evangelhos canônicos.

No Evangelho de Tomé, ela aparece em um diálogo com Pedro no último dos 114 ditos que essa obra atribui a Jesus. E mostra que havia uma Igreja dividida entre essas duas lideranças.

"Simão Pedro disse a eles: 'Maria tem de nos deixar, pois as mulheres não são dignas de viver'", diz o trecho. Na sequência, Jesus responde: "Eis que eu a guiarei para torná-la masculina, para que também ela se torne um espírito vivente, como vós, que sois homens. Pois toda mulher que se fizer homem entrará no Reino dos Céus".

Uma das intepretações aceitas para esse diálogo que hoje soa esquisito vem do pesquisador Dale Martin, especialista em Religião da Universidade de Yale. Para ele, o texto se refere a uma crença da época de que a capacidade de procriar, inerente às mulheres, era algo ruim.

Já no Evangelho de Maria, ela é quem anima e encoraja os apóstolos temerosos das perseguições daqueles primeiros tempos do cristianismo. E Pedro reconhece sua importância. "Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que às outras mulheres. Dize-nos as palavras do Salvador que recordas, aquelas que conheces e nós não conhecemos, já que não as ouvimos", afirma ele.

Entre 2015 e 2016, a pesquisadora Eleonora Graziani utilizou este evangelho para demonstrar "a autoridade da voz feminina na Igreja primitiva", quando ela realizava seu doutoramento em Estudos Femininos pela Universidade de Coimbra.

Mas o texto apócrifo que mais suscita discussões sobre Madalena ter tido ou não um relacionamento amoroso com Jesus é o Evangelho de Filipe. Primeiro porque o evangelista diz que uma das Marias que "sempre caminhavam com o Senhor" era "sua companheira".

Entretanto, pode ser tudo uma questão de tradução. A palavra original do manuscrito, o grego koinonôs, apesar de poder se referir a uma esposa, é mais comumente empregada para designar duas pessoas que compartilham alguma missão ou um trabalho, como dois parceiros comerciais. Outra passagem do mesmo evangelho, apesar de repleto de lacunas, diz que Jesus "a beijava com frequência na sua boca".

Papas
No início, a Igreja reconhecia sua santidade. Maria Madalena era chamada de "apóstola dos apóstolos", justamente por ter sido a primeira a atestar a ressurreição de Cristo - o primeiro registro desta definição é atribuído ao teólogo Hipólito de Roma (170-236).

Deixada meio de lado quando a Igreja Católica se tornou oficial do Império Romano - o que aconteceu no ano 380 -, Maria Madalena acabou relembrada de um jeito meio torto. Em uma tentativa de tentar convencer os fiéis de que o arrependimento sincero bastaria para um perdão de Deus, o papa Gregório Magno (540-604) começou a propagar, em sermões, que algumas passagens da Bíblia se referindo a mulheres pecadoras - anônimas - estavam, na verdade, tratando de Madalena.

Ou seja: várias pessoas foram juntadas em um só nome Maria Madalena. Em seu artigo Olhares de Clérigos - que integra do livro História das Mulheres no Ocidente-, o historiador francês Jacques Dalerun é categórico ao dizer que "tal como o Ocidente a venera a santa não existe, enquanto indivíduo, nos evangelhos".

"A identidade de Maria Madalena, — de quem Jesus expulsou sete demônios e que foi testemunha da paixão e da Ressurreição, — fundiu-se com a da pecadora anônima,— mulher que lavou, ungiu e secou com os cabelos os pés de Jesus na casa de Simão, o fariseu — e também é identificada com a Maria de Betânia, irmã de Marta e de Lázaro", resume a pesquisadora Wilma. "Maria de Betânia, no Evangelho de João, unge também Jesus com um valioso perfume de nardo. A pecadora anônima que aparece no Evangelho de Lucas; Maria de Betânia e Maria Madalena passaram a ser consideradas a mesma pessoa."

Pronto, estava aberta a brecha para que Madalena fosse tachada como prostituta arrependida.
Nas últimas décadas, esta imagem foi revisada pela Igreja. Em 1969, os predicados "penitente" e "pecadora" foram excluídos da seção dedicada a ela no 'Breviário Romano'.

"Isto eliminou um estigma que havia sido acentuado principalmente por ocasião da Contrarreforma, quando Maria Madalena teve a importante função de ser o exemplum. Completamente contra o protestantismo e sua doutrina da graça e da predestinação, a Contrarreforma enfatizou a doutrina da penitência e do mérito. Nessa época, séculos XVI e XVII, Maria Madalena exerceu um importante papel como a pecadora-penitente e como a pessoa que foi favorecida por excelência", contextualiza Wilma, que está finalizando um livro sobre a personagem cristã.

Em 2016, papa Francisco transformou a data de Maria Madalena, 22 de julho, em festa litúrgica. De acordo com o Vaticano, a decisão foi tomada porque Francisco gostaria de "assinalar a relevância desta mulher que mostrou um grande amor por Cristo". Ele voltou a enfatizar seu título de "apóstola dos apóstolos". O gesto, carregado de simbolismo, repercutiu entre religiosos e estudiosos.

Professor de Novo Testamento da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, o filósofo Régis Burnet afirmou que o ato do papa reconhece "o lugar surpreendente, para a época, que as mulheres ocupavam junto de Jesus", ao mesmo tempo que funciona como um "apelo a um maior reconhecimento delas na Igreja de hoje".

Cultura
Relacionamento íntimo com Jesus, mas apenas do ponto de vista espiritual. O historiador britânico Michael Haag procura trazer esta Maria Madalena como a verdadeira, em seu recém lançado Maria Madalena - Da Bíblia ao Código da Vinci: companheira de Jesus, deusa, prostituta, ícone feminista.
O livro, portanto, vai na mesma linha do filme de Garth Davis que chega aos cinemas - com Rooney Mara no papel principal. Mas, assim como a Igreja, o mundo da arte e do entretenimento também já apresentou várias facetas dessa santa.

Madalena já apareceu em mais de 30 filmes - quase sempre como uma linda mulher, sedutora. Em A Última Tentação de Cristo, obra de Martin Scorsese lançada em 1988, ela é vivida pela atriz Barbara Hershey. Que encarna a figura da prostituta - e, num devaneio épico quando Jesus está na cruz, é vista como esposa dele e grávida de seu filho. Em A Paixão de Cristo, de 2004, Mel Gibson traz uma Madalena, vivida por Monica Bellucci, coberta de lama. Em entrevista da época, Gibson afirmou: "eu joguei lama nela; e quanto mais lama eu jogava, mais bonita ela ficava".

"Em dois mil anos de cristianismo, não há outro personagem que tenha estimulado tanto a imaginação de artistas, escritores e outros estudiosos como Maria Madalena", acredita Wilma. "Sabemos pouco a respeito dela, no entanto, a cada período da era cristã criou-se uma Madalena que satisfizesse suas necessidades e anseios e assim Maria Madalena vem sendo submetida até nossos dias a uma plástica cultural."

Assim, obras do Renascimento apresentam uma Madalena símbolo de penitência, humildade e amor. No Iluminismo, a figura é de uma rameira de coração puro. No fim do século 19, começa a ser representada de forma muito sexualizada, uma femme fatale.

Alguns quadros que a retratam são indispensáveis para qualquer percurso da História da Arte. Ticiano Vecellio (1490-1576) pintou Madalena Penitente e Noli Me Tangere. Seu contemporâneo Giampetrino (de quem não se sabe nem sequer o período exato de vida) concebeu uma Madalena sedutora, mundana. Já a Madalena de Pietro Perugino (1448-1523) é a imagem de uma santa.

BBC Brasil