Fernão Lara Mesquita
Não foi por acaso que a democracia
nasceu nas Américas. No que ela tem de essencial, trata-se de um arranjo
espontâneo entre iguais para a sobrevivência em territórios isolados e em
condições adversas.
“Como vamos nos organizar para
termos o que comer e podermos nos defender neste fim de mundo”?
Era a essa questão muito prática que
tratava de responder o Pacto do
Mayflower (1620). Era a essa questão muito prática que tratavam
de responder, 90 anos antes, os portugueses que instalaram em São Vicente a 1a
Câmara Municipal da Terra de Santa Cruz (1530).
Durante 400 anos funcionou como um
relógio a “democracia dos analfabetos” daquele Brasil das vilas
esparsas, sem comunicação umas com as outras, pequenos mundos isolados onde a
presença do governo de fora era rala ou inexistente e onde toda a economia e
toda a autoridade política tinham de ser providas pelos próprios moradores. Do
povo, pelo povo, para o povo…
Foi 1808 que veio truncar essa bela história. São
os filhos do privilégio que vão escrever a história da contrarrevolução no
Brasil.
O século 18 aporta na democracia
instintiva do Norte a sua metade futuro. Renega formalmente o passado;
sacraliza a livre circulação das ideias; elege o merecimento como única fonte
de legitimação do poder e do dinheiro; proíbe proibir senão a exceção e o privilégio;
trata de armar esse sonho das instituições capazes de materializá-lo e
blindá-lo contra e acima das tentações do “lobo do homem”.
O século 19 provaria que não era
ainda o suficiente. O poder político e o poder econômico compram-se favores. A
corrupção reconstitui a força do privilégio. Tudo ameaça vir abaixo. É só na
virada para o 20 que se consolida a revolução. O remédio, síntese de milênios
de servidão, é de uma objetividade cristalina: para que seja estável o mundo
dos cidadãos, tudo que é necessário é que seja essencialmente instável o mundo
dos servidores do “Leviatã“. A legislação antitruste, o “recall“,
as leis de iniciativa popular e o poder de veto às leis do legislador armam a
mão dos oprimidos; dão ao povo a última palavra; é ele no poder.
A diferença que isso faria é a que
grita ao mundo hoje…
Aqui a história foi outra. O século
18 aporta na democracia instintiva do Sul a sua metade passado. Asila no Brasil o
absolutismo moribundo; demoniza a livre circulação das ideias; impõe o rei como
única fonte de legitimação do poder e do dinheiro; proíbe tudo menos a exceção;
trata de imortalizar o sistema atribuindo-lhe a elasticidade mole da
complacência e dotando-o de um labirinto judiciário sem porta de saída que tudo
mói em processos sem fim.
O século 19 provaria que não foi o
bastante para matar o sonho. O Brasil americano insiste. Infiltrada pelos
contrarrevolucionários “positivistas” que sentindo-a inevitável embarcam
na mudança para sabotá-la, nasce afinal a Republica, vencida a escravidão. Mas
é só um eco; faltam as instituições. Num hiato entre ditaduras Prudente de
Morais e Rui Barbosa logram plantar o marco institucional da liberdade de
empreender que faz nascer o Brasil moderno. Eterno refém da insegurança
jurídica, porém, ele será mantido desde então – as veias sempre expostas – no
limite da sobrevivência para sustentar o outro.
O sistema político da República permanece
exatamente o mesmo do Império, com o Estado herdando as prerrogativas do
imperador sobre os súditos. O povo — tanto o analfabeto quanto o que
oficialmente “vota” — não participa do jogo. É convocado, de quatro em
quatro anos, apenas para sacramentar a sucessão presidencial previamente
acertada no circuito fechado dos chefes de partidos agora fazendo as vezes da
Corte, e dispensado a seguir.
Na Primeira Republica segue o
sistema do Imperador que quando, a seu talante, alternava os partidos na chefia
do governo, “derrubava” os titulares de todos os cargos públicos para
que fossem redistribuídos pelo novo contemplado. (“Governabilidade“). A
única diferença é que a troca passa a se dar mediante uma “eleição”
presidencial de que se conhecia o ganhador meses antes de votações abertamente
fraudadas.
Depois dos 26 anos da ditadura
Vargas, o que muda com a redemocratização, essencialmente, é que não sai mais da folha de pagamento do
Estado quem quer que tenha conseguido por um pé lá dentro uma vez.
Isso mergulha de vez num processo de entropia um sistema politico que sempre
foi divorciado do povo. Cada vez mais explicitamente os novos interesses
objetivos criados vão configurando as duas únicas classes sociais com
interesses intrinsecamente conflitantes no panorama sociológico brasileiro: a
dos que são sustentados pelo Estado, auferem e distribuem direitos especiais
vitalícios e frequentemente hereditários que a Constituição de 88 virá a tornar
“pétreos“, e a dos que sustentam o Estado e todos esses privilégios. Daí
por diante, das prisões à renda per capita e ao resto do IDH, tudo será cada
vez mais desigual para os habitantes desses dois brasis.
A chegada ao poder do PT, que se
assume desde sempre como o campeão desse Brasil dos direitos especiais, leva o
processo da entropia à fusão. Não ha saída com ele desse feudalismo sem “gallantry”
dos partidos/quadrilhas
hereditárias empenhados na conquista de “nobreza” (dinheiro e direitos
especiais) pelo acumpliciamento a que chegamos. A “democracia”
sem povo à brasileira, só de ida, esgota-se, com dois séculos de atraso, no seu
próprio paroxismo.
É o fim de uma era. A meticulosidade
do desastre lulopetista reitera que só existe um jeito de se construir uma
nação: o difícil. Exaspera a ideia de voltar para trás mas isso já não é uma
escolha. Não ha atalho possível. A História exige que todos os passos do
caminho sejam trilhados. O Brasil terá de voltar à sua raíz americana;
fazer as revoluções do século 18 e do século 19, ainda que acelerando o filme.
Democracia?
Faça você mesmo. “Recall“,
iniciativa popular, referendo, e mãos à obra, pedra por pedra, a partir de onde
se vive a vida real, que é o município. Não existe outro jeito.
VESPEIRO
Os grifos em
vermelho são meus.(MBF).
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