domingo, 19 de março de 2017

Estado e sociedade civil

José Antônio Segatto
(*)

No Brasil, essa relação sempre foi infausta e discrepante, adversa e de sujeição

A relação Estado e sociedade civil no Brasil, desde a fundação do Estado nacional, foi sempre infausta e discrepante, adversa e de sujeição. Essa realidade foi objeto de análise de intelectuais de variadas linhagens do pensamento social. Exemplares são as obras antinômicas de Oliveira Vianna e Raymundo Faoro.

O primeiro, ao constatar que a sociedade civil era amorfa e frágil, propugnava um Estado forte, centralizado e autoritário para (re)criá-la – um Estado demiurgo. Já o segundo, ao inverso, entendeu que o Estado foi organizado como aparato de poder exclusivo e restrito, burocrático e patrimonial – o Estado é tudo, a sociedade civil, nada; seriam necessários, portanto, a reordenação das estruturas estatais e o deslocamento de parte de seus poderes para a sociedade civil.

Traços tanto do estatismo de Oliveira Vianna quanto do liberalismo de Raymundo Faoro podem ser encontrados em toda a História brasileira. O estatismo é patente ao longo de quase todo o regime imperial, quando o Estado precede a sociedade civil, inexistente mesmo nos seus estertores, como revelou um testemunho da época: “O que há de organizado é o Estado, não a nação” (Tobias Barreto). Na Primeira República (1889-1930) – quando se enceta um esboço de sociedade civil –, tem-se um liberalismo mitigado pelo domínio oligárquico e pelas práticas patrimonialistas e clientelistas. Nos anos 1930, o estatismo e o autoritarismo ganham proeminência, sobretudo durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), acoplando agora o corporativismo – o Estado, sob o governo Vargas, (re)fundou ou instituiu a sociedade civil, subordinada aos seus desígnios (sindicatos, organizações estudantis, etc.).

Com a democratização de 1945 foi instaurado um regime liberal, limitado, porém, pelos resquícios de autoritarismo e corporativismo – não obstante isso, nos anos 1950-60, teve início um processo de criação de pressupostos favoráveis ao encorpamento e ao dinamismo da sociedade civil, favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs o poder estatal. Essas condições foram abortadas pelo golpe de Estado e pela instauração da ditadura civil-militar (1964-1985), que radicalizou os elementos antidemocráticos, centralizadores e estatistas.

No processo de transição democrática, de fins dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, houve a emergência de uma sociedade civil revigorada, que teve papel relevante na democratização, mas foi sendo contida pelos resíduos históricos extemporâneos. Ressalta-se que nessa quadra política, de resistência e combate à ditadura, se propagou, com muita força, o entendimento de uma sociedade civil virtuosa, portadora da liberdade e da justiça, versus um Estado autoritário e controlador, pervertido e iníquo – esse fenômeno está mesmo na origem do PT e do PSDB. O breve governo de Itamar Franco e, em especial, os governos de Fernando Henrique Cardoso – que prometiam o desmonte do estatismo e do populismo varguista – deram seguimento a um projeto político eclético, mesclando liberalismo e social-democracia com elementos conservantistas e/ou tradicionalistas. A seguir, nos governos petistas, retomou-se a política varguista, setores consideráveis da sociedade civil foram cooptados ou mesmo estatizados, além de revigorar-se o estatismo e o patrimonialismo, o clientelismo e o corporativismo.

Desse conciso painel histórico, em que se alternam períodos de predomínio de estatismo ou de liberalismo nunca completos ou exclusivos, podem-se extrair algumas ilações:

1) Tanto num como no outro, a relação entre Estado e sociedade civil foi impregnada de patrimonialismo, clientelismo e fisiologismo;

2) houve, no decorrer dessa História, uma disjunção entre Estado e sociedade civil, entre sociedade civil e política e suas instituições mediadoras, em particular, os partidos políticos;

3) essa relação disjuntiva, aparentemente paradoxal, de tutela e sujeição foi executada por agentes da política e da própria sociedade civil, objetivando estabelecer a dominação e o controle do aparato estatal e nele materializar e maximizar seus interesses privatistas e particularistas;

4) dessa relação instável e assimétrica, resultou um Estado parcamente público e insuficientemente democrático e uma sociedade civil atomizada e difusa, sem capilaridade e organicidade, com diminutas autonomia e identidade societal.

Tais condições adversas, evidentemente, não constituem simples elementos e fatos pretéritos. Eles foram perpetuados e continuamente reatualizados. Assim sendo, essas relações têm de ser repostas e levadas em sua devida conta nas análises e na práxis política dos protagonistas empenhados em remover os bloqueios à ativação da sociedade civil, em rechaçar a complacência dos Poderes com a cultura política autoritária, em superar os obstáculos ao livre exercício dos direitos de cidadania e à ampliação das normas e instituições democráticas.

Obviamente, isso não implica a contração dos poderes do Estado e o esvaziamento de suas atribuições e/ou prerrogativas (Estado mínimo) e sua transferência para uma sociedade civil supostamente autogovernada pelos interesses e pelo livre mercado – seria retroagir à incivilidade ou mesmo à barbárie. Ao contrário, implica, sim, a construção de um Estado público e desprivatizado, democrático e expurgado do patrimonialismo e do cartorialismo, do clientelismo e do fisiologismo, do corporativismo e do populismo; demanda, por outro lado, uma sociedade civil autônoma e ativa, acoplada e conexa a uma esfera pública consoante com aspirações e demandas democráticas.

Desse modo, a discussão e a implementação de reformas – política e eleitoral, trabalhista e previdenciária, fiscal e/ou tributária, etc. – não podem estar desvinculadas das complexas relações entre Estado e sociedade civil.

José Antônio Segatto
Professor titular de sociologia da Unesp

O Estado de São Paulo

(*) Comentário do editor do blog-MBF:  esta é a questão -  as relações entre Estado e sociedade civil – que deve ser atendida antes de qualquer nova reforma.
Até agora, todas as reformas propostas são mais do mesmo: o Estado como fim em si mesmo e a sociedade obrigada a pagar a conta, sem ter retorno daquilo que deveria ser um investimento.
Mesmo que houvesse uma Intervenção Constitucional pelas FFAA, se eles não tiverem uma nova visão, um novo paradigma, continuará tudo igual.
Esta é a proposta de Capitalismo Social - um projeto completo -, com começo, meio e fim, que deixa de lado esta dicotomia esquerda x direita, socialismo x liberalismo, ambos ultrapassados.

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